__________________________________________________________________

segunda-feira, 16 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 58



O Titanic e o Numância

António Cagica Rapaz

Todos nós temos, cada um à sua maneira, uma atitude ou, pelo menos, um olhar crítico sobre quanto nos rodeia, e é difícil negar que certas apreciações não envolvam preconceitos de classe ou de estatuto. É de bom tom ir-se ao teatro dito sério, não à revista do Parque Mayer. É bem ir ao Centro Cultural de Belém, apenas curioso ir dançar aos Alunos de Apolo. E a nota de intelectualidade vem com o anúncio de que se vai à ópera, a exposições e se anda a ler “O Erro de Descartes”, obra da autoria do brilhante cientista António Damásio que, paradoxalmente, é menos conhecido que Manuel Damásio, antigo presidente do Benfica.

Fica bem passear, ao sábado, com o “Expresso” na mão, embora o prazer da sua leitura possa ser, para muito boa gente, inferior ao do conferido pelo “Record”. E há quem leia os dois, é verdade. Cada um tem o direito de escolher as formas, os objectos da sua contemplação e as vias de navegação no interior de si mesmo.

Talvez também o mais importante não seja assistir à concertos, visitar museus ou ler muitos livros. Se calhar, o mais importante é o que fazemos (ou não) com isso, de que nos serve, o que provoca em nós, quem somos, como nos tornamos depois de lermos Tolstoi, depois de admirarmos um quadro de Modigliani ou vermos um filme de Ingmar Bergman.

É bem possível que o operário que assistiu a uma desgarrada na tasca lá do bairro encontre nela inspiração para improvisar duas quadras ou assobiar ao desafio com o canário, na penumbra da oficina. Ao passo que muitos dos nossos intelectuais levam uma vida inteira a ver, a ler, a assistir, a contemplar, sempre e só espectadores, passivos, sem jamais escreverem o menor verso, sem desenharem sequer na areia, sem moldarem uma bola de barro nem pintarem uma parede com cal.

Há tempo vi um filme de Manuel de Oliveira e não gostei, achei insípido, insuportável. Em contrapartida, achei deslumbrante o Titanic que levou a bordo uma bela história de amor, um amor forte e saudável, rijo como o vento, macio como o mar raso, imparável, inadiável, eterno, braços estendidos para o infinito, para além dos preconceitos, para além das convenções, para além da morte.

O Titanic veio confirmar que continuamos a precisar de romanesco, de amor, de sonho, de fantasia, a mesma fantasia que se apossava de nós ao contemplarmos os destroços do Numância. Durante anos, ele foi o mistério que deu à costa, espécie de monstro marinho que veio morrer na rebentação.

Nas suas cavernas, mais do que polvos e safios, moraram segredos de guerra, silêncios tenebrosos, o desconhecido e o fascínio. Com ele, o mar e o tempo levaram os charutos, os escaleres, os passadiços e a poesia da praia do tio Abel...

Cada um tem imagens e filmes na cabeça, desde as aventuras do burrinho Bim, que o padre João projectava no salão paroquial, até ao Titanic. A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de interferir, impotentes para reagir. Até ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes...

1998

Sem comentários:

Enviar um comentário