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segunda-feira, 9 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 57



Pilaglotas

António Cagica Rapaz

- Hoje, amanhê e despois d’amanhê!

Assim transmitia o Pila a um turista alemão alguns rudimentos da nossa língua, salpicados de pronúncia muito nossa.

Encostado ao muro do Espadarte, com a irreverência própria da idade e um humor desassombrado, o Manel António desatou a rir, naturalmente, tão irresistível lhe soou a tirada do Pila. Não envolvia a sua atitude qualquer juízo de valor, cada um dá o que tem, muito faziam o Pila e os outros pilaglotas da nossa terra, às voltas com os estrangeiros que nos visitavam em busca de sol, de mar e outras especialidades da terra.

Uma bela tarde, estávamos nós a saborear umas cadelinhas deliciosas no café do Marcos, quando entra pela porta dentro um casal alemão acompanhado por outro intérprete diplomado, de seu nome Brazinha. Em francês e inglês, ainda eles arranhavam alguma coisa, agora em alemão, nada, a não ser . E há que fazer pela vida, e há que puxar pela imaginação para calafetar um envolvimento, justificar uns petiscos, tentar umas aproximações. O aparato era grande, a comunicação é que se revelava difícil. Vá lá explicar sem palavras o gosto do Pescador, o paladar das prainhas ou o sabor das cadelinhas! Como o gesto é tudo, o Brazinha não tinha mãos a medir, em mímicas e trejeitos que os alemães acompanhavam com visível incompreensão, embora aqui e ali deixassem escapar um sorriso tímido. E lá vinham as imperiais e os petiscos, com o Marcos de olhar divertido. Como não é bonito comer e beber sem criar um mínimo de ambiente, o nosso Brazinha lá ia multiplicando os gestos que ninguém percebia, nem os alemães nem nós que acompanhávamos a pantomina com descarado interesse.

Parecia um filme do tempo do cinema mudo, delírio em silêncio, surrealista, indescritível. A certa altura, dá-se o drama. O meu parente Agostinho, provavelmente preocupado com os esforços inglórios do Brazinha, abriu a boca para lhe dizer qualquer coisa. Pelas barbas do Profeta, o que ele foi fazer! O Brazinha vira-se, ofendido e furioso, e lança-lhe com autoridade e agastamento: - Cala-te, pá, não te metas na conversa!

Magistral, piramidal, inigualável sentença! O pobre do tio Agostinho meteu o rabo entre pernas e nós explodimos de riso. O Julião quase que se ia pelo fôlego e o Manel soltava gargalhadas homéricas daquelas que fazem tremer os torrões da fortaleza.

Sesimbra está cheia de historietas saborosas como esta, o célebre mano a mano entre o Ernesto Corneta e o Zé Brandão, um pé na peixaria e outro na oficina, a malandrice manhosa do Zé Ralaço, os primores de la panale, de l’armaçone, tudo isto é apenas a face ingénua de uma convivência a que todos se sentiam com direito e para a qual alguns não estavam preparados. Não se trata de julgamentos catedráticos, tal seria estúpido e intolerável. Apenas se regista, sem maldade, o toque humorístico, o insólito, o pitoresco de certas expressões e alguns comportamentos.

Era Sesimbra, era outro tempo...

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