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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 43


O Central
António Cagica Rapaz

O Central era o café por excelência, conservador, tradicional, sede das forças vivas da terra, da burguesia recatada, o médico, o chefe das Finanças, o doutor da Alfândega...

A sua imagem estava muito ligada à do Grémio, colectividade um tanto aristocrática de que parecia constituir um prolongamento ou um anexo. Durante anos só os grandes patrões da pesca eram sócios do Grémio, não os comuns camaradas. No Central, em contrapartida, muitos clientes eram pescadores, como o Jorge Coxo, o Leste, o Pai de Céu, o Eduardo Submarino ou o Papa-Rebuçados.

O Central era uma segunda casa, com uma grande sala onde cheguei a passar dias inteiros a jogar bilhar, a conversar, a conviver. Era o ponto de reunião de amigos do meu pai, companheiros de paródias da sua juventude, episódios que eu conhecia de cor.

Na confluência de sete ruas, o Central fica junto à mercearia que também pertencia ao senhor Arménio, irmão do tio Chico da Cooperativa, o mundo é pequeno. Ao lado da mercearia, ficava a sede de “O Sesimbrense” e, mais abaixo, a oficina do Brandão onde as marteladas repicavam em sinal de vida e actividade, na quietude da rua Direita. A oficina tinha já um cheirinho a mar, a porto de abrigo, com os pescadores a entrar e a sair, acompanhando o andamento das reparações dos motores. Os mecânicos, de fato-macaco azul manchado de óleo, vinham sentar-se no passeio em frente da mercearia, à rabeça, na hora do almoço. Era a pausa rotineira para tantos homens que tinham o vagar de almoçar em casa, beber um cafezinho e dar dois dedos de conversa, antes de voltarem, tranquilamente, ao trabalho. Homens que não se apercebiam de que o mar, a essa hora, estava menos azul e menos enrugado do que de manhã. Mas que viam o tempo a escoar-se lentamente até ao fim da tarde, quando as barcas voltavam do mar e a lota ganhava animação.

O Central era o senhor Arménio, de mão no colete, chapéu atirado para o alto da cabeça, passo vagaroso e tacada suave em bolas de marfim que guardava em caixa pessoal. Era também a figura bíblica do sô Zé, com o cabelo todo branco, a voz suave, o humor fino, o olhar observador, atrás do balcão.

De Inverno, o Central era a atmosfera acolhedora dos domingos de manhã, o vozeirão do doutor Maurício, o perfume do café, a barbinha feita, um certo ar de festa, a voltinha ao Espadarte, a visita ao mar.

De Verão, era a sombra do Grémio e das árvores, a animação da esplanada, o colorido dos chapéus de sol, o bailado incessante das bandejas com imperiais e bicas, ao despique com o cafézinho do Damião. A esplanada era ainda o tempo adormecido, entre as rendas das senhoras e a conversa arrastada, na amenidade do crepúsculo.

O Central era o coração de Sesimbra, degradou-se com o tempo, perdeu nobreza e dignidade, está cansado, arrasta-se como os últimos passos do sô Zé, carregados de melancolia.

Mas será sempre o Central. E lá ficou um pedaço de mim...

1981

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 39

as crónicas da Eventos...



Nova corrida, nova viagem*

António Cagica Rapaz

Não sei se, como diz o poeta, viajar é preciso, nem sei dizer, com rigor, o que é uma viagem. A nossa vida é certamente uma viagem, mais longa ou mais curta, com mais ou menos peripécias, mas sem sombra de dúvida uma viagem que começa e, em geral, termina sem que nos peçam a opinião. Aliás, não sabemos se termina pois o que aparenta ser o fim pode ser apenas o início de uma nova viagem, bem mais demorada, eternidade fora…

E esta reflexão sobre o tema da eventualidade de uma vida depois da morte é só por si uma viagem fascinante, mesmo que nunca cheguemos a conclusões irrefutáveis. Naturalmente, cada um é livre de acreditar no que entende e de exigir provas concretas e indiscutíveis. Pessoalmente, julgo que nunca se chegará a apresentar factos totalmente convincentes porque tal significaria o fim do mistério e do livre arbítrio. Embora eu esteja muito longe de ser entendido em tão profundo tema, ainda assim atrevo-me a dizer que, para mim, faz sentido que as coisas permaneçam nesta esfera de indefinição, entre uma nuvem de interrogação e uma névoa de dúvida, apesar de haver uma montanha de indícios e sinais dignos de interesse e reflexão. Algumas pessoas, como eu, talvez ingénuas, espíritos fracos, acham que eles são suficientes e flagrantes, mas outras continuarão firmes na exigência de dados irrefutáveis e não arredarão pé do seu cepticismo. Sempre foi e continuará a ser assim…

Não sou, obviamente, autoridade no assunto, e apenas por curiosidade confesso que acredito na vida além da morte. Sem ela, esta existência terrena não faria qualquer sentido, seria uma monstruosidade, um absurdo, uma aberração, tantas são as incongruências, as injustiças e as desigualdades. Mesmo que não dispusesse de um razoável arsenal de pistas (como possuo) continuaria a acreditar, simplesmente porque essa perspectiva me agrada, me parece lógica, natural e infinitamente mais agradável do que aceitar que tudo acaba no cemitério. Confesso que tenho dificuldade em perceber como se pode viver resignado ao final definitivo e irremediável do balde de cal…

Mas o importante não é anunciar que se tem uma convicção ou uma ideologia. O que conta é o que nós fazemos (ou não) com as nossas ideias. Ora a expectativa perante o que nos espera após a morte poderia influenciar a nossa conduta ao longo da viagem que é a vida terrena. Pelo menos, poderia ensinar-nos a olhar o mundo que nos rodeia, as pessoas e as coisas, de outra maneira, numa perspectiva diferente. Deveria ensinar-nos a apreciar o que tem verdadeira importância, o que vale a pena nesta vida. Mas tal não acontece, é a natureza humana. Para muitos o que conta é possuir, adquirir bens materiais, passando ao lado de coisas bem mais valiosas como o amor, a amizade, a fraternidade, a solidariedade, a alegria de uma convivência saudável, a partilha de sentimentos e afectos.

Para alguns, importantes são as pretensas honrarias, as medalhas, os diplomas, as condecorações, os títulos, os sinais externos de evidência, de hipotética relevância, de aparente importância. E fazem desta viagem uma caça ao suposto tesouro constituído por tais panóplias, com sofreguidão, egoísmo e cegueira.

No carrossel da nossa infância, havia sempre nova corrida, nova viagem. E o homem do carrossel “Ribatejano” recordava igualmente que não subíssemos nem descêssemos com o carrossel em movimento. “Deixem parar, fazem favor”, rematava ele, sem ter a noção de que, na sua lengalenga de anos e anos de feira, resumia uma implacável filosofia de vida. Hoje um, amanhã outro, os nossos amigos vão-nos deixando, vão descendo com o carrossel em movimento. Nós vemos, temos consciência, sabemos, até os acompanhamos na última viagem, ao cemitério. Mas fingimos que não é connosco, voltamos para o carrossel, agarramo-nos ao pescoço da girafa, olhamos em frente, e a roda volta a girar sem que aproveitemos para olhar em volta, reflectir sobre o sentido daquela correria desenfreada.

De tanto olharmos em frente e para cima, por querermos ser mais altos, mais fortes, mais ricos, não vemos a ternura no olhar do nosso amigo que teria ficado feliz se tivéssemos parado uns minutos para com ele trocarmos duas frases.

A nossa vida é feita de múltiplas viagens e escrever também é uma viagem, uma dupla viagem, dentro da nossa cabeça e ao encontro do leitor. A palavra é mão estendida a quem nos lê, gesto de esperança na partilha de um tema, de um tempo, de uma emoção em que o texto é apenas pretexto. No poço fundo dos nossos sentimentos, das nossas recordações, dos nossos medos e dos nossos anseios, dos nossos sonhos e da nossa fantasia, buscamos assunto para redacções como esta em que, afinal, só procuramos companheiros para a viagem que é a vida. Na nossa ingenuidade e na nossa ânsia de compreender o sentido das coisas, até nos atrevemos a filosofar sobre temas tão inacessíveis e transcendentes como são a vida e a morte.

A vida está cheia de coisas simples e belas, e o amor é a mais maravilhosa das viagens. No entanto, para a maioria, o conceito de viagem sugere mais deslocações à Tailândia ou à China, voltar com filmes, fotografias, provas de que estiveram lá.

São passageiros frequentes, vedetas de projecções comentadas em serões com amigos, cada um mais viajado do que o vizinho, heróis de aventuras organizadas, gente que cumpriu um alto desígnio, viu mundo. Outros sonharão, porventura, com o Tibete mas acabam em Benidorme enquanto alguns se ficam por angustiadas travessias do Tejo, com análises e outros exames na mala, consultas marcadas. O Tejo não é o Ganges e as radiografias não proporcionam projecções charmosas. A cada um suas viagens…

Há quem, diariamente, percorra a marginal, de ponta a ponta, a pé, em tributo ao mar, saboreando o nosso sol, bendizendo a felicidade de ter nascido nesta terra.

Conservo imagens nítidas das minhas primeiras viagens, a abalada de Sesimbra, do largo da Igreja, às seis da manhã, rumo às Caixas, com o Pintassilgo ao volante da velha Panhard do Covas. O galo do tio Meano esperava por nós, era um deslumbramento, um filme que revejo mil vezes na tela das minhas recordações. Mil outras viagens fiz na minha cabeça ao longo das múltiplas etapas entre Lisboa e Coimbra, no comboio correio ou semi-directo que demorava sete intermináveis horas.

Talvez por não ter sido habituado a viajar por prazer e recreio, fui aprendendo a apreciar este mar, estas árvores, estas ruas, algumas pessoas, o que me rodeia. Poderia, lá bem no fundo, fazer como tantos e sonhar com Maldivas, Hawai ou Maurícias, mas não. Talvez tenha ficado saciado de viagens ouvindo as narrativas do meu pai, marinheiro de guerra que cruzou os mares para acabar em terra, naufragado em pedreiras desastrosas. Teria gostado, isso sim, de o ter acompanhado em inesquecíveis expedições à Arrábida, com o Duque, o Antero e os outros. No fundo, é mais esse o meu registo, proximidade e pacatez, sem filmes, sem compras em bazares de turistas, sem troféus nem autocolantes de hotéis nas malas.

Em verdade, não aspiro a safaris nem a cruzeiros, sou mais de ir ao reminho pela borda d’água…

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*Publicado no n.º 25 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2003.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 43



Chagas*

António Cagica Rapaz

É o cunhado do Alfredo, vive de noite, quase não come, basta-lhe o cheiro da cozinha do seu «Ribamar».

Se há fado em Sesimbra, se o folclore se faz ouvir, muito se deve ao dinamismo do Chagas que tinha, ele próprio, uma bela voz.

Hoje a cantiga é outra, um trabalho duro atrás do balcão, um esforço de muitos anos, um entusiasmo inquebrantável, uma fibra enorme num corpo que desaparece na camisa branca de mangas curtas.

Todos os fadistas conhecem o Chagas, já cantaram na sua casa que, em Sesimbra, é a catedral do fado. Menos vinho, mais whisky, parafusos.

A casa é pequena mas bonita. O folclore vem para a rua, de arquinho e balão lá vai a marcha.

O Chagas gosta de se ouvir ao microfone; explica aos turistas o tema do fado, eles não percebem nada, sorriem, batem palmas, o Chagas agradece e volta para o balcão. Quando o fado se cala e nem o eco perdura, o Chagas vai beber um copo a casa do Alfredo onde os filhos da noite vão morrer antes do dia nascer…

Junho 74

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* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite".

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 34



Ingénua, aceitou a sugestão do namorado e acompanhou-o até aquele sítio isolado, em noite de luar. E assim se tornou uma mulher perdida, na serra da Achada...
António Cagica Rapaz


[da série Gente, Nomes...]

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 42



Carnaval

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta e sessenta, a sociedade portuguesa regia-se por normas, regras e valores bem diferentes dos que hoje predominam. As mentalidades eram mais rígidas, a influência da Igreja muito mais sensível, e o Carnaval surgia como um curto período de libertação de convenções, espartilhos morais e preconceitos sociais. E, sem cair em exageros, Sesimbra divertia-se...

O meu pai contava-me brincadeiras de gosto mais ou menos duvidoso, roubos de galinhas, besuntadelas mal cheirosas no corrimão do Grémio ou na fechadura da porta de determinado senhor que costumava colar os lábios no orifício para chamar pela mulher. Todos nós pregámos partidas nem sempre muito recomendáveis, mas era assim, é Carnaval não se leva a mal.

Com o tempo, acabamos por ver as coisas com outros olhos e, muito provavelmente, o R. não voltaria a queimar aquele pedaço de malagueta numa tampa de caixa de pomada para o calçado. Foi no Grémio e o fumo asfixiante e tóxico produziu efeitos tais que o R. chegou a ter receio, perante o quadro dantesco de olhos inflamados, tosse, espirros e outras ventosidades ruidosas que deixaram prostrados alguns prezados consócios.

Recordo-me de ter subido ao sótão do mesmo Grémio e ter despejado cá para baixo pós de espirrar sobre a mesa à volta da qual se disputava animada partida de “sintético”. O festival de espirros, imprecações e recriminações foi indescritível, tendo o Alfredo Filipe escapado por uma unha negra ao linchamento.

O mesmo lhe sucedeu em tarde chuvosa, num Central fechado e cheio de fregueses encostados aos bilhares numa cavaqueira que os pós de espirrar transformaram num inferno. E também desta vez o Alfredo estava inocente. Outros pecados teria, porventura, por confessar...

Estes episódios ocorriam com frequência naquele triângulo das Bermudas localizado entre o Grémio, o Central e o estabelecimento do mestre Adelino. A taberna e a barbearia constituíam um autêntico covil de malandrice, palco e fonte de brincadeiras hilariantes, o lápis do Lopes, os rabos pendurados a preceito e, sobretudo, os porta-moedas pregados no alcatrão. As mulherzinhas do campo vinham vender à praça montadas em burros de que desciam para deitar a mão ao porta-moedas. Logo a impiedosa rapaziada saltava, gritando em coro “Larga! Larga!”, o que provocava a cólera e o despeito das pacatas camponesas que perdiam a cabeça e nos insultavam abundantemente, sugerindo até locais onde poderíamos meter os ditos porta-moedas.

Um dia, quem caiu foi o bom João Vaivém que se baixou para apanhar um relógio. No calor da reacção, o Zé Júlio gritou “Larga, urso” e foi multado em trezentos mil réis que a irmandade ajudou a pagar.

Escasso é este espaço para tanta libertinagem, pelo que aconselhável se torna passarmos ao capítulo dos bailes, prato de resistência do nosso Carnaval. Dificilmente se poderá contestar que, naquele tempo de austeros costumes, os bailaricos eram a grande oportunidade para aproximações entre pessoas do sexo oposto, a pretexto hipócrita de um passo de dança. Em verdade, era (sobretudo para raparigas e mulheres) a ocasião tão desejada de dar largas a todo um leque de apetites, sedução, intrigas, mistérios, mistificações, enredos e aventuras mais ou menos arrojadas, chamemos as coisas pelos nomes. A máscara desinibia, dava confiança, soltava as línguas, estimulava a imaginação, alargava horizontes, excitava os sentidos, dava corda ao diabinho que existe em cada um de nós.

Porém, os casos de maior atrevimento não passavam de inocentes brincadeiras quando comparadas com o que vemos nos dias de hoje, à nossa volta, à luz do dia, de cara destapada, o ano inteiro...

Por isso, o que ficou em nós foi, sobretudo, a recordação de um clima mágico, de excitação e fascinação, expectativa e fantasia, com o engenho e a irreverência das raparigas que faziam, elas próprias, os trajes que depois trocavam por forma a porem a cabeça à roda aos rapazolas atrevidos. Mil episódios haveria para contar, a peça de cerâmica do Júlio Mouco, o cartucho de papel, com água, com que a Maria Vitória assustou o António Vidal, a ida da Carlota parteira a minha casa, os telefonemas intrigantes, eu sei lá.

Ficaram para a história quadros deliciosos como o Zé António da Parteira a dançar, desvairadamente apertado, mordendo o lábio, com uma máscara que não era outro senão o Zé Albano.

A magia burlesca do Carnaval atinge um alto expoente no engano em que viveu durante três noites uma figura grada da terra, o Doutor J., que dançou e tentou seduzir uma máscara que, afinal, era a velha D., magra, seca, enrugada, mulher a dias do serviço do próprio Dr. J.. A tia D. comeu, bebeu e dançou durante três noites, Cinderela galhofeira. Brincou realmente ao Carnaval e ajudou a consolidar aquilo que era a sua essência, o mistério e a ilusão...

2000

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 38

as crónicas da Eventos...



A pena do poeta*

António Cagica Rapaz

Trinta é número redondo e desafio para balanços e retrospectivas que cada um de nós é livre de fazer à luz das suas convicções, das suas ilusões e de fragilidade de uma memória caprichosa e pouco isenta. Por isso, dificilmente haverá um dia uma visão abrangente e consensual do que foi, ou terá sido, o chamado 25 de Abril.

No labirinto das velharias do largo da Marinha, adquiri recentemente um livro do insuspeito e consagrado poeta José Gomes Ferreira que me forneceu o mote para este apontamento. A certa altura, naquilo que define como uma autocrítica de um revolucionário de consciência dorida, diz o poeta: Fizemos a Revolução sem a estudar. De cor. Resultado: falhámos e foi pena. A História vai ficar diminuída. Embora os versos possam permitir duas interpretações de sentidos opostos, há uma inequívoca ideia de frustração. E sendo conhecida, como é, a militância do poeta, podemos pensar que ele lamenta que a revolução não tenha ido mais longe, ou seja, que a foice não tenha chegado tão fundo quanto ele ambicionava e que o martelo não tenha pregado a partida com que sonhava. Todavia, José Gomes Ferreira acabou por escrever direito por linhas tortas. De facto, os que cavalgaram o golpe militar e tentaram transformá-lo numa revolução, falharam. E ainda bem que falharam. Em verdade não sei se a História terá ficado diminuída, o que sei é que a versão idílica que alguns vates andam há trinta anos a entoar é que não terá sido exactamente uma odisseia de cravos nem uma epopeia de povo unido.

Primeiro, conviria, porventura, apurar quem levou a cabo o golpe militar. E porquê. O povo, o tal povo heróico, estava a dormir naquela noite, como vinha fazendo há muitos anos. Em vez de dizermos onde estávamos no 25 de Abril, seria melhor confessarmos onde e como andávamos no 24 de Abril…

Ninguém duvida, foram os militares que fizeram o golpe. Mas porquê? Não é segredo nem novidade que os militares conviveram com o regime de Salazar e Caetano, foram mesmo o seu sustentáculo ao longo de décadas. Por isso, haverá que distinguir duas consequências maiores do golpe militar. Uma foi o derrube do regime, é verdade, mas tal só terá acontecido como resultado da outra que foi o fim da guerra do Ultramar. Este sim, terá sido o objectivo essencial, por que toda a gente, o país inteiro, por muitas e óbvias razões, queria ver terminada uma guerra devastadora e injustificada que começou na Primavera de 1961. Até essa data, os militares tinham-se mantido ao lado do povo, talvez, mas igualmente, ao lado do regime. Porém, a partir do início da guerra, os candidatos à Academia Militar começaram a rarear e, a certa altura, os capitães do Quadro não eram em número suficiente para as comissões de serviço numa África para onde eram mandados rapidamente e em força. Resultado (como diria o poeta), o regime foi obrigado a recorrer aos milicianos, processo que teve início em 1970, salvo erro. Ora, esta coexistência entre capitães milicianos e do Quadro depressa deu lugar a conflitos e reivindicações resultantes do facto de os capitães de carreira, os profissionais da guerra, se encontrarem, em termos de vencimentos e das prerrogativas, em pé de igualdade com os incipientes capitães milicianos, maçaricos, aprendizes nas artes do golpe de mão e da emboscada. Terá, pensam alguns, começado aí o descontentamento dos futuros capitães de Abril. Ao mesmo tempo, é bem sabido que uma comissão de serviço no Ultramar era a sorte grande para muitos oficiais superiores (entenda-se, de major para cima) que ou ficavam nas cidades (na guerra do ar condicionado) ou não saíam dos aquartelamentos, correndo poucos ou nulos riscos.

Ao passo que aos capitães outro galo cantava, eles iam mesmo à luta, eram carne para canhão. Por isso, esta disparidade acabou por pesar muito na tomada de consciência de que algo teria de mudar. Não foi por acaso que a guerra se arrastou durante tantos anos. De facto, isso só foi possível porque assim o exigia o regime, mas igualmente porque convinha aos tais oficiais superiores. Muitos deles, mal voltavam de uma comissão, só pensavam na seguinte, ansiedade que pude testemunhar quando cumpri serviço militar na Defesa Nacional. Por eles, a guerra teria durado muito mais tempo, e só não aconteceu assim porque os capitães resolveram exprimir o que hoje seria designado por direito à indignação. A face visível desse descontentamento terá então tomado a forma de reivindicações salariais que, segundo muitos observadores, terão sido a causa principal do golpe. E isto porque Marcello Caetano se recusou obstinadamente a satisfazer tais pretensões. Parece não haver a menor dúvida de que Marcello estava a par de tudo. Neste capítulo, posso revelar dois pormenores interessantes. Na tarde do dia 24 de Abril estive nos estúdios da RTP, no Lumiar, onde Marcello era esperado para gravar mais uma “Conversa em Família”. Para surpresa geral, o homem não apareceu. É verdade, sou testemunha. Anos mais tarde, um coronel do nosso Exército garantiu-me (sem revelar nomes) que, nesse mesmo dia 24, três oficiais superiores foram recebidos por Marcello a quem asseguraram que se concedesse os aumentos salariais exigidos pelos capitães, o golpe ficaria sem efeito. Marcello, pela última e decisiva vez, não cedeu. Segundo a mesma fonte, Marcello acreditava que o golpe lhe seria favorável. Enganou-se. Ou foi enganado…

Depois, foi o que se sabe, o povo saiu à rua e fez a festa. A quase totalidade dos soldados não sonhava sequer com o golpe, mas nem por isso deixaram de armar em heróis, deixando crescer barba e bigode, plantando cravos na boca das G3 e passeando nos carros de assalto, quais afadistados Guevaras saídos na Farinha Amparo.

É verdade que foi uma indescritível alegria, um alívio e uma bebedeira de liberdade. Aquele 1.º de Maio foi luminoso e feérico, ficará certamente na nossa memória colectiva. Mas logo a populaça amorfa e acobardada começou a pôr-se em bicos de pés, como uma vendedeira que, de mão na anca, no dia 26, ao microfone do repórter da RTP, e num trejeito de provocação, ameaçava: “A gente não pede nada. A gente agora EXIGE”. Era o povo no seu melhor, o mesmo povo que ocupou casas, julgou amigos de infância em abjectos tribunais orquestrados por comissões de revolucionários moradores. O 25 de Abril foi para todos nós um dia glorioso de sol e de esperança num futuro melhor. Foi muito bom ter acontecido, fossem quais fossem as causas próximas ou remotas. Mas, por favor, acabem com as histórias da carochinha e com a farsa do lobo do 24 que milagrosamente se transformou em cordeiro ao acordar na manhã de 25 de Abril. Muitos desses lobos, os ferrabrasses das ocupações de casas, das prisões arbitrárias do Copcon, dos crimes das FP25, muita dessa boa rapaziada ainda anda por aí. E há feridas que nem trinta nem trezentos anos chegarão para sarar. Não basta trazer Abril na boca e um cravo na lapela para se ser um democrata, tal como não chega envergar capa vermelha atrás da procissão para garantir um lugar no reino dos céus. É preciso que haja memória, coerência e dignidade. Porque Abril é para celebrar com moderação, sem sectarismos requentados nem visões maniqueístas.

Diz o poeta que fizeram a Revolução sem estudar. Pois foi. Melhor fora que tivesse sido um movimento pensado, reflectido, preparado, planeado, como seria de esperar de verdadeiros militares. Poderia ter sido o fruto de uma amadurecida e genuína tomada de consciência cívica e política. Se assim tivesse sido, muita coisa teria corrido melhor, a começar por uma descolonização que todos deviam saber que seria o difícil, melindroso e inevitável capítulo seguinte.

Mas, pelos vistos, a revolução não foi estudada. E falhou. Para o poeta foi pena, para o povo português nem tanto. Porque o povo português, na sua provável ignorância mas com um instinto implacável, festejou ruidosamente o fim da guerra e a queda do regime, mas não perdeu a lucidez e, na Fonte Luminosa, soube dizer não à revolução para a qual muitos poetas e falsos profetas nos queriam arrastar.

Posto isto, ninguém é dono da verdade e cada um vê o 25 de Abril como entende. Porque esta liberdade, até de pensar de forma errada e de exprimir opiniões controversas, é a grande conquista de Abril…

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*Publicado no n.º 30 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2004.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 42



Alfredo*

António Cagica Rapaz

Há muitos na terra desde um que foi polícia passando pelo outro que se ocupa dos apartamentos a dois metros de profundidade, até ao Alfredo equivocamente conhecido por Pinto e Pinto. Podia ser o Alfredo Alfredo, mas é o Pinto e Pinto.

Ao princípio era a mercearia do tio Alfredo (pai do dito) que nos difíceis tempos em que não havia porto de abrigo nem radar e os vendavais eram longos, abastecia, a crédito, muitos dos prósperos clientes de hoje.

Do copo de vinho e do bagacinho passou-se à bica e ao brandy e este Alfredo é um símbolo da permanência simples e cordial de antigamente a par da modernidade multifacetada. A sua casa cheira a mar, não o mar dos Ursos mas um mar sem nome que está na alma da gente. Um mar que alguns clientes trazem em si e outros levam ao partir. Outros, ainda, ao partir, levam a barriga cheia de cerveja e marisco pois é para isso que o Alfredo tem a porta aberta.

O Pinto e Pinto entrou na lenda da «dolce vita» de Sesimbra. É o Verão que enche a casa de clientes, trabalho, ruído e dinheiro. O Verão e o sol fazem a vida comercial da terra e as delícias dos turistas, principalmente estrangeiros. O Alfredo teve um princípio difícil, tem trabalhado muito e começa a respirar mais tranquilamente agora. A casa tem sempre clientes porque, para o Alfredo, o Bexiga ou o Domingos são tão bons clientes como o rico inglês que vem comer lagosta durante uma semana. Quando o Baeta engata nas suas gargalhadas intermináveis não pergunta primeiro quem são os fregueses. O Deodato prepara os mexilhões com aquele molho especial, sempre com o mesmo cuidado. Se o Alfredo é o homem-chave, o patrão da casa, a verdade é que o Deodato faz mais falta do que a cerveja. À falta desta bebe-se vinho, mas sem o Deodato nada feito. Não presta, o Deodato?!…

O problema, é a «ursa no estame» (também conhecida por úlcera no estômago) que o obriga à tortura de preparar petiscos deliciosos para os outros enquanto ele bebe leitinho que faz muito bem à ursa…

Quando a noite começa a morrer nos outros refúgios de boémia, o Pinto e Pinto é a tenda dos milagres, o oásis apetecido, a hospedaria do viajante fatigado. É o último copo antes da deita, é o prego para recuperar energias perdidas nos tentáculos da noite. A Guarda Republicana não sabe onde vão operar os ratos de automóveis mas sabe a que horas deve passar para mandar o Alfredo fechar a porta. A vizinhança protesta contra a algazarra dos filhos da noite. Hoje e mais logo há o seu desacato mas tudo passa porque ninguém passa sem vir morrer ao Pinto e Pinto.

O Alfredo deita-se quando o sol começa a querer raiar por trás das rochas do Caneiro. Quando o Deodato dá de beber à ursa já é dia claro. Decididamente, este Pinto não se deita com as galinhas…
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* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 33



Maria da Arrábida, Valdemar Laranjeiro, Augusto de Alfarim, Manel Santana, Zé Azóia, João Caparica, tudo gente da nossa terra...
António Cagica Rapaz



[da série Gente, Nomes...]

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 41




Os Maurícios

António Cagica Rapaz

Quando os Maurícios chegaram a Sesimbra um vento novo soprou no Colégio do Costa Marques. A nossa terra não estava habituada a ver desembarcar assim, de forma definitiva, tão grande família. No Verão, sim, era a costumada invasão dos alentejanos, com uma carrada de filhos, a pele tisnada e o sotaque vagaroso.

Os Maurícios eram uma catrefa, um regimento de saltimbancos coloridos, ruidosos e simpáticos. Fiquei deslumbrado com a camarata em que foi transformado o quarto, camas sobrepostas, um certo ar de caserna numa casa que marchava à voz de comando do patriarca Maurício, com o seu nariz arrebitado, a boquilha de quilómetro e o Peugeot 203 que ancorava à porta do Central às onze e meia da manhã, já almoçado. Comia-se cedo em casa dos Maurícios, e o Central aquecia com a chegada do comprido Doutor cujo vozeirão enchia de pavor o suave sô Zé da fala mansa.

O Afonso seria o mais doente e entusiasta, mas todos eles eram da Académica e traziam consigo um perfume nostálgico de Coimbra, cheiravam a capas e batinas lendárias, a choupal outonal. O Henrique ofereceu-me um minúsculo emblema da Briosa e talvez tenha nascido assim o meu sonho de Coimbra. No fundo, todos quantos estudávamos e jogávamos à bola sonhávamos com a Académica, mas vestir um dia a camisola preta era tão irreal, estava tão longe dos nossos horizontes como as aventuras do Luís Euripo, do João Tempestade, do Bronco Bustin, do Rúben Quirino, do Jerry Spring, do Cisco Kid, heróis do Condor Popular de que cheguei a ter uma razoável colecção ofertada pelo Manel Elisbão.

Menos o Luís, que era meu parceiro de turma, mais o Henrique e, sobretudo, o inefável Afonso foram despertando em mim aquele desejo secreto. Juntamente com os exemplares do “Condor Popular”, recordo-me de ter tido um ou outro número da colecção “Ídolos do Desporto”, entre os quais o de um jovem macaense chamado Augusto Rocha, um jogador genial que era o menino bonito de Coimbra, cidade maravilhosa, universo mítico de greves estudantis de 61, com o sortilégio das capas negras e o romantismo das serenatas. A Académica era a irreverência, a transcendência de um futebol diletante, claques apaixonadas, a mística e o sonho. Com o Afonso a descrever e a retocar aquele mundo admirável, o sonho foi crescendo.

Quiseram o acaso e o destino que acabasse por ir para Coimbra e para a Académica onde viria a encontrar-me com o Afonso que me levou a casa dos tios em cuja família entrei e de que continuo a fazer parte, pela grande amizade que nos liga.

O Luís e a Luísa já nos deixaram, o doutor Maurício teria hoje muita dificuldade em estacionar o Peugeot 203 em frente do seu café, o nosso Central, o Henrique raramente vem a Sesimbra, o João e o Jorge tornaram-se verdadeiros pexitos enquanto o Afonso se esconde no campo, poucas vezes nos dando a alegria da sua presença e da sua imaginação exuberante.

Era uma grande família, foi-se fragmentando com o tempo, ficam-nos as recordações aqui e ali reavivadas, como sucedeu em Oliveira do Conde, com o admirável Jorge, cenoura simpático, senhor de fino humor, um grãozinho de fantasia, a encantar o tio António e a enternecer-me quando evocou a figura do pai Maurício. Vieram, ficaram, são dos nossos, os Maurícios...

1992

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 37

as crónicas da Eventos...



Super-homens*

António Cagica Rapaz

Na penumbra do velho salão do João Mota, presos à intriga do filme policial ou arrebatados pelas proezas do Robin dos Bosques, mal dávamos pela presença do bombeiro a nosso lado, deslocando-se silenciosamente, colado à parede, como os detectives privados na peugada dos criminosos.

Do outro lado, um polícia igualmente discreto completava a dupla de segurança que nos permitia ver a fita descansados. As suas silhuetas, diluídas no escuro, acabavam por nos chamar à realidade, agora e mais logo, arrancando-nos à magia do cinema, interrompendo o sonho, por vezes, mas tranquilizando-nos também a meio de algum filme de terror.

Era um pouco o que sucede quando, madrugada alta, temos uma vaga consciência de estar a sonhar e hesitamos entre prolongar a viagem virtual e despertar. Por vezes, deixamo-nos levar, flutuamos, andamos à roleta na borda d’água suave, macia, envoltos na espuma de uma semi-fantasia controlada, com um pé no sonho e outro na realidade. Em qualquer momento podemos pôr um termo à evasão, não corremos riscos, é uma preguiça deliciosa.

E, tal como no cinema eles exerciam a vigilância, garantiam a tranquilidade e representavam o nexo com o mundo real, assim ao longo das nossas vidas nos habituámos a que os bombeiros sejam os nossos anjos da guarda. Talvez nem sempre lhes demos o devido valor, quase acabamos por achar que é normal tê-los assim, perto de nós, sempre atentos, disponíveis e dedicados, como se tal nos fosse devido. Chegávamos a invejá-los porque viam os filmes de graça, e talvez tivesse nascido no salão, da fantasia e da fascinação do cinema, a imagem mítica que, inconscientemente, fomos construindo à volta da figura do bombeiro. Em muitos filmes de aventuras e acção empolgante (como anunciava invariavelmente o Filipe) o herói era um cidadão comum que, de repente, se transformava em Super-Homem, Capitão Marvel ou Zorro, para nosso deslumbramento e admirativo entusiasmo.

Da mesma maneira, aquele bombeiro, de capacete, cinto largo com fivela forte e machado de Viking (sobretudo um calmeirão como o Westerman) no lusco-fusco do salão, acabava por se aproximar do universo de quimera da tela e ganhar aos nossos olhos de miúdos uma dimensão impressionante.

Depois, no dia seguinte, era o regresso à banalidade do quotidiano, desfazia-se o encanto quando, na rua, víamos o Zé Tucha a vender castanhas, o Albano de fato de ganga, a fazer aiolas, o Aldeia na oficina, de fato macaco, ou o Emídio no talho, de avental branco. Os heróis forjados pela nossa ingénua fantasia na penumbra do cinema voltavam à trivialidade das suas ocupações rotineiras, embora atrás da porta estivessem sempre a postos a farda e o equipamento, tudo pronto para a acção comandada pelo lancinante silvo da sirene que punha a vila em alvoroço.

Mal esta soava, toda a gente vinha para a rua, num reflexo ditado pela curiosidade e pela angústia. O ritmo e a cadência do toque indicavam se o fogo era na vila ou no campo, e logo os homens corriam de farda na mão, capacete enfiado no braço, em direcção ao quartel dos Bombeiros, situado lá no alto, longe para quem tem de subir e pressa de acudir.

Os tranquilos e modestos cidadãos tornavam a ser os destemidos defensores das nossas vidas e dos nossos bens, como se uma simples farda azul e um capacete lhes transmitissem energia, audácia, destreza, coragem e abnegação por artes mágicas.

Podemos interrogar-nos sobre as motivações profundas que levam estes homens a colocarem-se ao serviço dos seus semelhantes de forma generosa e por verdadeiro altruísmo. Talvez retirem alguma satisfação dos olhares de reconhecimento e admiração que lhes são dirigidos, o que é normal e mais do que compreensível. É natural que se sintam felizes por contribuírem para o bem-estar dos seus conterrâneos, e é muito provável que se sintam transformados quando a sirene chama por eles. Aquela farda aparentemente banal dá-lhes certamente um ânimo e um ideal reforçados porque os investe de uma responsabilidade nova, os torna, muitas vezes, braços do destino, agentes de vida, combatentes da morte, da destruição e da desgraça.

É uma missão transcendente, um desafio repetido mas sempre novo, um mundo de expectativa, temor e ansiedade que se abre diante deles a cada toque de sirene. E o contacto com a farda, o afivelar do capacete, um gesto simples pode ser o suficiente para transformar o pacato carpinteiro machado num lutador audaz e infatigável.

Mas, contrariamente aos heróis do cinema, os nossos bombeiros não actuam isoladamente, não são heróis solitários. Pelo contrário, muita da sua força e da sua intrepidez deve-se ao espírito de corpo, à união, à fraternidade e à solidariedade que constituem o cimento que conserva e reforça o carácter, a grandeza e o ideal desta corporação humanitária.

Há dias, na Cotovia, um menino dizia-me, com recatado orgulho, que toca caixa na fanfarra dos Bombeiros. E a irmã, pouco mais velha, também. Quando vemos grande parte da nossa juventude agarrada à televisão, presa a computadores e, às vezes, à droga, é reconfortante ficar a saber que ainda há jovens capazes de abraçar causas e valores como os dos Bombeiros.

Nunca serão super-homens como os heróis de ficção da nossa meninice, mas é bom que sejam generosos, sinal de que nem tudo está reduzido a cinzas, que ainda há quem conserve o fogo sagrado, o único que os nossos bombeiros se recusam a combater…

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*Publicado no n.º 26 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2003.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 41


A Tia Luzia*

António Cagica Rapaz

“Faleceram no nosso Concelho no período de 23/1/85 a 27/2/85 as seguintes pessoas: Luzia Vitória, Caixas, etc.”.

Assim começava a rubrica “Falecimentos” do nosso número de Fevereiro.

É assim a informação fria, distante, quase impessoal. Aqui a dois mil quilómetros, recebo desta forma uma lista de falecidos e tento ligar os nomes às pessoas o que raramente consigo.

Desta vez não fui além do primeiro nome da lista: Luzia Vitória.

Para a grande maioria dos leitores este nome nada evoca. Quem é esta Luzia Vitória das Caixas? Eu conto.

Mais do que uma vez me têm perguntado onde vou buscar os temas destas crónicas breves que tendes a paciência de ler. Ora eu penso que a resposta está aqui nesta situação concreta. Há num jornal notícias secas, despidas de sentimento, áridas, agrestes por vezes. São os dados estatísticos ou as publicações dos cartórios notariais. Mas o Jornal é o espelho da terra, tem de preocupar-se com a nossa terra e nesta nada é mais importante do que as pessoas. As ruas com buracos, os abusos camarários, os problemas de trânsito, tudo isso é acessório, secundário, insignificante quando comparado com as pessoas que, boas ou más, são a alma da terra.

Ora pessoalmente julgo que pouco nos preocupamos com as figuras da nossa colectividade. Tratamos de política a nível local e (exageradamente) a nível nacional, fazemos artigos teóricos sem apontar a dedo os que se distinguem negativamente, sem chamar as coisas nem as pessoas pelos seus nomes.

Por isso procuro fazer desfilar por estas colunas pessoas que, na minha opinião, merecem um certo destaque, pelo que são, pelo que valem, pelo que fazem, pelo que significam, pelo que representam a meus olhos.

É evidente que a admiração que eu possa ter por determinada pessoa não tem forçosamente de ser partilhada pelos leitores.

Por outro lado, não é sequer importante que aquilo que eu conto seja inteiramente verdadeiro. Posso até inventar personagens, pintá-las com as cores da minha imaginação e da minha sensibilidade. O leitor não deve preocupar-se com a autenticidade nem com o fundamento das minhas narrativas. A única cosia que deve contar para ele é se a crónica lhe agrada ou não, se lhe dá ou não prazer o que escrevo. Por isso, quando eu falo do meu amigo Alfredo (do Pinto e Pinto) não é para vos dar a notícia da nossa amizade (que pouco vos interessará) mas sim para evocar uma certa atmosfera vivida numa época recente à luz de tonalidades suaves, tudo descrito de forma que possa tocar a vossa sensibilidade. A amizade é um pretexto à partida e o objectivo é um testemunho que constitua um pedaço de prosa saboroso. Essa é a minha intenção.

Dizia-me o Manuel António há tempos que dera a ler a uma amiga uma crónica intitulada “A telefonia”. Ora essa amiga (que não conhecia Sesimbra), depois de ler, confessava que tinha a sensação de ter conhecido a taberna da minha avó Sabina, de ter ouvido os fados nostálgicos da Amália em noites de verão ameno e de ter ouvido o mar rugir em frente da rua dos Pescadores. A ela pouco importa se a minha avó existiu ou se chamava Sabina. O que conta é o que se lê, se agrada ou não, se evoca ou não, se cria ou não um clima, um estado de alma.

Eu sei que há pessoas em Sesimbra que não conhecem o Jorge Patrício nem o Chico. Sei que alguém disse preferir que eu evoque pessoas conhecidas. Ora a verdade é que não se trata de citar nomes apenas por citar. Importa que as pessoas em questão inspirem condições particulares. Aliás, a partir do momento em que as evoco, elas entram, de algum modo, na esfera da fantasia, deixam de ser o que eram para se tornarem personagens dos meus folhetins ingénuos. O Capitão Domingos deixa de ser o Domingos Nogueira para se tornar no Super-Homem das praias, nadador-salvador de olho de águia e braçada vertiginosa. O Vítor deixa de ser o dr. Sevilhano Ribeiro para se tornar no Fellini das noites de Cabíria, das encenações loucas no palco metafórico da padaria do Joaquim do Moinho, não nas barbas mas nos bigodes do Arménio, um Arménio que nasceu nas Caixas como a tia Luzia. A tia Luzia devia ter cerca de 95 anos e conheço-a desde que nasci. Sempre a conheci velha, viúva, vestida de preto com o rosto magro a desaparecer na escuridão de um lenço.

A tia Luzia era uma mulher sem idade, marcada pela vida, pelo sofrimento, pela labuta de quase um século.

A tia Luzia era a avó do Julinho, do João, da Maria Cremilda, da Maria Luzia, a avó de todos nós, miúdos que brincávamos trabalhando na ribeira dos Torrões. O tio Júlio aparelhava a magnífica mula preta chamada Mulata que era um diabo de animal (ao lado dela a Boneca, do tio Justino, era o mar calmo, a par da tempestade) e arrancávamos p’la manhã.

A tia Luzia já nesse tempo deixara de abalar para os campos e ficava na aldeia a organizar a lida da casa. Para mim ela é a boa velhinha que nos preparava os pãezinhos do campo em dia de cozedura. A tia Luzia é a minha meninice nas Caixas, todo um passado maravilhoso e simples como as coisas naturais.

Há uns dois anos tive uma surpresa extraordinária. Numa das minhas visitas ocasionais dei um salto às Caixas para ver os meus amigos. Quando perguntei à tia Clarisse pela mãe, receei que ela me dissesse que a tia Luzia já tivesse morrido. Era o meu receio de cada vez que procurava obter notícias. Afinal a tia Clarisse disse-me que ela estava boa e me ouvia todos os domingos. Confesso que não compreendi o que ela queria dizer e só depois deduzi que a tia Luzia, com os seus 92 anos, ouvia aos domingos as minhas crónicas na Renascença. Fiquei comovido pois nunca imaginara que uma pessoa daquela idade, que não sabia ler nem escrever, que nunca soube o que era um jogo de futebol, pudesse ouvir as minhas crónicas. Mas ouvia porque era eu. Não percebia o que eu dizia, não compreendia mas ouvia, era eu, o filho da tia Amália, que falava na telefonia.

E lá fui ver o pequeno aparelho que estava sobre uma mesa e, por cima, na parede uma fotografia grande da minha mãe.

Ao ouvir-me do fundo dos seus 92 anos a tia Luzia devia olhar a fotografia de minha mãe que ela conhecia também desde miúda. Nunca troquei com a tia Luzia mais do que três ou quatro frases triviais. Era uma mulher simples e boa, uma figura de um mundo que desapareceu.

Hoje ela deve evocar com a minha mãe, o meu tio Justino e a tia Maria Come-figos, cenas desse mundo de que só nos resta a recordação.

Lembro-me de ter visto passar na estrada das Caixas funerais estranhos. Nesse tempo ia-se a pé, caixão a pulso, até ao Castelo, quilómetros palmilhados, figuras insólitas de preto vestidas, na estrada poeirenta à torreira do sol.

Não sei como foi a tia Luzia para o Castelo. Não sei ao certo em que dia faleceu, mas sei que com ela se virou mais uma página no livro da minha vida.

A tia Luzia para mim é mais do que a simples notícia inscrita na rubrica necrológica deste Jornal. É um símbolo de uma época, uma figura insubstituível como o António do Porto, o tio Escuminha, o tio Vicente Faneca.

Por isso a arranco ao anonimato da sua lista de desaparecidos para lhe prestar a minha homenagem, para o adeus que não pude dizer-lhe a tempo.

Quando a Libinha fazia diabruras a tia Luzia ralhava assim: “a menina tem que apanhar!”. Mas a menina nunca apanhou e agora é tarde, a Libinha é adulta e a tia Luzia já não está connosco. Não está fisicamente mas continua a contemplar-nos e qualquer dia é capaz de aconselhar a Libinha quando uma filha desta for traquina. A menina tem que apanhar! – era a receita, a ameaça meiga de uma boa velhinha. Descansa em paz, Luzia Vitória.

Até um dia, tia Luzia.

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Publicado originalmente no Jornal de Sesimbra em 1985.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 32



Ao ruído das motorizadas não há quem escape...
António Cagica Rapaz


[da série Gente, Nomes...]

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 40


À porta da praça

António Cagica Rapaz

Antigamente as tertúlias eram numerosas, o barbeiro, o café, a taberna, a loja de companha, a sociedade de recreio, as escadinhas, o muro da marginal, a esquina do Central, os bancos do jardim, a antecâmara das sentinas, a praça, o adro da igreja, o consultório do doutor Caramelo, o carro da carreira, o barco de Cacilhas. Em toda a parte se falava, com calor, com volúpia, sempre com aquele sotaque tão nosso, tão pexito, inspirado no murmúrio do vento leste, no ronco surdo do mar, na melodiosa cantilena das vagas suaves que vêm morrer na areia, nos gritos das gaivotas, nos berros do chamador...

O barbeiro era, por tradição, talvez por vocação inconsciente, um homem de comunicação, orador, confidente, professor, relações públicas, diplomata, alcoviteiro discreto, tudo isto em doses variáveis consoante a personalidade do freguês, o troco que dava e a adesão da assistência. A barbearia era, muitas vezes, palco de terapia de grupo, análise e introspecção no fio da navalha, almas aparadas, emoções desbastadas, angústias de risco ao lado, álcool para as feridas provocadas por derrotas benfiquistas, sublimado para desavenças conjugais, a vida à espera de vez.

Muitas vezes o meu pai me falou, com profunda admiração, no mestre Alfredo Batista, elogiando o talento de grande actor, sublinhando a inteireza do carácter, a coragem das opiniões políticas e, sobretudo, os invulgares dotes de orador.

A praça, abençoada instituição, sempre foi o local ideal para encontros, o que muitos designam por coscuvilhice, calhandrice, má língua e conversas de alcofa que não raro o são de alcova. Mas no fundo, bendita calhandrice esta que é bálsamo para a solidão, factor de aproximação entre as pessoas, diálogo saboroso, comunicação, presença, expressão de vida, de cumplicidade, de fraternidade, gente que se olha, que se fala, que se toca com as mãos, que partilha alguma coisa, o sol, a brisa, a esquina do tempo que uns oferecem aos outros, gente que está viva.

A praça cheira a flores, a fruta, a peixe, juntam-se as pessoas, é a nossa terra, a nossa gente. Talvez por isso, o Julzé parecesse embriagado por este sol e pelo calor que sentia à sua volta. Em cada Verão, volta da fria Alemanha para matar a sede de água salgada, a fome de sardinhas assadas, as saudades da rua da Fé, do cheiro do mar, dos amigos, da verdadeira vida, fruto das raízes que estão em nós, que nos fazem sentir que este é o nosso lugar, que pertencemos aqui. Lá longe, há-de sentir, de vez em quando, o apelo do mar, um aperto no coração e uma vontade louca de largar tudo e vir a correr para a borda d’água, andar à roleta, deixar que as vagas o envolvam, o cubram de espuma, o acariciem como a mãe faz em cada Verão em que ele chega sedento de mar e de ternura...

1998

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 36

as crónicas da Eventos...



A toalha do Justino*

António Cagica Rapaz

É natural que a juventude dos nossos dias se entusiasme com um futebol transformado num espectáculo televisivo que, além disso, ainda enche páginas de três jornais diários e ocupa horas na rádio.

É compreensível que gostem do que lhes é oferecido pela tecnologia do seu tempo e ninguém lhes peça sequer para tentar imaginar o que terá sido a aventura dos amantes de futebol sem cobertura televisiva, com uma rádio incipiente e meia dúzia de jornais semanais. Como poderão eles entender a febre de quem jogava em campos pelados e ásperos, com bolas duras, pesadas, com atilhos e botas de tortura?

Aliás ninguém lhes pode pedir tal exercício de regressão no tempo. Cada um vive na sua época e boa filosofia será sermos capazes de gostar do que temos. Parece simples, mas não é assim tanto…

Hoje, o futebol desperta e alimenta paixões, mas de uma natureza diferente. Hoje, só a vitória conta, o espectador não procura qualidade, exige que a sua equipa ganhe, de qualquer maneira, até legalmente. Os dirigentes tudo fazem para conquistar triunfos porque há milhões em jogo, porque o futebol (além de constituir forte factor de alienação) gera protagonismo, dinheiro, e poder, mesmo contrapoder político. Este não é o meu futebol, o futebol que quero recordar, o futebol da paixão vibrante, forma de expressão de orgulho e até de honra que começava em cada rua para atingir o ponto mais alto na defesa da camisola cerise do nosso Desportivo.

Antes disso, foi a rivalidade acesa, a confrontação aguerrida, por vezes violenta, entre os clubes que acabaram na fusão. Não sei se o Desportivo terá sido a soma real das vontades, do empenhamento, da garra e dos sonhos de quantos o fundaram. Aqui e ali terá, porventura, ficado algum ressentimento, certa frustração, porque se é verdade que o Desportivo nasceu, não é menos exacto que os outros morreram…

Cada um de nós olhará o universo do futebol à luz da sua experiência pessoal e ninguém poderá abordar este tema de forma exaustiva, focando cada um dos mil aspectos relevantes que ele encerra. Pela minha parte, a primeira visão que tive foi a epopeia apaixonante do Pátria, através das narrativas do meu pai. E o que me ficou foi a imagem da paixão, da solidariedade, da perseverança, do amor próprio. O Pátria não foi o maior dos clubes de Sesimbra, mas foi uma causa a que um punhado de homens se entregou de alma e coração.

Depois veio o Desportivo que acompanhei com intensidade, assistindo a treinos e jogos, de reservas e primeira categoria. Via passar à minha porta os jogadores, olhava-os com admiração, tentava compreender a metamorfose das botas d’água em botas de traves, acariciava alguma bola que, no treino, me vinha parar às mãos, vendo nela um objecto mágico.

Ao mesmo tempo, ia começando a gostar do Belenenses, e o meu ídolo era o Matateu. Mas no meu espírito cedo arranjei espaço para juntar os famosos jogadores do Belenenses, ídolos distantes e quase irreais, e os meus heróis caseiros, o Manel Santana, o Izidro, o Rogério, o Zacarias…

Quando comecei a jogar nos juniores, tive como treinadores dois antigos extremos, um esquerdo, Carlos Santos, e outro direito, José Filipe. Foi um tempo heróico, de improvisação, de euforia, de arrebatamento, felizes e deslumbrados com a honra de envergar a camisola do Desportivo, jogar com uma bola a sério, num campo com marcações a cal, redes e tudo, calçar botas de traves, viver a quase inacreditável aventura.

Quis o destino que tivesse tido a oportunidade de chegar à Divisão maior, de vestir a camisola da Académica, de defrontar alguns dos ídolos da minha meninice. Jogar na Luz contra o Eusébio terá sido a glória suprema, defrontar o grande Matateu foi a mais tocante das experiências.

Cada coisa tem, na nossa memória, o seu lugar e o seu valor, há espaço para todas, por isso não é necessário estabelecer hierarquias. Porém, com o decorrer dos anos, há imagens cujos contornos se vão esbatendo mais do que outras e é verdade que fica um perfume de ternura pelo período da infância e da adolescência. Não só por sermos jovens, mas porque esse foi o tempo único não da nossa inocência mas do sonho, do arrebatamento, da explosão do nosso entusiasmo, da descoberta e do encantamento.

Enquanto coleccionávamos recortes de jornais no livro da primeira classe, o Fidalgo e eu olhávamos com admiração os jogadores do Desportivo, um dos quais, o Izidro, era tio dele. Anos depois, fomos companheiros nos juniores. Jogávamos de manhã, e à tarde estávamos a ver de perto os grandes jogadores que arrebatavam a multidão que enchia o minúsculo campo da Vila Amália.

Crescemos a vibrar com os duelos à chuva, com o mar ao longe a rugir, sob um céu de chumbo como o pé do Baeta, e com a eira do Valada suspensa da luta desigual e arrebatadora entre o Justino e os nossos heróis. Na baliza do Ginásio de Cacilhas, o Justino era um gigante, homem de uma cana, defendia tudo, limpava as mãos à toalha pendurada nas malhas, desafiava, irritava a assistência, negava o golo mil vezes, resistia sozinho, só tombava ao cair do pano. Era épico, dramático, inesquecível.

Provavelmente, mais do que uma vez, marcado o golo da vitória, os exaustos assaltantes do nosso Desportivo terão atirado bolas para o ribeiro, para ganhar tempo. Conservo nítida e viva a imagem de um Justino quase imbatível, que jogava de raiva, que tinha uma sorte que parecia bruxedo, que fazia defesas impossíveis e que encontrava na lama, nas traves, no vento, aliados cínicos e poderosos.

Anos mais tarde, fiz o meu segundo jogo pela Académica, na Póvoa do Varzim. Na baliza dos poveiros, o mesmo Justino e na minha memória, naquela tarde como hoje ainda, lá estava a figura esguia, felina, elástica. E talvez estivesse também, pendurada nas malhas, uma toalha que simbolizava o desafio que ele lançava, irónico e confiante, ao Desportivo, a Sesimbra inteira.

Era outro tempo, não sei se melhor, mas certamente de paixão mais autêntica, no universo estreito das nossas ruas, de emoções partilhadas, de sonhos contidos, de certa forma de pureza. Nem tudo seria perfeito, mas os gestos feios ficaram pelo caminho, sorrateiramente apagámo-los do quadro preto da escola, enterrámo-los na areia da praia do tio Abel, limpámo-los à toalha do Justino…

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* Publicado no n.º 27 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2003.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 39


O nosso Jorge

António Cagica Rapaz

As raízes da minha infância no campo encontram-se nas Caixas, no tempo do ribeiro dos Torrões, da cozedura do pão, da debulha na eira e da vindima. Muitos anos depois, já adulto, o meu campo passou a ser mais a Cotovia, por bondade do tio Jojó. E lá fui encontrar uma figura notável, o Jorge Patrício, irmão do tio Sebastião, da Sopa, meu velho conhecido da rua dos Pescadores.
O Jorge é uma figura, uma personagem invulgar, com uma filosofia de vida bem sua, sabendo dosear o esforço, repartindo-o entre obrigações e prazer com uma sabedoria admirável. Era homem para cuspir nas mãos e cavar dobrado, de sol a sol, e também sabia manobrar o martelo, a serra, o alicate e a turquês, a pá e o balde. Compunha aqui, desenrascava ali, dava um jeito (um toque cabazeiro, como ele dizia), e aí tínhamos o nosso Jorge, hábil de mãos, vivo de espírito, sempre tranquilo, sem pressas, com um sorriso permanente e um olhar maroto. O Jorge era um homem de uma só peça, da linhagem dos Patrícios, fino recorte de aristocrata da terra, cabelinho branco e curto, risco ao lado nítido, porte seguro, passo ágil, gesto franco, ironia subtil, nobreza de carácter. O Jorge sabia gozar a vida, sabia apreciar. E gostava de partilhar. A sua bagaceira, baptizada “Patricius”, pelo tio Jojó, era um néctar delicioso, a saborear no cálice da amizade. Ao domingo, já almoçado, o Jorge aparecia em casa do tio Jojó, barbinha feita, todo catita. Após múltiplas insistências, acabava por aceitar um pedaço de queijo e uma pinga, para nos dar prazer, para fazer companhia, sob o olhar divertido do tio Nuno e para satisfação do tio Jojó que tinha pelo Jorge uma ternura infinita.

O Jorge foi o último de uma raça, símbolo de um tempo que se finou. Com ele foi-se o romantismo, a visão idealizada da vida campestre, a neblina poética que envolvia a Cotovia nas manhãs de Outono quando o Inverno já espreita e começa a apetecer carapaus secos com batatas, regados com o azeite que o senhor Braguez costumava trazer à Carolina. Como vai longe esse tempo e que vazio à nossa volta!

Resta-nos o Chico, que é a imagem fiel do Jorge. Graças a ele, o Jorge não partiu totalmente. Se forem ao Casal e ele não estiver é porque foi à da Carmelinda. Se lá não o encontrarem é porque foi à Carrasqueira, com o Chico. Se lá não o virem, se não estiver, não procurem mais, ele pode estar em qualquer sítio. De certeza está é nos nossos corações, o nosso Jorge.

1983

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 31



O Luís Preto, o Castanho, o Encarnadinho e o Branquinho acaso serão filhos da Aurora Boreal?
António Cagica Rapaz


[da série Gente, Nomes...]

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 40


Naquele tempo*

António Cagica Rapaz

Um novo ano começa e com ele se ultrapassa largamente o primeiro terço deste século 21. De facto, 2039 é um marco histórico, há um século começava a segunda guerra mundial. Apetece-me hoje reflectir um pouco sobre a fragilidade das nossas convicções e conceitos, muito mais passíveis de evolução e alteração do que nós imaginávamos. O que ontem parecia certo e irreversível surge-nos hoje ultrapassado, obsoleto e desajustado.

Na última década do século 20, aí por volta de 1994-95, mais coisa menos coisa, o nosso “Sesimbra Tribune” chamava-se prosaicamente “O Sesimbrense” e era apenas constituído por folhas de papel. Nessa altura estava-se a dar os primeiros passos, hesitantes e incrédulos, na Internet, espécie de pré-história da actual Rede Sideral Interplanetária. E lembro-me de ler nesse jornal de papel (dá vontade de sorrir) que sujava os dedos e amarelecia com o tempo, certos artigos de tonalidade saudosista, recordações, evocações e variações em torno do tema glosado e estafado dos “bons velhos tempos”.

Nessa altura, teria eu os meus sete ou oito anos, o mundo circundante parecia-me maravilhoso, «curtia bué» como se dizia então. Era o apogeu dos vídeos, computadores, televisão por cabo, moto de água, moto-quatro, jipes infernais, Mac Donalds, ketch-up e Coca Cola, o paraíso acelerado. Por isso me parecia aberrante, insuportável e irritante ler as lamúrias de alguns piegas que vinham com histórias do tempo da Maria Cachucha, as armações, as ruas enfeitadas, a lota encostada à Fortaleza, eu sei lá, baboseiras, lamechices bolorentas e bafientas.

Ora hoje, mais de quarenta anos volvidos, eis-me aqui a dar a mão à palmatória, a fazer a minha penitência porque, apesar dos inacreditáveis progressos tecnológicos, confesso ter saudades dos anos 90, desse inesquecível fim de século. E compreendo agora que os velhos piegas dessa altura pudessem recordar, enternecidos, os seus anos 50 e 60. É verdade, agora entendo e explico porquê. Hoje há tudo, absolutamente tudo quanto é imaginável, útil, supérfluo, perfeito, prático, eficaz. Mas a qualidade de vida não é o que foi…

Por exemplo, os actuais engenhos individuais de transporte organizado (também designados por EITO) são eficientes, rápidos, mas inegavelmente assustadores. Por isso se diz que hoje toda a gente se desloca com facilidade, mas anda tudo a EITO. Comparadas com estas máquinas diabólicas, as motorizadas dos anos 90 são como triciclos a pedais ao pé das SUSUKI e/ou YAMAHA daquela época. Dizem que nesse tempo a Guarda chamada Republicana só andava perto do jardim e no largo da Marinha a multar automobilistas distraídos enquanto as motos roncavam marginal fora e as motorizadas de escape ruidoso circulavam em total impunidade. Hoje é o mesmo com as Patrulhas Espaciais que nada fazem perante a velocidade louca e a proliferação incontrolável dos engenhos. Ainda me lembro de certos aceleras na antiga marginal, quando ia pela mão do meu pai a uma esplanada pequena virada para o mar. Era do senhor João (ainda é vivo, julgo eu), era o café Martelo e no seu lugar está hoje o “Pronto a despir”, ou seja, o “strep-tease” misto colectivo.

Ali perto ficava a Fortaleza que, em tempos idos, albergou a Guarda Fiscal, instituição arcaica desmantelada tardiamente. Hoje é o Casino Ibérico, com esplanada reservada ao estacionamento dos famosos ENA, ou seja, engenhos navais aéreos, anfíbios de descolagem vertical. Tão bonita e majestosa, a Fortaleza transformou-se num antro de perdição e desbragamento.

E a lota? Já não é do meu tempo a lota à beira da Fortaleza, só conheci a que funcionava na doca. Recordo-me, aliás, da celeuma levantada pelas obras de aterragem que desfiguraram o velho porto de abrigo, a justa revolta e a batalha vigorosa travada por um tal Filipe (bela figura de cabelos brancos) e um Batista que rejuvenescia com o seu bairrismo e ardor polémico. Ambos foram pilares vitais do velho “Sesimbrense” durante anos. Hoje já não há lota, já não há o chui dos compradores, nada. Como sabeis, os barcos estão todos equipados com a aparelhagem adequada à pesca, amanho e congelamento imediato. O peixe transita depois, directamente, das câmaras frigoríficas dos barcos para os contentores que o levam para o Super Hiper Market, de 4 pisos, construído pelo presidente Ezequiel Júnior no local da antiga praça. Ai que saudades das sardinhas do Júlio Galgão, das navalhas do Bacalhau, do espadarte do Álvaro!

Ali perto, onde se erguia o monumento ao Pescador, está agora uma estátua ao Tony da Marisqueira, figura emblemática da boémia que transformou um modesto café num restaurante requintado. Fez isso e muito mais, ao longo de uma vida de trabalho e malandrice nos braços da noite velha. Ouvi contar, é quase uma lenda, que o seu bigode fez furor e muitas cócegas, não sei. Dizem que era um calmeirão simpático, de gargalhada sonora e que na antiga Marisqueira ainda entraram lobos do mar autênticos, de pele tisnada e boné de pala curta, um tal capitão John (não garanto que fosse irlandês) e o tio Escuminha. Aliás, tudo isto vem na página TONY que pode ser consultada nos terminais da biblioteca municipal Rafael Monteiro, no Forum Cultural do Castelo. Lá se encontra igualmente uma colectânea de todas as crónicas que vinham na última página do velho “Sesimbrense”, não me ocorre agora o nome do autor…

Mas vejam só como são as coisas. Consta que, durante anos, um homenzinho de boné, calça branca e camiseta de cavas, vendeu bolos e pastéis na praia. Era, salvo erro, um tal Zé Tucha que, pelo tarde, se converteu aos ideias de Jeová. Foi a pedra sobre a qual foi construído o que hoje é designado pelo “Colectivo Espiritual OLARAJÁ” e que ocupa as instalações que na origem eram o Hotel do Mar, em frente ao actual pontão Explorer. Este pontão começou por ser, nos anos 90, um amontoado de pedregulhos monstruosos e hoje é um dos sete que funcionam como suporte e enquadramento da marina.

Junto ao jardim havia o lar de idosos, hoje chamado Antecâmara. A liberalização da eutanásia, aprovada há dez anos pelo Parlamento Municipal, permitiu colocar à disposição de cada pessoa o comprimido que abre. Sem dor e instantaneamente, as portas do além. Também legal é, há muito tempo, o consumo de droga, distribuída, aliás, gratuitamente em qualquer supermarket. As autoridades e o público em geral, todos concordam ter sido uma boa decisão. Os mais viciados não resistiram à tentação nem à overdose. Os outros não ligam porque já não é fruto proibido. Ficam-se, alguns raros, por umas coisas leves a que ninguém chama droga, mas sim Pó de Evasão Individual para Devaneio Onírico, isto é, simples veículo de sonho, como o nome é muito comprido toda a gente o conhece pelas iniciais…

Em matéria de transportes colectivos, é de referir o admirável progresso verificado com o “OverTejo” que, em dez minutos, nos leva da plataforma da Alfarrobeira à Espiral de Neptuno, antiga Praça de Espanha.

Quem anda muito triste e acabrunhado é um velhote que, em tempos, teve o melhor restaurante de Sesimbra e que ia aos arames com as motorizadas barulhentas. Um dia entendeu que o único remédio era dar-lhes com um remo no capacete (ou nos cornos, já não sei bem) e, desde então, começou a empreender, a empreender, a cismar. Passa os dias no muro, de remo na mão à espera de motorizadas e não ouve quando se lhe diz que motorizadas só no museu da Cilindrada.

E é assim, temos de viver com o nosso tempo, mas por vezes custa. Hoje a vida será mais fácil, mas perdeu-se poesia e romantismo. Só conta a eficácia, o que prevalece é a ténica. Ténica? Mas onde é que eu já li isto?...

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Publicado originalmente em O Sesimbrense.