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segunda-feira, 2 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 56



O Padre João

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, a nossa vida girava à volta da praia, da escola e da igreja, com a missa dominical, o catecismo na ponta da língua e a confissão envergonhada no Natal e na Páscoa.

No salão paroquial projectavam-se filmes artesanais que nos deslumbravam porque tudo se desenrolava ali diante de nós. No salão do João Mota, o Filipe era uma espécie de homem invisível, escondido na casa das máquinas de onde saía aquele feixe de luz dirigido ao écran onde o milagre do cinema se concretizava. O salão paroquial era, com toda a propriedade, o nosso “cinema paraíso” e o projeccionista era o Padre João...

Ah, o Padre João!

O Padre João é uma figura quase mítica, bom samaritano, rei mago, bom pastor, símbolo de um tempo maravilhoso, mais do que um padre, um grande amigo e companheiro da nossa juventude.

A Igreja, naquele tempo, ensinava-nos coisas que mal compreendíamos, ficava a ideia assustadora de que os maus iriam para o inferno e que comer um bolo antes de comungar era pecado mortal. Felizmente, acima dos dogmas rígidos e tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia connosco. Poucas pessoas terão marcado tanto, adquirido uma tal imagem na memória colectiva da nossa terra.

A casa paroquial ficava no largo da igreja e por lá paravam o Pedro Vítor, o Hernâni, o Luciano, os irmãos Anacletos. Jogava-se ao futebol de tabuleiro, com pregos e uma palheta, enquanto o Zé Canoa, o Zé Quadros, o Mira e o Nobre arreliavam o Amílcar por causa do Belenenses. Era, em regra, ao fim do dia, quase à hora do jantar, quando o carro que saía de Cacilhas às seis e quarenta e cinco já vinha na Alfarrobeira.

Mais tarde, depois de jantar, o Padre João passava pelo tio Chico antes de se dirigir ao Jeremias onde o esperavam os carpinteiros navais e a impertinência do meu tio Justino. Ficou para a história o episódio da árvore de Natal e do par de cornos lá pendurado.

Célebre ficou a réplica do Padre João: “Francamente, senhor Justino, só da sua cabeça podia sair uma coisa destas!”. Era assim, homem de todas as situações, com sotaina ou em calções, tão à vontade no altar como no café, a mesma frontalidade, o mesmo desassombro, a mesma irresistível simpatia.

Porque a missa era num latim incompreensível para os profanos que todos éramos, foi criada uma versão portuguesa para a missa das crianças. Em cada manhã de domingo, o Pedro Gonçalves e eu líamos, com nervosismo e orgulho, intróitos, epístolas e evangelhos através dos quais o Senhor Jesus, em verdade, em verdade, nos dizia coisas misteriosas e maravilhosas, parábolas que recitávamos com inocente emoção, sob o olhar bondoso do Padre João. Até que, aos 16 anos, troquei o altar pela grande área, o Padre João pelo Carlos Marques, a missa pelo futebol.

O mesmo futebol nos voltaria a aproximar, uns nove anos depois, em Tomar. Com as equipas alinhadas no centro do terreno, ouvi que chamavam por mim, lá de longe, do último degrau da bancada. Era um vulto escuro que me pareceu ser um estudante de Coimbra, perspectiva pouco provável pois jogava eu, então, na CUF.

Só no final tive a resposta e a alegria de ver surgir o Padre João. Voltámos a encontrar-nos muitos anos depois, em S. Pedro de Moel e escrevemo-nos durante muito tempo, até à sua morte.

O Padre João foi, para todos nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Diniz, era parceiro no dominó, no não-te-irrites, no Chico da Cooperativa, no Jeremias, um irmão mais velho, um padre cativante e um homem encantador.

Dotado de forte personalidade, não se escondia atrás da sotaina e tomou posições de grande firmeza em nome da justiça, da verdade, da dignidade das pessoas, defendendo e ajudando pobres e desprotegidos.

Não tivemos o tempo suficiente para abordar com mais profundidade assuntos apaixonantes, mistérios da alma humana, questões sensíveis que teve de enfrentar com coragem e prudência, com humildade e convicção.

O nome do Padre João continua a evocar o sino melodioso, as matinas e as vésperas, a sombra protectora da igreja de cima, as endiabradas partidas de futebol depois da catequese, a segurança e a esperança, o reconforto e a fé, mas, acima de tudo, a fraternidade.

Deram o seu nome a uma rua de Sesimbra. Lá mora a nossa saudade...

1993

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