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quarta-feira, 30 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 52

um agradecimento especial ao João Aldeia


Central: a meio do sono*
António Cagica Rapaz
O Carlinhos da Rã levantou-se, pegou na garrafa de água e no copo, veio até à nossa mesa, pousou copo e garrafa, sentou-se e, passado um bom bocado, perguntou de forma mais afirmativa que interrogativa se não incomodava…
Foi no Central, num domingo à tarde, a hora morta, quando o Manel Zé conseguiu enfim almoçar. Noutro tempo as mães preocupavam-se com a torreira do sol, recomendavam a sesta à miudagem ou impunham o chapéu de palha, inestético mas útil. O Carlinhos da Rã usava boina, uma boina preta, enorme, enfiada pela cabeça abaixo, quase tão grande como a do outro Carlinhos que morava na calçada. Fiel ao Central há muitos anos, o Carlinhos ancora por ali desde miúdo. Por isso se infiltra com grande destreza por entre as mesas, com o copo e a garrafa na mão, conhece as correntes, escolhe as marés, navega à bolina até chegar de gargalhete à nossa mesa. Só podia ser no Central, só podia ser o Carlinhos da Rã…
Para quem, como eu, tem andado por outros mares, reencontrar o Central é ver a luzinha vermelha do farol em noite de tempestade, alcançar o porto de abrigo em dia de mar feio. Era domingo, a meio da tarde, a meio da vida, a meio da saudade, a meio do sonho que o Central sempre representou a meus olhos. Com o Manel Zé recordámos figuras que passaram pelo Central. Cada um de nós conserva as suas imagens, as suas emoções e o tempo vai retocando, adoçando o contorno.
Fazia falta este Central, com o peso do seu historial, a sua memória colectiva, a sua imponência, o seu simbolismo, marco de uma tradição.
Os tempos são outros, o snooker terá mais procura do que o bilhar e compreende-se a opção. Contudo, bem gostaria de fazer duas bolas a girar como o meu mestre António Vitorino me ensinou.
O bilhar era a disciplina do professor Arménio que, dono da casa, possuía o seu taco, as suas bolas e a autoridade do cientista. As suas lições eram quase tão raras como as exibições do Chico Cagica, todo ele talento, no bilhar e em todos os desportos. Excepcional em tudo.
O bilhar era o «tacho» nas tardes de chuva, com o Orlando dos táxis sempre a chorar, a fazer-se mais azelha do que de facto era e o João Mota, pontapé p’rà frente, a gritar como um trovão. O Leste era um artista, gostava do jogo bonito, com adornos e enfeites, o prazer do floreado, arte pela arte. E depois perdia com o Pai do Céu, de tacada triste, económica, deslavada, sem risco nem fantasia. Espectacular era o dueto Zé Romão-António Casa Pia, com as prelecções do mestre António, os seus passes requebrados, verónicas e manuelinas a acompanhar o movimento caprichoso das bolas…
Era a meio da tarde, a meio da chuva, a meio do Inverno, a meio da melancolia de um tempo que foi. Que foi melhor, pior, não sei. Apenas sei que nos ficou cá dentro, bem fundo, a nostalgia do Central, do sô Zé, do cafezinho, da esquina…
A esquina do Central é um sítio histórico, monumento repertoriado, referência, marco, fronteira, poço de rumores, fonte de intrigas, berço de manigâncias, torre de controlo, ponto de passagem, portagem, malandragem, calhandragem.
O Central ocupou um lugar muito importante na vida de todos nós. E a vida é assim, perdemos o Chagas, voltou o Central…
À noite, na esplanada, houve música, um ar de festa, a ressurreição daquele espaço outrora meio mundano, mas sempre simpático e agradável.
Faltavam os chapéus-do-sol, as janelas do Grémio abertas de par em par, os xailes de renda branca das senhoras bronzeadas. E faltava a silhueta inconfundível da Isabel…
Mas lá estava o Mário Martelo, vértice de um triângulo fascinante constituído pelo seu café, pelo café Filipe e pelo Central. O Mário Martelo é, no meu álbum, o parceiro do Zé Ângelo, uma bigodaça ocasional, irreverente, do tempo em que a lota era uma feira franca e fresca, com o peixe alinhado na areia, com as chatas a carregar das barcas para a praia, com o Pala-Pala num corrupio. O Largo da Marinha era o pátio dos Milagres, homens, burros e camionetas, turistas e curiosos, a tarde a entrar pela noite adentro. O café do Zé Filipe era o verão da lota, o Central era o verão balnear. O Mário Martelo era uma traineira, um café, uma boémia requintada e um belo sorriso que seduziu a Pepita.
Na mesma mesa estava o Luís Preto (também conhecido por Conceição), com uns quilos a mais e a boa disposição de sempre. Poderia ter sido um futebolista de alto nível, se tivesse querido. Outros tempos, menos incentivos que hoje e também uma negligência manifesta, privilégio de talento inato.
O «Ginja» era um miúdo tímido cujo futuro cunhado, o Horta, fazia parte da nossa equipa de juniores, sob o comando do nosso Carlos Marques.
Quando jogávamos fora, lá vinha o menino Eduardo, encostado ao cunhado, para ter lugar na camioneta que nos levava até campos nunca dantes pisados, em regiões inóspitas como o Montijo, o Barreiro ou a Cova da Piedade. Era a idade dos sonhos, para ele e para nós todos que esperávamos, sem grande convicção, um dia ser futebolistas a sério.
O Eduardo cresceu, fez-se um homem e bom jogador. Foi para a CUF, onde eu estava, ao tempo treinada por Costa Pereira, ídolo da nossa meninice.
E assim o Eduardo voltou a percorrer o caminho para o Barreiro, não nas velhas camionetas do Covas, mas no seu pequeno Austin, não para ver os outros, mas para jogar e travar duelos acesos, nos treinos, com o Castro, herói de Sarilhos, gigante à altura de um Fragata com quem se bateu em pelejas de criar bicho.
Os anos passam e certas coisas boas ficam. O Eduardo, hoje homem feito, lá estava também com o Mário e o Luís. Olho-o e continuo a ver um bom companheiro de equipa, sobretudo o miúdo calado, agarrado ao Horta, com olhos de sonho, com olhos de sono, aquele sonho maravilhoso que só a infância nos dá e atrás do qual às vezes corremos a vida inteira…
Foi tudo isto o Central naquele domingo, à tarde com o Carlinhos da Rã, navegador sem complexos, e à noite a poesia de uma esplanada ressuscitada, de um passado ressurgido. Não sei se são melodias de sempre, passadismo a tiracolo, só sei que é bom reencontrar um universo que contou na nossa vida. E estas coisas acontecem a cada passo, a cada esquina. Fiquei com pena de não ter podido falar mais com o Zacarias que me dizia, com um sorriso ternurento «Tenho tanta coisa para te dizer…!».
Também eu, Zacarias, tenho muita coisa para te dizer, recordações que conservam o cheiro a eucalipto do campo do Desportivo, o cheiro a mar que o Rogério (o meu guardião preferido) e o João Caparica traziam ao passar à minha porta, o cheiro ao gelo do Chanoca agarrado ao fato-macaco desse admirável Manuel Santana, o cheiro da oficina do Brandão que não largava o Isidro. Disso e muito mais gostaria de te falar, Zacarias, porque tu foste um menino de ouro naquela equipa de homens rudes, substituíste o grande Jesus, deste de bandeja ao Zé Broa, lançaste o Zé Baptista, tinhas a arte fina dos predestinados. Tudo isto e muito mais te diria, mas não digo para não ficares babado…
E é assim, vê bem, o que faz o Central, para onde me levou o arrais Carlinhos. Menos admirável ficará a minha prima Carolina, mulher do Luís, já habituada às divagações delirantes do pai Justino e à veia poética da nossa tia Lucinda.
Estamos em Agosto, é preciso sonhar porque o tempo é vento e de repente nos apercebemos de que a vida nos fugiu. Os verões são como a vida, passam. E às vezes bruscamente…
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* Publicado em O Sesimbrense de Agosto de 1992.

terça-feira, 29 de março de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 42


O velho de terra franziu a sobranSELHA e saiu da loja...
António Cagica Rapaz

[da série Reflexões]

segunda-feira, 28 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 51




Oliveira do Conde

António Cagica Rapaz

Durante anos, no meu espírito, Oliveira do Conde não foi uma terra mas uma casa de que me habituei a ouvir falar em Coimbra, desde o Verão de 1962, período em que o Mondego não passava de um envergonhado fio de água, despojo tímido da majestosa Serra da Estrela, beirão orgulhoso desgastado por gargantas e penedias. A imagem que fui construindo era a de uma casa imponente, senhorial, berço de famílias de raiz aristocrática, carácter talhado no granito, à imagem do patriarca Afonso da Maia a que o génio de Eça de Queirós deu forma e dimensão sublimes. Foi por outro Afonso, filho do Doutor Maurício, que conheci a família que lá viveu.

Gerações sucessivas habitaram casas como aquela, que eu nunca vira mas que imaginava, casas onde havia amor à terra, nobreza de carácter, integridade, temor a Deus, princípios e regras, respeito pela palavra dada, sentimento de honra, a sombra de árvores seculares, segurança e estabilidade, a protecção das paredes espessas que testemunharam alegrias de casamentos e baptismos e abafaram, em silêncio pesado, as grandes dores, as perdas irreparáveis.

Acabei por ir a Oliveira do Conde, no mês passado. A casa fica no largo do pelourinho e é como a imaginei, na traça bem portuguesa, na robustez, na imponência, na sobriedade das formas, três séculos que nos emocionam e nos deixam contemplativos.

- Eu sou plebeu, a Isabel é que tinha raízes aristocráticas, embora não fizesse alarde.

Assim nos recebeu o António, hoje o senhor do solar. O engenheiro António Fonseca é tio do Afonso e do Jorge Maurício.

Em 1962, foi o Afonso que me levou a casa do tio que, juntamente com a Isabel, me aceitaram na família, até hoje. Desta vez, foi o Jorge que se juntou a nós, em Oliveira do Conde. O Jorge pertence mais à Silvã, pela mãe, irmã da Isabel. Formou-se em Direito, em Coimbra, e nunca perdeu o contacto com a terra beirã.

A Sesimbra vinham muitas vezes o António e a Isabel, em veleiro que ancoravam no porto de abrigo e que deixavam ao cuidado do João Catita.

Despedimo-nos do António no largo do pelourinho, saía ele da missa, ouvia-se o sino da igreja, ali bem perto. O António há muito que não navega, mas ainda cavalga uma moto potente, dá umas braçadas vigorosas na piscina, recebe os amigos, lê muito e ouve música que saboreia como um vinho raro, na cave daquela casa deslumbrante onde a rocha empresta ainda mais suavidade à voz da Maysa Matarazzo. As grandes emoções vivem-se em recolhimento, entre paredes espessas de granito...


1999

sexta-feira, 25 de março de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 2



Preâmbulo

António Cagica Rapaz

Um jogador de futebol que escreve, é pouco comum. Frequente é a proliferação de biografias das grandes vedetas, com mil fotografias, textos laudatórios, panegíricos exaltadores das qualidades dos ídolos, evocação exaustiva dos feitos gloriosos, golos marcados, troféus conquistados, tudo centrado na figura do futebolista famoso.

Nada disto espera quem tiver a bondade de ler este livro. Nunca fui vedeta, não passei de razoável praticante, apenas fui capitão de uma modesta selecção de Setúbal, em juniores, em 1962, minha única e obscura distinção. De resto, fui um estudante que jogava ou um futebolista que estudava, não sei bem. Limitei-me a passar pelo futebol, a atravessar os campos, correndo atrás da bola e, sobretudo, de um cursozinho de Letras.

Fui amador em Sesimbra, não-amador na Académica, profissional na CUF e acabei (prematuramente, aos 27 anos) a minha carreira em Belém.

Curiosa e ironicamente, a minha relação com o futebol teve início e fim no Restelo. O meu pai era sócio e, lá em casa, éramos todos do Belenenses. Chorei quando o Martins tirou o título ao Belenenses, em 1955, ao cair do pano, nas Salésias. E assisti à inauguração do estádio do Restelo, em dia chuvoso. O meu ídolo era o Matateu…

Comecei a escrever crónicas, em 1971, no Diário de Lisboa, a convite de Jorge Soares que me entrevistou sobre o momento atribulado do Belenenses, e o meu primeiro escrito foi sobre o meu conterrâneo Fragata, um espantoso jogador que nunca saiu de Sesimbra. Depois, centenas de crónicas se seguiram, em vários jornais e na rádio…

O título desta colectânea designa, por um lado, a função que mais me agradou desempenhar como jogador e evoca, por outro, a primeira rubrica que criei, no Diário de Lisboa, como mais à frente se verá.

O sub-título é uma homenagem ao incomparável Camilo José Cela que descobri ao ler os seus delirantes e fascinantes Onze contos de futebol. Perfidamente diria que consegui fazer mais do que o Nobel Camilo. Melhor é impossível…

Devo confessar que utilizei a designação de contos sobretudo para introduzir a alusão a mestre Cela, já que, na realidade, a maioria dos textos aqui apresentados não são contos mas crónicas que ilustram o que julgo ser um outro olhar, uma abordagem diferente ao universo futebolístico.

Esta forma de olhar o futebol deve-se, naturalmente, a uma sensibilidade que não é boa nem má, é apenas a minha. Em verdade, nunca levei o futebol muito a sério, conservei mesmo certa forma de deslumbramento, quase não acreditando que estava ali a jogar, a tratar por tu, a travar amizade, até, com grandes nomes como o Eusébio, o Hernâni, o Coluna ou o Hilário. Por razões que não vêm agora à colação, nunca me senti futebolista de corpo inteiro, nunca perdi a parcela de inocência da meninice, tendo-me sentido sinceramente feliz e honrado quando joguei pela primeira vez na Luz, contra o grande Eusébio. Tal como foi particularmente emocionante ter defrontado o meu ídolo, o velho Lucas, o inesquecível Matateu, na Tapadinha. Melhor ainda foi termos ficado amigos, para meu contentamento e orgulho.

Talvez tenha sido, de certa forma, um pouco marginal, tanto no futebol, onde nunca me entreguei a fundo, como no jornalismo que pratiquei sem compromissos nem submissões, livre e independente. E foi assim, com este olhar curioso e contemplativo, que fui observando o mundo do futebol, fixando a minha atenção nas pessoas que conheci, dentro e fora dos campos. Sem, no entanto, abdicar do direito (presumindo possuir algum conhecimento de causa) de criticar, aqui e ali, talvez de forma incisiva e mordaz.

Em verdade, julgo ter escrito sobretudo na condição de testemunha privilegiada, como alguém que viveu o futebol por dentro, a quem foi dado pisar relvados míticos e conhecer um pouco dos bastidores. Por isso, esta colectânea não será o diário de um capitão de longo curso, antes se parecerá com um livro de bordo redigido por um humilde grumete que vai dando conta, à sua maneira, do que viu e ouviu, do que sonhou e inventou, do que as sereias lhe segredaram ao longo de uma viagem que começou e findou no Restelo.

Infinitamente mais do que as vedetas, interessaram-me os homens, as pessoas, algumas célebres como Alves dos Santos, Carlos Pinhão Anselmo Fernandez ou José Maria Pedroto. Mas igualmente alguns desconhecidos, dignos de admiração.

O futebol não é um mundo perfeito, ele é como nós, tem os nossos defeitos e as nossas virtudes. Nem tudo nele é podridão e desencanto, também há beleza, sonho e até poesia. Quase por acaso, porque me convidaram, comecei a escrever, a partilhar ideias e convicções, a olhar o jogo da bola e os seus actores de uma forma que talvez tenha uma pontinha de originalidade e me deixa a ilusão de não ter dado muitos pontapés na gramática nem na civilidade.

Escrevi com gosto, como gosto, como gostei de jogar, melhor ou pior, como pude, como fui capaz. Mas sempre de cabeça erguida, com dignidade, livre e directo, mais em jeito do que em força…

quinta-feira, 24 de março de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 1



Prefácio

Pedro Martins


É bem sabido que não há dois livros iguais à face da terra. Ainda assim, vale a pena explicar a diferença desta obra.

Nos nossos dias, livros sobre o mundo do futebol, como aquele que o leitor acaba de abrir, serão quase multidão. E que um futebolista se disponha a escrever sobre a modalidade – antes ou depois de ter pendurado as botas – pode ser caso raro, mas não é caso único. Há exemplos recentes nas colunas da imprensa escrita, e deve, a propósito, dizer-se que boa parte das crónicas que se seguem viu primeiro a luz do dia nas páginas de alguns dos principais jornais desportivos portugueses – o Record, A Bola e a já desaparecida Gazeta dos Desportos. Como se compreende, nada disto afirma, só por si, a singularidade de um estatuto.

Um livro começa-se pelo princípio e para tanto é mister ler-lhe o título, onde, neste caso, já quase tudo vai dito sobre quem escreve e aquilo que se deixa escrito. Libero e directo oferece-nos verdadeiramente um outro olhar sobre o futebol.

Diz-se que o futebol é o desporto-rei. António Cagica Rapaz não vai contra isso. Mas afirma que o rei vai nu. Nas últimas décadas, o futebol mudou muito, e para pior. A emergência do fenómeno televisivo trouxe demasiado dinheiro ao circuito. As mutações estão à vista: o jogo deu lugar ao negócio, o maior espectáculo do mundo transformou-se numa indústria que assume aspectos detestáveis, e cuja máquina poderosa não cessa de alienar as consciências e as vontades.

No fundo, só não vê quem não quer, toda a gente sabe que é assim. Mas alguns, submetidos ao anonimato, não têm a menor possibilidade de o dizer alto e bom som; e outros, podendo fazê-lo – devendo fazê-lo –, preferem calar, quando se não limitam à expressão cómoda, porque inofensiva, de uma qualquer trivialidade. Não assim com Cagica Rapaz. O antigo defesa da Académica e da CUF joga agora ao ataque: afirma, acusa, aponta o dedo, questiona, denuncia. Cada crónica vale por um pontapé livre, em posição frontal.

De certo modo, este livro é o testemunho privilegiado de alguém que, depois de ter conhecido os meandros do futebol – primeiro como jogador, depois como jornalista –, já não tem ilusões.

Mas estou em crer que António Cagica Rapaz perdeu a ingenuidade para preservar a inocência.

Só assim se explicará que, a despeito dos ventos álgidos que, num sopro de desencanto, perpassam muitas das páginas deste livro, ainda brotem, por entre os escombros, algumas flores de esperança. É um renovo de paixão que nos devolve a crença numa certa sobriedade, própria da pureza que houve nos melhores anos das nossas vidas, ou não se dirigisse este livro a algumas gerações de adeptos que cresceram para o futebol fascinadas pelo sortilégio dos bonecos da bola, suspensas dos relatos radiofónicos, num tempo em que os jogos se realizavam sempre ao domingo e os jornais desportivos ainda não eram diários.

Só assim se entende o olhar terno e saudoso lançado sobre a velha Tia Ana, que, no centro de estágio da CUF, preparava carinhosamente os pequenos-almoços aos jogadores, enquanto ansiava pelo regresso de seu filho, que estava em África, na guerra.

Só assim se compreende a profissão de fé no exemplo do menino brasileiro que, profético, nos garante que nenhum jogo está perdido enquanto Pelé estiver em campo.

Só assim se justificam as aproximações feitas à poesia e ao teatro, acentuando a dimensão estética com que o futebol, apesar de tudo, apesar dele próprio, será sempre capaz de surpreender.

Só assim se percebe que o autor, apesar deste futebol, se não canse de pensar a essência do jogo e sugira algumas alterações profundas às leis que o regem, de forma a salvaguardar a beleza do espectáculo e a garantir a justiça do resultado.

Hoje como sempre, Cagica Rapaz escreve pequenos textos sobre grandes paixões. Foi assim com Sesimbra, terra que o viu nascer, é assim com o futebol – estou em crer que será sempre assim. As crónicas que se seguem são uma colecção de retratos impressivos e histórias que nos prendem da primeira à última linha. São textos curtos mas admiráveis, plenos de humor, paixão, ternura e lucidez. São setenta e tal textos, curtos mas admiráveis, plenos de humor, paixão, ternura e lucidez.


Cabe ao leitor dar o pontapé de saída…

quarta-feira, 23 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 51



Passa por mim no Central*

António Cagica Rapaz

O café Central foi durante muitos anos o coração da terra, ponto de reunião e de passagem, vizinho do velho cinema, parceiro do Grémio, teatro de partidas memoráveis de bilhar, salão de cavaqueira dos homens notáveis de Sesimbra. O café, qualquer café, era coisa de homens e o Central não fugia à regra, pelo menos no Inverno, já que no Verão a esplanada enchia de cor e animação o largo, num vai-vém entre as imperiais do António Luís e o cafezinho concorrente do Damião.

O Central do Inverno era a atmosfera acolhedora dos domingos de manhã, o vozeirão do Doutor Maurício, o cheirinho da bica que o Sô Zé tirava com tranquila suavidade, o jornal na mão, a barbinha feita, um certo ar de festa, a voltinha ao Espadarte, ver o mar, o mar e o sol, o sol de Inverno.

De Verão, era a sombra do Grémio e das árvores, de manhã, e o colorido dos chapéus de sol à tarde, as rendas das senhoras, a amenidade do crepúsculo e o saltinho ao muro da lota.
Era o ritmo certinho das estações, os Invernos chuvosos, com o Central a ver o pagode passar para a bola ou a sair da matinée do salão.

O Central era ainda a rabeça depois do almoço, com a rapaziada da oficina do Brandão, de fato macaco, laracha pegada, tangerinas saborosas, dois toques em bolas improvisadas, a vila tranquila, a vida desfila em passo vagaroso à imagem do Sô Zé, imperturbável, magnífico de dignidade com os seus cabelos brancos, o olhar doce e malicioso, o porte nobre, verdadeiro profeta, apóstolo dono do tempo, senhor do templo que era o Central.

A magia do bilhar seduzia-me. Olhei com admiração a fina execução do senhor Arménio, o talento genial do Chico Cagica, a arte do Dr. António Vitorino (meu mestre e amigo) e fui treinando manhãs a fio, no café do Chagas onde o bom João do Hospital me deixava jogar, às escondidas, sem pagar. Ia ouvindo o Talismã (o seu programa da manhã) e fazendo bolas a girar, com efeito do lado da cocheira do Fartura, avô do Manel Campino.

O Central era a minha segunda casa. A minha mãe telefonava, à boca da noite, nem dizia quem era, limitando-se a fórmulas simplistas do estilo

«É para dizer ao meu filho que venha jantar». Concisa, sintética e directa. Era assim a Dona Amália. E o Hernâni, o nosso admirável inspector Cachopa, nem precisava de grandes investigações para saber quem lançava o apelo telefónico. Se mãe há só uma, filho um só há. E o veloz Hernâni (belo companheiro dos matraquilhos na tasca do Mestre Adelino) transmitia-me a mensagem. Era outro tempo, outro Central.

Há dias, em fugida curta, passei à porta do Central e voltei a vê-lo como uma igreja sombria, um quarto escuro de casa antiga com um oratório em cima da cómoda e um relógio de pêndulo de tic-tac monótono que só dá horas sem sorte…

O Julião chamou-me e encostei-me à montra como anos atrás. O António Luís lá estava, ao balcão, enquanto o Cândido ia e vinha. Noutro tempo, o Cândido folgava à quarta-feira e ia à pesca. O Hernâni talvez preferisse os romances policiais enquanto o António da mercearia nem parecia folgar pois estava lá sempre, entre duas postas de bacalhau demolhado e um quilo de açúcar amarelo. O meu primo Rui (do João Mota) por lá passou e fez das boas a uma pobre surda que nem sonhava o que ele lhe dizia ao fingir falar de linguiça e de feijão fradinho.

Com o Julião estava o João Mau, professor primário, filósofo da Pedra Alta, herói de guerras lendárias entre seitas desta e daquela banda, refém amarrado à porta do cemitério, companheiro fixe, inesquecível intérprete da célebre peça na qual o Jonas lhe dizia «Obrigado João, és um bom rapaz, arranjaste umas velas para o meu moinho».

A famosa réplica «Ninguém» do Romeiro, no Frei Luís de Sousa, não é nada comparada com a tirada do Jonas. Era na Vila Amália, era a Mocidade, era a nossa mocidade, era o João Mau que um dia abalou para a Suécia, com o António Júlio e o Jorge Martelo, três mosqueteiros, três aventureiros que regressaram como Ulisses voltou a Ítaca. O João Mau foi anticonformista, rebelde, contestatário, mas um coração puro e uma generosidade autêntica.

Juntou-se-nos o Alfredo Filipe e a malandrice insinuante veio com ele, agravada com a chegada do Ernesto Corneta, seco de carnes, pronto para proezas que tenho pudor de revelar, porque sou tímido por natureza, sisudo por parte do meu pai e pouco abelhudo por banda da minha mãe que (não sei se sabem) costumava telefonar para o Central. Ah, já tinha dito?

Desculpem lá, «tenho andado com a cabeça tão esvaída», como diz a Judite, prima da minha mãe que costumava... Pronto, pronto, não se fala mais nisso!

Esta visão de um Central sombrio pode vir da minha imaginação em dia cinzento. E o que pensará, talvez, o Quim, do João Alemão, ao ler estas linhas em Agosto, com Sesimbra cheia de cor, de movimento, algazarra, azáfama dos mil comerciantes que a terra tem, boutique sim, restaurante não, carros em cima dos passeios onde já não se passeia só se passa, entalado entre a Fortaleza incontornável e a modernidade que nos asfixia.

Na oficina do Brandão já não estão o Doze nem o Chico Diabo a quem eu pedia esferas para jogar às bolas, cabos de palheta que até estalava.

Era no tempo em que a oficina cheirava a mar, com os pescadores que vinham ver se o motor estava arranjado, antes de abalarem até à longínqua doca, estafa garantida, à torreira do sol, marginal adiante que só começava a descer depois do Álvaro Tanoeiro.

A oficina hoje é o comércio moderno, montras coloridas, gente que se cruza e se acotovela ao som da música que substituiu a cadência da bigorna e do martelo e de luzes menos cintilantes que as do bico de soldadura.

Felizmente lá está a minha adorável amiga, fada maravilhosa dos produtos biológicos, tão naturais como o seu sorriso luminoso.

Esta metamorfose da Oficina é a grande mudança que Sesimbra sofreu. Para melhor, para pior? É difícil dizer, é assim, é inevitável, é a vida que passa por nós como nós passamos pelo Central.
Eu passei e olhei, para dentro e para trás, até ao fundo das recordações.

O Augusto do «Salva-Vidas» também por lá passou e com ele a evocação de outras peregrinações entre o campo do Desportivo e a doca, com paragem na Capitania. E aqui tens, João António Carapinha Chagas, caro João Mau, como nascem estas crónicas breves, escritas (como disse recentemente) ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor.

É assim, é o mar que chama por mim. O mar, o Central e o Manel que está comigo em todas, do Caneiro à Doca, este magnífico Manel António, chamador das ruas do silêncio que teria gostado que eu falasse aqui das lições do Pila («amanhê», «despois d’amanhê») do mano a mano entre o Ernesto (com a peixaria) e o mestre Zé Brandão a abrir a porta da oficina. E do fantasma chamado Leonarda que aparecia no Grémio, ali à beira do Central, este Central que se vai perdendo na bruma do tempo, como barco engolido pelo nevoeiro. Este Central que me dizem estar em vias de trespasse, palavra ambígua que significa mudança comercial e também morte. Talvez por isso vi um Central escuro, de fumo na montra e noite da alma. O Central está de luto, pela esplanada que era um pátio de cantigas e sonhos de Verão, um teatro de comédias de arte estival, palco, feira de vaidades um pouco, mas mais que tudo quadro admirável de cores vivas, os grandes chapéus de sol, os vestidos das senhoras, o encanto discreto de um tempo trespassado.

O Central está de luto pela lota, pela doca, pela vila, pela vida, por nós, pela nossa juventude, pelas nossas ilusões. O Central era o coração de Sesimbra e está cansado, arrasta-se como os últimos passos do Sô Zé, carregados de anos e melancolia, como os velhos que, nos bancos do jardim, contam as badaladas do sino da igreja de cima, até lhes tocar a vez, a finados.

Entretanto, Manel, vai passando no Central. Lá ficou um pedaço de mim…

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*Publicado em O Sesimbrense de Agosto de 1991.

terça-feira, 22 de março de 2011

NOTAS & NOTÍCIAS, 6

Novidades na Primavera...
Sem alaridos, com a discrição que se impõe e a saudade de sempre, Boa Noite, Ó Mestre! completou um ano de existência faz hoje uma semana. Neste tempo de renovo e mudança em que entrámos, chegou entretanto ao fim a publicação da série Confraria Mínima, onde se reuniram todos os escritos que António Cagica Rapaz publicou, ao longo de seis anos, na Sesimbra Eventos. Mas o lugar habitual das sextas-feiras não fica vago. Vai acolher, já a partir do próximo dia 25, as páginas do segundo livro publicado pelo autor: LIBERO E DIRECTO - Setenta e tal Contos de Futebol, saído a lume em 2003 com a chancela da Garrido. Na véspera, será publicado o prefácio, da lavra deste vosso modesto escriba. Já amanhã, e durante três semanas, a rubrica Ao Reminho Pela Borda d'Água assenta arraiais no velho Café Central. BOA NOITE, Ó MESTRE!

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 41



Se o DAVID tivesse nascido em Sesimbra seria na mesma SALOIO?
António Cagica Rapaz


[da série Reflexões]

segunda-feira, 21 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 50


Obrigado, João

António Cagica Rapaz

- Monstro, coração de tigre! – era o grito de ódio do jovem Polónio, patrício romano, no palco da Vila Amália, tendo por alvo o imperador interpretado por João Salgueiro.

Era nos finais dos anos cinquenta, na noite de despedida do padre João, de malas já feitas, com a Ericeira por destino. Na primeira fila, estava sentado mestre Augusto Formiga que, uma semana antes, abandonara a encenação da peça, tendo ficado a tremenda responsabilidade sobre os ombros do João Salgueiro. Tratava-se de um drama em três actos intitulado “Mãos Vermelhas”, designação tão desprovida de insinuação política como a actividade da Mocidade Portuguesa cujo centro funcionava por baixo do salão da Vila Amália, ao lado da escola dos órfãos que tremiam com o vozeirão da Cecília Cruz...

A Mocidade era a nossa outra casa, com o jornal de parede, o ping-pong, o bilhar, as damas, os acampamentos, o voleibol, o atletismo, a natação, o teatro, a televisão e, sobretudo, a convivência saudável, cantando e rindo, é mesmo verdade, graças à boa vontade, à disponibilidade e ao entusiasmo do João Salgueiro.

Na Mocidade cresceram e fizeram-se homenzinhos muitos dos que, anos depois, haveriam de marcar posição numa sociedade pluralista e democratizada cujos valores não constituem novidade para quem frequentou aquela casa.

Durante muitos anos, em Sesimbra, o teatro despertou paixão, teve público interessado e intérpretes de valor. Um deles foi o João Salgueiro com quem tive a oportunidade de contracenar e de admirar em desempenhos notáveis como na peça “Fátima, Terra de Fé”.
Ao longo da sua vida, João Salgueiro dedicou muito de si, do seu tempo, da sua energia e da sua paixão, a actividades de natureza social e cultural, na igreja, em colectividades de recreio, em jornais, sempre com seriedade e competência.

Nunca nos perdemos de vista, ligados por certas afinidades, as práticas saudáveis e o espírito da nossa Mocidade, o gosto pelo teatro, a recordação do padre João. Partilhámos afectos e valores, causas e brios, certa forma de cumplicidade, alguma nostalgia das manhãs frias de cada 1º de Dezembro, com missa e cornetim no momento do ofertório. E, sobretudo, das tardes inesquecíveis, na Vila Amália.

Continuamos a cruzar-nos, antes do almoço, em cada domingo, junto do palco gigantesco que é o largo da Marinha. Por trás de nós, o cenário constituído pelo casario, personagens que se movimentam ao fundo. O muro da lota fica à boca de cena e o mar é a plateia infinita. Trocamos réplicas, como nas “Mãos Vermelhas”, e depois cada um vai à sua vida, saindo pela esquerda baixa, até para a semana.

Já não há teatro em Sesimbra, mas, graças a Deus, não esquecemos os nossos papéis e a chama da nossa Mocidade não se apagou.

Obrigado, João!

2000

sexta-feira, 18 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 48

as crónicas da Eventos...



Confraria Mínima*

António Cagica Rapaz

A designação surgiu no decorrer de uma conversa bem humorada a propósito de uma partida que pregámos ao António Reis Marques, por iniciativa e com a benção do mano Francisco. A inspiração teve origem na evocação de um pseudónimo usado pelo Rafael (na circunstância “Frei Mínimo”) e a aprovação foi imediata, espontânea e total, dentro do espírito que caracteriza esta companha que, alegre e entusiasticamente, enfrenta o mar de Sesimbra Eventos carregados de desafios à nossa imaginação, ao nosso escasso talento e ao nosso fraco saber.

Apesar disso, tem esta publicação recebido bom número de manifestações de agrado, provenientes de desencontrados quadrantes, sendo legítima a nossa (in)satisfação, pois sabemos que cada edição é um desafio renovado.

Não é habitual (talvez por convencionais resquícios de pudor duvidoso) vir a público elogiar a equipa de que se faz parte. Porém, acontece que sempre tive uma costela não propriamente anarquista mas um tanto anticonformista, e não é agora, a caminho dos 60 anos, que vou acertar o passo. Por isso, não resisto ao desejo de manifestar o meu contentamento por integrar esta “Confraria Mínima” que só existe na nossa cumplicidade e só vive pela nossa amizade.

A primeira e grande observação que me apetece sublinhar é a existência de um extraordinário clima de comunhão que nos leva a partilhar ideias, a fazer sugestões, a discutir assuntos, a debater princípios, a trocar opiniões, a criticar os nossos trabalhos, tudo sem uma quezília, sem farpas envenenadas, sem suspeitas nem insinuações. Ninguém se põe em bicos de pés, não há qualquer tenor, prima dona ou viciado em protagonismo. O que não significa que sejamos um bloco monolítico, alinhado ou acomodado. Pelo contrário, somos todos bem diferentes, cada um com as suas características, teimosos, opiniosos, de ideias bem definidas, com abordagens nem sempre coincidentes, mas com uma matriz afectiva e ética muito semelhante. Daqui resulta uma complementaridade frutífera, uma truculência mortífera e uma fraternidade beatífica.

O Paulo Pitôrra é uma espécie de Astérix, efervescente, incansável, hábil no teclado, no corte e costura da composição e da paginação, o que não o impede de ter uma porção mágica de projectos a borbulhar na marmita. Sem a sua tenacidade e a sua persistência nunca teríamos colhido “O que veio à rede”. É o “chofer” da barca, mas conhece os ventos, as estrelas e tem sempre um caminho marítimo para descobrir…

O Raul Rodrigues continua a buscar no fundo das minas da sua engenharia memorial, temas e imagens, figuras e acontecimentos que desenterra, limpa, vasculha, retoca e expõe com sensibilidade, talento e a precisão de quem conhece, de quem sabe reconstruir e reviver. De cada vez que, a pretexto de uma pesquisa, vem à nossa terra, parece um menino deslumbrado no arraial das Chagas, falando com este, abraçando aquele, beijando aquela. Cada visita sua é uma festa que não perdemos porque, no Outono das nossas vidas, cada momento destes é para ser apreciado, saboreado, eternizado. E quem não souber compreender que estas coisas simples são o pão e o vinho das nossas existências, tarde de mais se aperceberá do desperdício…

O António Reis Marques, é o nosso decano, o nosso “velho de terra”, o guardião do templo da sabedoria, enciclopédia que consultamos com respeito e parcimónia à mistura com a irreverência e a malícia de uma companha disciplinada mas divertida. Ninguém sabe tanto sobre Sesimbra como ele, mas os seus horizontes não se ficam pelos limites do Concelho. O nosso António mais velho é homem de muitas leituras e pensamentos próprios, um vulto insigne no panorama cultural de Sesimbra.

Ele não vai gostar, mas não vou esperar que atinja a terceira idade para lhe prestar a homenagem que, por mil razões, merece. Primeiro porque quando, por sua vez, for promovido a “velho de terra” já eu estarei sob a dita. Depois, porque o valor das pessoas deve ser reconhecido e realçado tão cedo quanto possível, enquanto há muito a esperar da sua acção. Por isso, é com todo o gosto que destaco o papel preponderante do Pedro Martins ao leme desta embarcação. A sua formação jurídica não o impediu de devorar obras, volumes, alfarrábios e pergaminhos das mais variadas ciências, ávido de saber, sequioso de cultura, devoto do pensamento, praticante da opinião, senhor de uma bagagem intelectual admirável, navegando tão à vontade na Filosofia como na História ou na música clássica. Fervoroso admirador de Teixeira de Pascoaes e José Régio, percorre a planície alentejana para ouvir Mestre Telmo, surgindo (com toda a naturalidade e mérito) como herdeiro espiritual de Rafael Monteiro.

São estes os membros mais veneráveis desta simpática confraria, que alberga ainda um “noviçoso”, ou seja, um noviço viçoso, de sua graça Joaquim Manuel Penim, meu companheiro de infância e de futeboladas inesquecíveis.

Não sei o que o futuro nos reserva, não sei até quando seremos capazes de navegar a favor deste vento de alguma originalidade e certa qualidade. Entretanto, vamos andando, ao reminho pela borda d’água, enquanto valer a pena, enquanto nos der prazer. Saberemos partir quando for tempo, porque nunca nos colocámos sob os trémulos holofotes de uma pretensa celebridade de trazer por casa, nunca nos atropelámos nem nos acotovelámos para ficar à frente na fotografia.
Sabemos é que estes anos com uma obra de nível muito razoável são uma realidade incontestável. E, sobretudo, temos a consciência do privilégio que foi e continua a ser conviver neste clima magnífico de camaradagem, amizade e bom humor.

É esta a boa companha a que me orgulho de pertencer e à qual assim presto a minha homenagem.

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* Publicado no n.º 27 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2003.

quarta-feira, 16 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 50



A medida das coisas*

António Cagica Rapaz

Desde que o Mundo é Mundo o Homem interroga-se sobre o sentido da vida, de onde vimos, para onde vamos, a felicidade, o destino, a fatalidade, o acaso, Deus e o Diabo.

Questões várias e profundas que têm sido tratadas por filósofos, cientistas, pensadores, estudiosos, curiosos, magos, iluminados, aprendizes de feiticeiro e, até hoje, ninguém conseguiu apresentar uma tese totalmente convincente, que responda satisfatoriamente às dúvidas de cada um de nós.

E assim ficamos na nossa, acabando por adoptar a filosofia de vida que nos convém, o que no fundo não será pior pois se houvesse um padrão único a liberdade individual ver-se-ia limitada ou condicionaria o comportamento.

Nós temos uma estrutura de base e somos sujeitos a influências que começam no seio da família, depois na escola, alargando-se o círculo aos diversos meios que frequentamos. Da nossa infância conservamos rastos e restos dessas influências que nos acompanham toda a vida. Há pessoas que nos marcam para sempre, mesmo depois de deixarem o nosso convívio.

Sempre senti a necessidade de personalizar os modestos conceitos que trago em mim, sempre pensei que as pessoas são o que de mais importante existe na nossa terra, na nossa vida. Ao longo destes anos tenho-vos falado da nossa terra através da nossa gente, das pessoas que nela vivem, que por ela passaram, que dela gostam como eu gosto.

O meu primeiro artigo num grande jornal («Diário de Lisboa»), em 1971, consagrei-o ao Fragata. Noutros, sempre que pude, falei no Capitão Domingos, no Alfredo, no Deodato, eu sei lá, por prazer, para lhes dar prazer, porque me fazia bem e a eles também. Na «Gazeta dos Desportos» foi o Vítor Baptista e foi sempre com a mesma sinceridade que procurei dar destaque a pessoas que, por isto ou por aquilo, me inspiravam esse desejo.

Alguém me disse um dia que cada um desses escritos era um acto de amor. É verdade que sim e hoje tenho uma consciência mais nítida dessa realidade. Amar o próximo era o que nos ensinava o Padre João, esse homem maravilhoso que continua nos nossos corações.

Para a maioria das pessoas é difícil amar os outros, amar a Natureza, amar as coisas belas. Porque são egoístas, em alguns casos, ou simplesmente porque não sabem, nunca aprenderam. Amamos algumas pessoas e somos mais ou menos indiferentes a outras.

Durante muitos anos vi os outros através de um prisma selectivo, defini certos padrões e avaliei as pessoas à luz desse critério. Gostei muitos de alguns por esta ou por aquela razão, sem aprofundar, e não gostava de outros apenas por este ou por aquele motivo, sem ir mais longe. E isto assumido de forma totalmente honesta, sincera e convicta.

Cometi assim um erro enorme que muita gente comete, que é o de tomar a parte pelo todo, sem ver que nenhum de nós é um bloco monolítico, que não somos só isto nem só aquilo, que somos isto talvez mas também somos ou podemos ser outra coisa, pois ninguém tem só defeitos nem só virtudes.

Podemos não suportar alguém por um motivo sem ver que essa pessoa (embora possa ter de facto esse defeito) pode também ter qualidades que nós nem procuramos descobrir. E quando as vemos não lhes damos o justo valor, obcecados pelos nossos preconceitos ou juízos prévios. Por isso é preciso abrirmos o nosso coração, para não gostarmos apenas de alguns mas de todos, o que não impede preferências que são naturais.

A vida é por vezes cruel e fere-nos dolorosamente. A dor traz consigo um sentimento de revolta, de injustiça, de incompreensão. Olhamos para trás, lembramo-nos das palavras do Padre João, duvidamos de tudo e de Deus, ficamos à espera que respondam à nossa interrogação «Porquê». Porquê nós, porquê agora, porquê assim?

O Cristo na cruz permanece calado, o mar silencioso, o céu distante e a vida à nossa volta prossegue sem se deter.

De repente, alguns que nos olham serão capazes de tomar enfim consciência de que são felizes há muitos anos, sem saberem. Felizes por terem uma vida normal, banal, sem dramas, com saúde, sem sobressaltos. Vão e vêm, estão vivos, estão juntos, comem, dormem, passeiam, até ao Espadarte e acham isso tão normal que nem apreciam. A esses eu sugiro um momento de reflexão que os leve a apreciar devidamente a felicidade que têm. E a todos desejo que, nas horas difíceis, se as tiverem, vos apareça um amigo como o Manel António que veio sem eu chamar, que sofreu por mim e comigo, que me ensinou a abrir o coração, a amar por inteiro, a sentir mais e a pensar menos, a olhar os outros, todos, com amor, a ver neles o todo e não apenas uma parte.

Estou a sair do abismo, sinto-me renascer porque hoje vejo os outros.

Não só olho mas vejo. Vejo que alguns mudaram, talvez, para melhor, mas eu próprio mudei, vendo neles o que têm de melhor.

É a dura experiência da vida, do sofrimento que deu lugar a algo de novo, que dá outro sentido à minha vida.

O amor é a medida de todas as coisas, diz o poeta. Mas o amor sob diversas formas, que nos leva a gostar das pessoas mas também das coisas, a admirar a beleza, a ser sensíveis aos pequenos nadas que são a essência da vida.

Esta abertura, esta disponibilidade, esta bonomia leva-nos a um maior equilíbrio e a uma grande serenidade.

Perante esta transformação, de novo interrogo Deus para tentar compreender e penso no Padre João que me fazia ler epístolas e parábolas na missa das crianças. Como gosto de parábolas, sempre vos digo que por vezes percorremos um caminho sem nos apercebermos da beleza que nos rodeia. A nossa sede de aventura leva-nos a olhar em frente, ao longe, em busca do infinito, quando o ideal estava ali mesmo, a nosso lado.

Longe não é no fim do mar. Longe é aqui, à nossa porta, quando não sabemos ver. Mas nunca é tarde…
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* Publicado originalmente em O Sesimbrense.

terça-feira, 15 de março de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 40



Sempre bem disposto, bem lhe poderíamos ter chamado António do Porto Alegre...
António Cagica Rapaz



[da série Reflexões]

segunda-feira, 14 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 49



Zacarias

António Cagica Rapaz

A defesa era imponente, gente de pêlo na venta, o João Caparica, o Manel Santana e o Jeremias Baeta, o queixada pé-de-chumbo.

Na baliza, o imprevisível Ilídio. No meio campo, mandava o temível Miguel Ferrinhos, libertando o Izidro para infiltrações subtis e golpes de cabeça insuperáveis. Na frente, Zé Filipe, Barlona, Zé Broa, Jesus e Pólvora, um senhor quinteto. É esta a mais antiga equipa do Desportivo de que me recordo. Muito rapidamente o Jesus saiu de cena, dizendo adeus aos rectângulos onde deixou a sua marca de goleador possante, e, para o substituir, surgiu um rapazinho tímido, com um belo pé esquerdo, toque suave, subtileza, técnica requintada, mas visível fragilidade.

Lançado no meio daqueles calmeirões, o Zacarias era um principezinho loiro, quase a pedir desculpa por estar ali. Mas foi-se afirmando, ganhando robustez, domingo a domingo, por esse distrito fora, em campos ásperos, com adversários intratáveis, rivalidades históricas, o Ramiro, do Amora, e outros que tais.

Aos poucos, foi impondo o seu estilo, a limpidez e o talento natural, perceptíveis em cada gesto. Quase lhe levei a mal quando o vi bater o pé, ombrear em execução com o Di Pace, roubar a bola ao Matateu, do meu Belenenses que veio jogar a Sesimbra em 1954, ano de triste memória, maldito Martins.

- Zacarias, prà braca! – ficou célebre a voz de comando do velho Desidério Hertkza, um húngaro que o Zé Brás albergou no Hotel Espadarte por falar línguas, e que treinou, durante anos, o Desportivo.

- Zacarias, prà braca! – insistia e teimava o bom Desidério, no final dos treinos, quando os guarda-redes eram submetidos a fuzilamentos impiedosos. O Ilídio saía de lá sem poder mexer-se e o Zacarias ia fazendo a vontade ao “mister”, embora não fosse um artilheiro credenciado. Cada um tem os seus predicados e o Zacarias ficou na retina dos apreciadores de técnica apurada, com o seu estilo elegante, classe de principezinho...

2000

sexta-feira, 11 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 47

as crónicas da Eventos...



Cá se fazem…*

António Cagica Rapaz

- Vens para baixo? Vamos beber uma imperial?

Foi há pouco tempo, o corpo da nossa amiga acabara de descer à terra. O cemitério começa a esvaziar-se, os grupos vão-se diluindo devagar, lá fora um carro apita, lá em baixo o mar permanece bonito, prateado e indiferente, a vida já retoma os seus direitos…

Não aceitei o convite para a imperial e fiquei a pensar que é sempre assim, em cada funeral. Juntam-se os familiares e amigos, todos contritos, unidos na dor ou, pelo menos, na tristeza, envoltos num manto de solidariedade que as circunstâncias propiciam. Nesses momentos, a estranha magia da morte aproxima as pessoas, devolve-lhes uma espécie de pureza original e uma fraternidade tão sincera como efémera já que só dura a trégua de um funeral.

Terminada a cerimónia fúnebre, a vida continua, mesmo para os familiares mais chegados que vão ter de arranjar forças para prosseguir, para enfrentar o que lhes resta de vida, apesar do sofrimento, do vazio e da ausência. Para trás ficam as palavras de conforto, as fórmulas do costume, os abraços apertados, as palmadas nas costas. Concluindo filosoficamente que é a vida, cada um abandona o cemitério, segue o seu caminho, talvez beba uma imperial…

Seja como for, a verdade é que o choque da morte nos obriga, mesmo que de raspão, a reflectir, nos lembra mais uma vez que somos vulneráveis, simples cadáveres adiados. E desse instante de consciência generalizada da nossa fragilidade e da nossa insignificância nasce a tal solidariedade que nem por ser fugaz deixa de ser real e sentida. De forma mais ou menos difusa, mais cedo ou mais tarde, todos nos interrogamos sobre a morte e, em particular, sobre a eventualidade de uma vida para além dessa inevitável morte.

Numa terra como Sesimbra, com o mar e a morte tão presentes, a existência de Deus é uma certeza tão natural como o regresso do sol em cada manhã. Desde a nossa infância, fomos habituados a viver sob a protecção do Senhor Jesus das Chagas, da Senhora do Cabo, e na companhia dos santos populares, mais próximos, quase fazendo parte da família. De uma maneira geral, os sesimbrenses não se interrogam, não equacionam sequer a problemática da existência de Deus. Por tradição, por necessidade, por conveniência, por atavismo, a existência de Deus não tem sequer discussão. Em verdade, e embora este monstro que é o homem teime em destruir o planeta, basta olhar à nossa volta, contemplar a Natureza, observar o milagre das estações do ano, os ciclos da vida, a harmonia do Universo, para sentirmos que Deus existe.

Para nós, portugueses, o sol nasce, mas não morre, põe-se, eufemismo que encerra algum temor, o mistério da escuridão da noite, de certo modo comparável ao receio da morte, do desconhecido. Os franceses, com toda a tranquilidade, dizem que o sol se levanta e se deita…

Esta convicção simples, porventura pueril, da evidência da existência de Deus não constitui um sinal de intelectualidade aos olhos de agnósticos, ateus, filósofos tenebrosos, mestres iluminados em teologia, especialistas de análises comparativas de religiões, manipuladores de teses, sínteses e antíteses. Pessoalmente, considero que não é possível, a nós, pobres mortais, provar a (in)existência de Deus. Nem tal é desejável porque, a acontecer, acabaria com aquela minúscula partícula de dúvida que têm tanto os que acreditam como os que recusam. Sem essa partícula passaríamos a ter uma certeza que condicionaria perversamente o nosso comportamento. Os que acreditam talvez sejam considerados por alguns como pobres de espírito, é provável. Pôr em causa ou negar a existência de Deus é uma forma de afirmação pessoal, de superioridade em relação à massa ingénua e primária. Porém, bem lá no fundo, talvez haja apenas duas categorias de pessoas, as que acreditam e as que pretendem não acreditar…

Seja como for, o que interessa nesta perspectiva de se acreditar ou não em Deus, de se admitir ou não uma vida para além da morte, é o que fazemos com as nossas convicções, ou seja, que efeitos práticos têm elas no nosso comportamento, no nosso dia a dia, no relacionamento com a vida, com os outros, com a Natureza.

Graças a leituras, conversas, relatos e algumas experiências marcantes, acredito muito firmemente na vida depois da morte, em múltiplas encarnações. Só esta filosofia permite que a vida, tal como a conhecemos, faça sentido. De facto, se pensarmos que nada há antes nem depois da nossa actual encarnação, que tudo se resume a estes insignificantes setenta anos, a vida é um absurdo total, uma monstruosidade, um cenário de injustiças medonhas, de desigualdades intoleráveis. É como se cada um de nós, em vez de 365 dias por ano tivesse um só. Para uns seria de sol, temperatura amena, luar poético, mas para outros haveria chuva, para alguns neve, para uns quantos um furacão, para outros um incêndio, tudo arbitrário, desigual, aleatório, desequilibrado. Não seria justo nem faria qualquer sentido. Ao longo de um ano, nós aceitamos com naturalidade chuva e vento, frio e tempestades porque acreditamos que serão ocorrências passageiras, temos sempre esperança em melhores dias, porque sabemos que eles virão. Se dispuséssemos de um só dia seria dramático e insuportável. Da mesma forma me parece absurda uma vida com período fixo de validade, que determine invariavelmente na cova ou nas cinzas da cremação. É absurdo aceitar como coisa natural um mundo onda há tanta injustiça, tanta desigualdade, onde vivem paredes meias pessoas que sofrem, que morrem de fome, que são exploradas, e criminosos que gozam de saúde, que vivem à larga à custa da desgraça alheia, graças à venda de armas, à droga, à prostituição. Como podemos nós compreender que crianças sofram? Por que motivo morrem uns mais cedo que os outros? Por que razão uns nascem com enfermidades e outros são saudáveis toda a vida? Não pode ser, não faz sentido, tem de haver, para cada um de nós, outro ciclo, para repor a verdade, a justiça, o equilíbrio e a harmonia. Entretanto, o homem é como é, e muitos continuam sem perceber que os verdadeiros valores não são os carros, as casas, os terrenos ou as jóias.

O povo, na sua vasta sabedoria, bem lembra que depois da tempestade vem a bonança. E também diz que cá se fazem e cá se pagam. Esta última máxima tem um significado muito mais profundo do que parece à primeira leitura. De facto, nem sempre e muito raramente, o mal é devidamente castigado. Pelo menos nesta vida, nesta encarnação. Daí que se possa concluir que o povo sabe muito mais do que julga saber…

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* Publicado no n.º 16 de Sesimbra Eventos, de Natal/Ano Novo 2001-2002.

quarta-feira, 9 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 49


Por trás das máscaras*

António Cagica Rapaz

Há uma dúzia de anos que não me era dado assistir ao Carnaval na nossa terra. Aconteceu este ano por simples coincidência de férias escolares em França com a festa das escolas de Samba, outra escola, outro ritmo, outro recreio.

O Carnaval é como sempre foi, um mundo de contrastes, uma festa imposta pelo calendário que nos leva a rir e folgar do dia tal ao dia tantos, com crise ou sem ela. É o Entrudo, é a tradição, as cinzas do quotidiano vêm depois.

Ora este ano tenho de chegar a uma conclusão e hesito: o Carnaval mudou ou eu, com a idade, não o vejo da mesma maneira. Ou talvez haja uma dose de cada.

Com os meus filhos pela mão, não me preocupei com as máscaras nem com o tumulto dos grupos animados. Olhei à minha volta e, enquanto o Carnaval passava, a vida continuava com o Nuno no hospital recuperando lentamente da operação. Os pais não se meteram em apertos para ver as escolas de samba, antes correram para Setúbal todos os dias, cruzando na estrada molhada os folgazões de circunstância. No café Central lá estava aquele marido angustiado com a mulher internada há um mês sem saber que doença a consome. Não há calendário nem decreto-lei que suprima os dias tristes de melancolia.

Há alguns anos talvez eu não me tivesse apercebido destas situações de pequenos dramas à margem da euforia geral pois no meio da agitação colectiva não há tempo nem espaço para nos determos, consagrando um minuto ao nosso vizinho, ao nosso amigo.

E muitos ao longo do ano vivem assim, sem ligarem, sem se aperceberem do que acontece na vida dos que o rodeiam.

Claro, também vi Carnaval à antiga. Lá estive na padaria do Joaquim do Moinho assistindo à caracterização, à maquilhagem das viúvas laironas de mamas abundantes, falsas e generosas, que eram o Zé Júlio (qual alcunha?), o Jofre, o Zé Duarte, o Arménio, o Mota e o mestre Vítor inspirador do movimento, poeta de veia em riste, navegador de sextante infalível, profeta de uma noite, barítono da maré vazia, irresistível forasteiro. No Toni entraram três loucas (autênticas, à fé de quem sou) que ao verem as viúvas laironas de bigodes farfalhudos, baixaram os braços amaneirados diante de uma concorrência insuperável.

O Vítor (y sus muchachos) é o último moicano, o último exemplar de um Carnaval antigo de improvisação organizada, de génio criador, de espontaneidade, de originalidade, de erupção prazenteira. O Carnaval de Sesimbra está a entrar na era industrial com a quantidade a ocupar o lugar da qualidade, com as massas a empurrarem pela borda fora o folião individual, o arauto da paródia, o menestral da risota.

Ao acaso de uma visita à antiga oficina dos Brandões (daqui saúdo o mestre Zé, uma saudade sorridente) e deparei com o Ernesto (mas qual alcunha?) que me confessou ter havido choros com a cassete que eu fiz com as histórias dos filhos da noite. Da mesma cassete me falou o Alfredo na noite dos pares de cornos, enormes e alambazados, que o Urbino e o seu comparsa nos puseram (ao Alfredo e a mim) para uma fotografia carregada de lenha e de malandrice.
A história desta cassete dará para outra crónica onde se falará do Alfredo, do Toni, do Ernesto, do Charuto e do Júlio Silva, o meu rico Júlio, o John português que matava o cavalo na feira da Agualva.

Pois o meu rico Júlio ficou com a cassete que eu fizera para o Alfredo, a tal cassete que (segundo as línguas indiscretas dos filhos da noite) arrancou uma lágrima rebelde a muitos dos malandros que julgavam que os homens não choram.

O Alfredo, com o coração grande como a serra da Arrábida, contou à minha mulher a partida do dominó sem pedras e os anzóis empatados sem fita nem anzóis, enquanto o Charuto transformava a realidade criando um clima mágico entre duas vagas cavernosas, com a chuva a fustigar a vidraça, na hora sombria em que o dia ameaça e se fina a madrugada.

O Toni amadurece com a sua bigodaça monumental e uma serenidade surpreendente.

Há trinta anos no Clube Naval o miúdo que eu era, do alto dos seus dez anos, almoçava com um amigo mais velho e era servido por um empregado atlético a quem o meu amigo chamava Tarzan. Era o Toni o Tarzan com o seu cabedal a aparecer por baixo do casaco branco e a sua vaga semelhança com o actor francês Jean Marais. Só que o Jean Marais não é cá dos nossos e o Toni bem pelo contrário.

Foi um longo caminho para o Toni, anos e anos atrás do balcão da Marisqueira, noitadas de trabalho e de malandrice, de dispepsia e parafusos mas sempre ao leme da barca, sempre a iscar a caçada, sempre a comandar as operações.

E aí temos o Toni bem na vida graças ao seu esforço e ao sorriso permanente, à bonomia, à simpatia bonacheirona, tudo com um olho vigilante e uma presença constante.

O Toni é um cartaz de Sesimbra e uma figura notável.

Os tambores calaram-se, os trajes dormem em caixas de papelão, as luzes apagaram-se. A vida continua…

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* Publicado originalmente no Jornal de Sesimbra.

terça-feira, 8 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 46

as crónicas da Eventos...




Porque é Carnaval* [2.ª parte. A 1.ª parte foi aqui publicada no passado domingo]

António Cagica Rapaz


Meses

Para os Peixes, o melhor mês é Março

Ao ver o portão fechado, correu a Abril

Quando me lembro do 25 de Abril, até 10 Maio

Julho não é Agosto dela…

Para os gatos, a época dos amores começa em miados de Janeiro…


O que eles poderiam ter dito

O meu negócio é limpo.
(António do Carvão)

Quero que a cigarra se lixe.
(Joaquim Formiga)

Não há fome que não dê em fartura.
(Joel)

Bem fresco, prefiro o branco.
(Preto do Palmeirim)

Supersticioso, eu?
(Treze)

Da cá eu.
(Doze)

Se me chateiam, um dia rebento.
(Costa da Bomba)

Todos os dias são dias de festa.
(Chagas)

Só me saem biscas.
(Duque)

Fique sabendo, à pistola ou com pincel, Pinto e Pinto bem.
(Alfredo)

Detesto a caça.
(Joaquim da Rolinha)

Qualquer dia dou-lhe na corneta.
(Ernesto)

Isso é que era bom.
(João Mau)

Vou pôr-me ao alto.
(Chico Rasteiro)

Apanho tudo pela rama.
(Armínio Pinhal)

Viva a República!
(Frederico Reis)

Só ando à 6.ª-feira.
(António da Roda)

Vão para o Inferno.
(Chico Diabo)

Foi o que ouvi dizer.
(Júlio Mouco)

Para mim é trigo limpo.
(Joaquim do Moinho)

Não gosto do primeiro milho.
(Zé Pardal)

- Ora deixe ver, tenho dois saloios, tenho três carcaças e tenho um cacete mole… mas sou muito homem, ouviu?
(Antero do Pão)

É preciso é não perder o Norte.
(Zé Leste)

Tónica, Túnica e Ténica.
(Mestre Adelino)

Meto-me em cada buraco!
(Fernando Covas)

Alinhavar tudo isto é d’homem
A. Cagica Rapaz

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*Publicado no n.º 35 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2005.

segunda-feira, 7 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 48



O Pirilau

António Cagica Rapaz

Há pessoas assim, desinibidas, e o Zé Manel exibia o seu Pirilau à vista de toda a gente. Fazia mesmo gala na ostentação, na praia do tio Abel, primeiro, e no Espadarte, depois.

Curiosamente, e apesar dos anos que passavam, o Pirilau do Zé Manel continuava do mesmo tamanho, facto que não preocupava amigos nem familiares. As pessoas habituaram-se ao Pirilau do Zé Manel e as meninas de boas famílias não escondiam a cara nem desviavam o olhar. Pelo contrário sentiam certa atracção e devo confessar que eu próprio cheguei a invejar o Pirilau do Zé Manel, apesar de o achar pequeno.

De facto não era grande, mas tinha tudo no sítio, proa, popa, quilha, casco, remos, tudo quanto era necessário a um barquinho de recreio para enfrentar as procelas do triângulo dos Passadiços, contornar os destroços cavernosos do Numância, bolinar à vista da pedra alta e arriscar-se até às paragens inóspitas da Califórnia.

O Zé Manel Torres Batista, o nosso TB, servia-se do Pirilau para passear e, sobretudo, para atrair meninas que não enjoassem, que não tivessem medo dos gargalhetes nem receassem os tentáculos de um polvo amestrado que alugara uma caverna na ala poente do afundado barco espanhol.

O Zé Manel usou e abusou do Pirilau, pescou em mares profundos, versão caseira do capitão Audaz e do seu veleiro Aventura dos inesquecíveis álbuns do Cavaleiro Andante. Lá diz o povo, pela boca morre o peixe e o Zé Manel foi pelo Pirilau. Um belo dia, este flibusteiro do Calhau da Mijona, entregou a espada, arrancou a pala preta, desatarraxou a perna de pau, arreou a vela, baixou pavilhão, arrumou os remos, encalhou na preia mar, conheceu a Quinita...

De Espanha veio o vento e o casamento. Para Espanha zarpou o bom Zé Manel, para desgosto do Deodato que ficou inconsolável e não voltou a fritar lulinhas sem verter uma lágrima salgada. Barcos há muitos, mas Pirilau ninguém tem como ele tinha. O Luís Passos Leite, o Zé Bagaço e o Jorge Aranha andaram a recolher assinaturas que entregaram ao Tony. O Alfredo acendeu velas na Vila Pinto, o Charuto ofereceu, como penhor, o livro de quotas do Desportivo e o nadador-salvador Domingos Nogueira, vulgo capitão Domingos, jurou emendar-se e jamais voltar a aproveitar-se das criadas a quem fingia ensinar a boiar com a mãozinha por baixo e, sobretudo, acabar com as aulas prolongadas de respiração boca a boca...

Nas noites longas e frias de Inverno, pairava no Pinto & Pinto uma nuvem triste e um cheiro longínquo a Gitanes, o lendário tabaco que o Zé Manel introduziu em Sesimbra. Na embalagem azul ainda se vê uma cigana recortada em fundo de fumo. Era já um sinal do destino, sortilégio espanhol, o grito rouco e sofrido do flamenco, a sina do Pirilau.

Dizem as velhas da praia que, em manhãs de nevoeiro, aparece ao pé da Pedra Alta um barquinho a remos, vazio, silencioso e triste, com um maço de Gitanes, vazio, na proa. Ai que saudades, volta Pirilau!

Se o virem, afaguem-lhe a popa, levem-no ao reminho pela borda d’água, devagarinho, com doçura, mas de espia atenta. É um doido este Pirilau, sempre de vela alçada, pronto para novas aventuras, capaz de abalar com qualquer Nau Catrineta. Se o virem, tragam-no de volta, o Domingos agradece, dão-se alvíssaras...

1996

domingo, 6 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 45

as crónicas da Eventos...




Porque é Carnaval* [1.ª parte. A 2.ª parte será aqui publicada na próxima terça-feira]

António Cagica Rapaz

Reflexões

Em Santana, o Joaquim Leite, que mora a dois passos do Fernando Gato, correrá algum perigo?

Será verdade que o Jorge Carapau deixou de passar à porta do Gato?

Dizem que o Gato está proibido de entrar na “Toca do Ratinho”…

O cúmulo seria o pai Gato ter posto ao filho o nome de Jeremias

Sempre bem disposto, bem lhe poderíamos ter chamado António do Porto Alegre

Se o David tivesse nascido em Sesimbra seria na mesma Saloio?

Ao cortar-se com a faca, o amanhador de peixe apercebeu-se de que nunca sentira tamanha dor.

Iam todos com espingardas e caçadeiras, alguns levavam cães. Ele levou um balde com engodo. Para iscar a caçada

O velho de terra franziu a sobranselha e saiu da loja…

Foi há uns bons quarenta anos. Quando o oculista lhe perguntou se queria trocar de armação, respondeu que não senhor, gostava de estar no Burgau...

O Luís Preto, o Castanho, o Encarnadinho e o Branquinho acaso serão filhos da Aurora Boreal?

Maria da Arrábida, Valdemar Laranjeiro, Augusto de Alfarim, Manel Santana, Zé Azóia, tudo gente da nossa terra...

Ingénua, aceitou a sugestão do namorado e acompanhou-o até aquele sítio isolado, em noite de luar. E assim se tornou uma mulher perdida, na serra da Achada...

Ao ruído das motorizadas não há quem escape...

Morreu sem se despedir. Só disse a Deus...

Na tropa tinha de fazer tudo. Era o cabo dos trabalhos…

Pastor procura ovelha ronhosa para cruzar com bode expiatório

Procurou longamente o rasto dos animais. Já desesperava quando se aproximou de um riacho e deu com os burrinhos na água

O abastado lavrador resolveu exibir os seus inúmeros tractores à população da aldeia. Fê-los desfilar sem preocupações de tamanho, cor, ou valor. Não se ralou com isso porque, como dizia, a ordem dos tractores é arbitrária...

Era um médico muito autoritário. Quando lhe perguntei que medicamento devia tomar, gritou-me: "Cálcio". E eu calei-me...

Era um empregado de sapataria muito autoritário. Quando lhe disse que o sapato estava apertado, foi buscar outro, e disse-me: "Calce-o". E eu calei-me...

Se a mágoa magoa, a tábua tá boa?

Participou num concurso de circunstâncias e era das mais "tâncias" que lá apareceram...

Deixou os gladiadores de barriga vazia...

Morre sempre da mesma maneira, estrebucha e estica o pernil...

Quando fazem vendas a bordo, as hospedeiras avíão os passageiros...

Aquilo já era mania. Pôs a filha a fazer limpezas, o filho a angariar seguros, a mulher a vender fruta. Até o carro ele punha a trabalhar...

Ela preferia o horário nocturno, gostava de trabalhar em silêncio. Chamavam-lhe a calada da noite...

Com tanta veia poética, ou sou filho de Pessoa ou soneto de Camões...

Se não são utilizados, os instrumentos desafinam e depreciam-se. Por isso mesmo, Nero, que raramente tocava, deixou desvalorizar a lira...

Invariavelmente, sempre que a discussão filosófica não lhe agrada, muda de tema, fala de futebol, desvia para Kant...

Zangaram-se e ele matou a mulher, esmagando-a sob o guarda-vestidos que a polícia considerou ter sido o móvel do crime...

Andava radiante com o novo relógio, desejoso que lhe perguntassem as horas. E logo respondia:"Duas e um quartzo".

É um presidente que gere bem o clube. Compra jogadores caros e depois obriga o treinador a deixá-los no banco...

A rapariga, quase analfabeta, casara com o padeiro a quem punha os palitos. E escreveu a uma amiga, justificando a sua conduta: o padeiro tinha sempre pãu mole...

Dizem que é preciso comer de forma saudável, legumes, tofu, que só faz bem. Oxalá assim soja!

De uma ponta à outra da mesa só havia pêssegos estragados. Já desesperava quando acabou por encontrar na extrema um são...

Ainda hei-de calar a boca da noite…

Apaixomar.

Salvo euro.

Pleonasmo: PolíCIA.

Eufemismo pelas pernas abaixo.

Converti-me ao Questionismo.


(continua)
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*Publicado no n.º 35 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2005.

sexta-feira, 4 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 44

as crónicas da Eventos...




Bem te conheço, ó máscara!*

António Cagica Rapaz

O Carnaval de Sesimbra, antes do 25 de Abril, deixou em muitos de nós mil recordações e muita saudade, mas não podemos fazer uma evocação correcta sem integrarmos aquelas folias no seu contexto, ou seja, sem as enquadrarmos no clima sócio-cultural da época.

Naquele tempo, nos anos cinquenta e sessenta, a sociedade portuguesa regia-se por normas, regras e valores bem diferentes dos que hoje predominam. As mentalidades eram mais rígidas, a influência da Igreja muito mais sensível, e o Carnaval surgia como um curto período de libertação de convenções, espartilhos morais e preconceitos sociais. E, sem cair em exageros, Sesimbra divertia-se...

O meu pai contava-me brincadeiras de gosto mais ou menos duvidoso, roubos de galinhas, besuntadelas mal cheirosas no corrimão do Grémio ou na fechadura da porta de determinado senhor que costumava colar os lábios no orifício para chamar pela mulher. Todos nós pregámos partidas nem sempre recomendáveis, mas era assim, é Carnaval não se leva a mal.

Com o tempo, acabamos por ver as coisas com outros olhos e, muito provavelmente, o R. não voltaria a queimar aquele pedaço de malagueta numa tampa de caixa de pomada para o calçado. Foi no Grémio e o fumo asfixiante e tóxico produziu efeitos tais que o R. chegou a ter receio, perante o quadro dantesco de olhos inflamados, tosse, espirros e outras ventosidades ruidosas que deixaram prostrados alguns prezados consócios.

Recordo-me de ter subido ao sótão do mesmo Grémio e ter despejado cá para baixo pós de espirrar sobre a mesa à volta da qual se disputava animada partida de “sintético”. O festival de espirros, imprecações e recriminações foi indescritível, tendo o Alfredo Filipe escapado por uma unha negra ao linchamento.

O mesmo lhe sucedeu em tarde chuvosa, num Central fechado e cheio de fregueses encostados aos bilhares numa cavaqueira que os pós de espirrar transformaram num inferno. E também desta vez o Alfredo estava inocente. Outros pecados teria, porventura, por confessar...

Estes episódios ocorriam com frequência naquele triângulo das Bermudas localizado entre o Grémio, o Central e o estabelecimento do mestre Adelino. A taberna e a barbearia constituíam um autêntico covil de malandrice, palco e fonte de brincadeiras hilariantes, o lápis do Lopes, os rabos pendurados a preceito e, sobretudo, os porta-moedas pregados no alcatrão. As mulherzinhas do campo vinham vender à praça montadas em burros de que desciam para deitar a mão ao porta-moedas. Logo a impiedosa rapaziada saltava, gritando em coro “Larga! Larga!”, o que provocava a cólera e o despeito das pacatas camponesas que perdiam a cabeça e nos insultavam abundantemente, sugerindo até locais onde poderíamos meter os ditos porta-moedas.

Um dia, quem caiu foi o bom João Vaivém que se baixou para apanhar um relógio. No calor da reacção, o Zé Júlio gritou “Larga, urso” e foi multado em trezentos mil réis que a irmandade ajudou a pagar.

Escasso é este espaço para tanta libertinagem, pelo que aconselhável se torna passarmos ao capítulo dos bailes, prato de resistência do nosso Carnaval. Dificilmente se poderá contestar que, naquele tempo de austeros costumes, os bailaricos eram a grande oportunidade para aproximações entre pessoas do sexo oposto, a pretexto hipócrita de um passo de dança. Em verdade, era (sobretudo para raparigas e mulheres) a ocasião tão desejada de dar largas a todo um leque de apetites, sedução, intrigas, mistérios, mistificações, enredos e aventuras mais ou menos arrojadas, chamemos as coisas pelos nomes. A máscara desinibia, dava confiança, soltava as línguas, estimulava a imaginação, alargava horizontes, excitava os sentidos, dava corda ao diabinho que existe em cada um de nós. Porém, os casos de maior atrevimento não passavam de inocentes brincadeiras quando comparadas com o que vemos nos dias de hoje, à nossa volta, à luz do dia, de cara destapada, o ano inteiro...

Por isso, o que ficou em nós foi, sobretudo, a recordação de um clima mágico, de excitação e fascinação, expectativa e fantasia, com o engenho e a irreverência das raparigas que faziam, elas próprias, os trajes que depois trocavam por forma a porem a cabeça à roda aos rapazolas atrevidos. Mil episódios haveria para contar, a peça de cerâmica do Júlio Mouco, o cartucho de papel, com água, com que a Maria Vitória assustou o António Vidal, a ida da Carlota parteira a minha casa, os telefonemas intrigantes, eu sei lá.

Ficaram para a história quadros deliciosos como o Zé António da Parteira a dançar, desvairadamente apertado, mordendo o lábio, com uma máscara que não era outro senão o Zé Albano.

A magia burlesca do Carnaval atinge um alto expoente no engano em que viveu durante três noites uma figura grada da terra, o Doutor J., que dançou e tentou seduzir uma máscara que, afinal, era a velha D., magra, seca, enrugada, mulher a dias do serviço do próprio Dr. J.. A tia D. comeu, bebeu e dançou durante três noites, Cinderela galhofeira. Brincou realmente ao Carnaval e ajudou a consolidar aquilo que era a sua essência, o mistério e a ilusão...

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* Publicado no n.º 5 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2000. Trata-se da estreia de António Cagica Rapaz nesta publicação.

quarta-feira, 2 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 48




Escuminha*

António Cagica Rapaz

Aqueles dedos calejados pelos longos anos de labuta no mar não são capazes de segurar um copo fino de cerveja. Os seus lábios gretados pelo vento de leste rejeitam o sabor estranho do «whisky». Os seus olhos, à volta dos quais o mar lançou rugas sem conta, olham o mundo à luz de uma candeia serena, ao som de um fado antigo com o gosto de outrora em forma de tinto.

O tio Escuminha não é deste tempo. É o passado que penetra no presente sem pretensões de folclorismo baloufo. O seu boné de pala preta, qual comandante de veleiro de aventura, o seu cachimbo, a peça de fruta, o jarro de vinho, a companhia do tio Guilherme e um sorriso tranquilo que contempla sem criticar quanto de fascinante acontece na Marisqueira.

O tio Escuminha não foi ali colocado pelo Tony a fim de dar um ar castiço. Ele toma o seu lugar porque a ele tem direito e porque, na sua ingénua alegria de viver, o copo de vinho na mesa do canto é um prazer para que o balanço das vagas o atirou e do qual não abdica.

Os dois velhos caturras tomam o seu copo, discutem todo o tempo sob o olhar terno e vigilante do Nelinho que tem um pé no passado heróico e um olho na loira que acaba de entrar…

Quando se apagar o cachimbo do tio Escuminha não haverá cigarro extra-longo que o substitua. O tio Escuminha que conhece as profundezas do mar, que sabe até onde a maré pode subir, abana a cabeça, sorri e pergunta ao tio Guilherme como pode aquele estrangeiro beber tanto «whisky» sem meter a borda debaixo d’água, sem encalhar nos rochedos do sono. O tio Escuminha deita-se cedo porque o sol nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs…

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*Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite". A versão publicada em Noventa e Tal Contos, sob o título “O tio Escuminha”, apresenta alterações e cortes notórios, que, todavia, não alteraram a essência do escrito original.

terça-feira, 1 de março de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 39



O cúmulo seria o pai GATO ter posto ao filho o nome de JereMIAS...
António Cagica Rapaz



[da série Reflexões]