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quarta-feira, 18 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 59


As linhas da mão*

António Cagica Rapaz

Março de 1971. Nessa altura estas questões de natureza metafísica ainda não haviam atravessado o meu espírito. Apenas conservara recordações difusas de relatos fantasmagóricos de manifestações de almas do outro mundo e de pessoas possuídas pelo diabo, como uma velhota (analfabeta, convém referir) que respondia, em português, a perguntas que o padre João lhe fazia, em francês e inglês. E sem a menor dúvida percebia as perguntas. Quem souber que explique este mistério, eu não sei…
Tendo ouvido referências elogiosas ao professor Hórus e levado pela curiosidade, resolvi consultá-lo. Foi de manhã, na avenida João XXI, estava a cumprir o serviço militar no quartel da serra da Carregueira e a jogar no Belenenses. Estes pormenores são importantes para um correcto enquadramento e compreensão dos factos que vou narrar.
Como pretexto para a consulta, levava duas perguntas. Por um lado, de forma discreta, sem abrir o jogo, procurar descobrir se havia risco de ser mobilizado para o Ultramar. Por outro, sem revelar pormenores saber se a minha mãe iria ou não sair da casa onde morávamos.
Relativamente ao primeiro assunto, não revelei que estava na tropa, e o professor Hórus apenas sabia que eu estava no Belenenses, já que se interessava por futebol. À minha pergunta respondeu simplesmente que eu, de facto, sairia do País. Ou nos quinze dias que se seguiam ou, se não, entre Setembro e Novembro. A primeira hipótese era altamente improvável pois a tão curta distância decerto já saberia. Na realidade, nem pela tropa nem pelo futebol havia qualquer viagem em perspectiva. Ficava então, por exclusão de partes, a saída entre Setembro e Novembro, o que àquela distância parecia perfeitamente possível. Tentei saber se seria para perto ou para longe, mas só me disse que sairia do País, sem mais precisões. Por isso, não liguei importância à previsão já que, pelo futebol, era possível, em qualquer altura, ir ao estrangeiro. Só mais tarde, depois das coisas acontecerem, me lembrei do que me dissera. E, ao retomar o fio dos acontecimentos, apercebi-me de que o encadeamento foi espantoso. E tudo me foi dito de forma tranquila, sem artifícios nem encenações, com clareza e simplicidade. O professor limitou-se a perguntar o dia e a hora do meu nascimento, para depois se concentrar nas linhas da mão, onde, segundo ele, tudo está escrito, basta saber ler.
Após a consulta, fui à minha vida e não voltei a pensar no assunto, até Novembro.
Assim, o tempo foi passando e os dados foram sofrendo alterações.  Em Julho, uma atitude inesperada do Belenenses obrigou-me a fazer um processo àquele clube, pondo termo à minha actividade de futebolista. Ficava, desta forma, sem viabilidade a hipótese de sair do País via futebol. Restava o risco de ser mobilizado, o que podia suceder até fins de Setembro. Ora, no dia um de Outubro esse risco foi eliminado, pois deixei de ser mobilizável. Porém, não havia a menor possibilidade de eu poder sair do País, uma vez que não tinha qualquer motivação para tal, nenhuma razão objectiva, não tinha férias e o próprio passaporte estava caducado. Em resumo, nada, mas absolutamente nada, deixava antever a minha saída do País. De repente, tudo mudou. Ao meu quartel, na Serra da Carregueira, chegou uma ordem de transferência para a Defesa Nacional, na Cova da Moura, que viria a ser o berço da Junta de Salvação Nacional. Mal lá cheguei, aproveitei uma falha do sistema para obter um inesperado mês de férias. A meio de Outubro, sem que eu procurasse, surgiu a oportunidade de ir a Paris. Consegui em 24 horas a renovação do passaporte, habitualmente muito demorada. E acabei por sair do País, em fins de Outubro, ou seja, entre Setembro e Novembro, como Hórus previra. Mais tarde dei por mim a analisar a sucessão das ocorrências: tudo contra, a certa altura, para, pouco a pouco, irem caindo as barreiras e se abrirem portas até ao desfecho que ele previra. Espantoso.
O episódio da nossa casa foi ainda mais impressionante. Uns meses antes, o dono da casa onde morávamos, anunciou-me, sem contemplações, que precisava dela para passar férias. E que, por essa nobre e irrecusável razão, a minha mãe teria de abandonar a casa onde morávamos havia vinte anos. Tentei sugerir que utilizasse a enorme (e quase vazia) vivenda da sua mãe, ali mesmo ao lado da nossa. Procurei explicar que, se ele precisava da casa para férias, nós precisávamos dela o ano inteiro. De nada serviu, não senhor, queria a nossa casa. Frisou que era proprietário havia mais de cinco anos, que tinha advogado e que me poria em tribunal. E foi o que fez, accionando a ordem de despejo. Houve julgamento no Seixal e o senhor apresentou três testemunhas para o ajudarem na louvável cruzada de nos pôr na rua. Uma delas era um sesimbrense insigne, já falecido, que morava no castelo. Outra estava ligada a uma das empresas rodoviárias da nossa terra. Da terceira não me recordo. Nós levámos a minha tia Lucinda que chegou para todos eles menos para o juiz que acolheu benevolamente os justos e piedosos argumentos do senhor proprietário. E, com toda a naturalidade, nós perdemos. Para ganhar tempo, apenas, interpusemos recurso, mas sem a menor esperança. E foi neste contexto que, em Março de 71, consultei o professor Hórus.
Naturalmente, nada revelei destes preliminares, apenas perguntei se a minha mãe iria sair da casa onde morava. Hórus pediu-me a data de nascimento da minha mãe e, de imediato, proferiu uma declaração que me deixou estarrecido. Disse-me, mais ou menos o seguinte: “Se a sua mãe tivesse de sair de casa, teria saído no dia 2 de Fevereiro. Se não saiu, só o fará daqui a cinco anos.” Estávamos, recordo, a meio de Março, e a minha mãe só não saíra porque havíamos recorrido da sentença. Na realidade (e isto é impressionante), se não tivéssemos recorrido, a minha mãe teria mesmo saído a 2 de Fevereiro. Porque a sentença do tribunal fora proferida a 2 de Novembro e tínhamos três meses para sair. Mais ainda. Cinco anos depois, em Março de 76, a minha mãe saiu de casa, como Hórus previra. Foi para o hospital e lá veio a falecer.
Durante esses cinco anos a minha mãe viveu na sua casa porque, contrariamente à nossa expectativa, ganhámos o recurso. Estávamos tão certos de voltar a perder que já tínhamos outra casa apalavrada, na mesma rua Monteiro. Quando o consultei, para mim era uma certeza ter de sair de casa. Por isso, não acreditei no que me dizia, não via como evitar o despejo. No entanto, Hórus não se enganou. Estas terão sido as revelações mais marcantes que me fez. Outras vieram a confirmar-se e só não me impressionaram tanto porque me pareceram naturais, na lógica das coisas, sem obstáculos de peso pelo caminho.
O professor era um homem simpático, de palavra solta, desassombrado. Criou-se entre nós um clima espontâneo de cordial confiança, falámos de muita coisa, imaginámos um projecto original ligado ao futebol e acabei por lhe fazer uma entrevista insólita para o “Record”, tendo ele recusado ler o que escrevi antes de ser publicado. Disse-me ter total confiança em mim, garantida pelo meu signo e pelo meu ascendente. Foi mais longe e convidou-me para o secundar, por forma a substituí-lo a prazo, pois já estava em condições de se reformar quando lhe apetecesse. Para mim foi uma grande surpresa, não me sentia sequer atraído, menos ainda preparado para tal missão. Tranquilizou-me dizendo que conseguiria, que bastaria aprender um pouco de astronomia, usar de certo bom senso e psicologia, já que tudo (ou quase) está escrito na mão. E isso ele me ensinaria. Recusei, quase sem pensar, por instinto. Nessa altura, estas questões esotéricas eram-me totalmente estranhas, pelo que não aceitei o convite. Por curiosidade, perguntei-lhe como pôde ele casar, já que deveria saber que não resultaria. De facto, Hórus era divorciado e vivia com outra mulher. Sorriu e disse-me que, de facto, sabia. Mas que não se pode fugir ao destino. No fundo, eu penso que, embora avisado, mesmo sabendo, fica sempre uma parcela de dúvida. Por isso, talvez, terá casado…
Não voltei a vê-lo desde então. Vinte anos mais tarde, em situação particularmente dolorosa, contactei-o por telefone, a mais de mil quilómetros de distância. E o professor Hórus, sem me ver, sem ver a minha mão, consegui fazer uma previsão que, uma vez mais, se concretizou em absoluto.
Volvidos estes anos, não sei se teria condições para o substituir. Sinceramente, penso que não. Porque ele tinha, com certeza, um dom superior. Acredito que muita coisa possa estar escrita na mão. Porém, na minha, com certeza que não estava escrito 2 de Fevereiro. Para chegar a tão inacreditável pormenor era preciso uma capacidade excepcional de vidência. Que eu não tenho. Se tivesse já me teria apercebido. Com toda a tranquilidade, Hórus contava-me que as pessoas iam vê-lo na esperança que ele lhes proporcionasse uma vida melhor. Mas, com humildade, o professor admitia que apenas podia dizer-lhes o que está escrito na mão, nada mais. Que não tinha o poder de lhes alterar o destino. A esta distância, pelo que tenho visto, penso ser discutível se uma pessoa, uma vez alertada e se acreditar, pode ou não alterar o seu destino. Mas, ao escolher o que julga ser outro caminho, não estará apenas a cumprir o que, na verdade, lhe estava pré-determinado? Vasto debate, meus senhores.
No fundo, se Hórus não deu a cada um o destino apetecido, pelo menos terá despertado em muitos a consciência de que nada acontece por acaso. A partir daí, cada um segue o caminho que entender. Certa, só a morte…
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*Publicado em O Sesimbrense de Fevereiro de 1999.

2 comentários:

  1. muito curiosa e até corajosa, esta crónica, pelo assunto que aborda.

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  2. Boa tarde,
    Depois de tantos anos sem saber de ti, tomo conhecimento que já partiste e que nos iremos juntar como o fizemos em 1971 na Defesa Nacional. Estivemos os dois no Secretaria-geral, tu vinhas através do Belenenses, eu através do Atletismo do Sporting.
    Convivi contigo pouco tempo, o tempo necessário para te recordar com muita saudade.
    Um abraço de eterna saudade:
    VOLTEI!

    (Rogério Martins Simões)

    Venho dos limites do tempo
    De uma galáxia qualquer
    Já fui mar, já fui vento
    Agora sou pensamento
    Aparado em dado momento
    No ventre de uma Mulher!

    Meu corpo é magistral!
    Brutal! Perfeito! Soberbo!
    De início não era verbo
    Agora sou o verbo ser

    Tenho comigo segredos
    Segredos do universo
    Transporto no corpo recados
    Escrevo em forma de verso.
    Venho dos limites do tempo
    Não sei o que fui e sou:
    Deserto? Nascente?
    Já fui Norte, já fui Sul
    Pó astral, mar azul!
    Luar, estrela cadente.

    Eu me vou!
    Partirei num cometa qualquer
    E serei novamente pôr-do-sol.
    Cor-de-rosa, aloendro, malmequer!

    Voltei...Já cá estou…
    Agora sou pensamento
    Nascido em dado momento
    Do ventre de uma Mulher!

    23-09-2004 18:39
    Aldeia do Meco

    (Este poema foi gravado em MP3 pelo Luís Gaspar nos Estúdios Raposo –“Lugar aos novos”

    (Registado no Ministério da Cultura
    - Inspecção-Geral das Actividades Culturais I.G.A.C. –
    Processo n.º 2079/09)

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