__________________________________________________________________

quarta-feira, 4 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 57



A Procissão*
António Cagica Rapaz
O Senhor Jesus das Chagas de braços abertos, a cabeça abandonada sobre os ombros, cobertos de belas flores, detém-se no Largo da Marinha e contempla o mar infindo, enquanto as sirenes dos barcos e os morteiros lhe martelam os ouvidos cansados de pedidos interesseiros, de promessas gananciosas.
É a procissão em todo o seu esplendor. O senhor prior, as forças vivas da terra, os lindos anjos com os seus longos caracóis e as vestes imaculadas, os homens de capa vermelha que sorriem aos amigos e impedem os anjinhos de fazer diabruras, a música a tocar, as mulheres a chorar e os carrinhos e o carrossel do arraial que empreendem nova corrida, nova viagem. Nos parapeitos das janelas, colchas maravilhosas que nunca conheceram o calor de um leito e não voltarão a ver a procissão na mesma janela, pois duas vezes a mesma colcha é vexame a que ninguém se deseja expor. Em consequências das promessas vêem-se mulheres descalças que fazem da volta à vila o seu calvário de Maio. O ritmo é lento, há lágrimas nos olhos e os meninos tristes da fragata D. Fernando tocam melancolicamente os tambores.
O Senhor das Chagas recolhe à Capela silenciosa enquanto nas suas costas soam os tiros das barracas, circulam os carrinhos, se elevam os aviões e há no ar o cheiro das farturas…
Vêm depois os Santos Populares com poucas ruas enfeitadas, cantigas de roda onde há falta de haver quem cante quadras maliciosas. Caldeirada e sardinha assada, rasgos de polvo, garrafões ao pé, tudo é alegria, o Inverno vai longe, o Inverno vem longe… Ao fim e ao cabo a festa do dito não é o que era, perdeu tradição. Ficou o gosto diluído de uma almoçarada no campo em tempo do Inverno que se adivinha, em que começa a apetecer peixe seco pela tarde fora até á noite que se deseja fria para mais um copo… O Natal é ainda a festa da família. Depois dos vestidos estreados pelas Chagas, há que pensar nos presentes de Natal.
O primeiro objectivo é a Missa do Galo com cânticos fervorosos, com práticas ardentes de alegria e amor ao próximo. Os belos casacos vão a essa missa enquanto à missa das onze do dia seguinte vão os vestidos novos comprados na véspera em Lisboa.
As famílias reúnem-se depois da Missa do Galo mas não comem tudo porque é tarde e amanhã também é dia. Trocam-se beijos e abraços, todos são amigos, interessam-se pela saúde da prima que dias antes fingiram não ver ao dobrar uma esquina, dão-se as mãos e adormece-se de barriga cheia e sorriso nos lábios que conservam o gosto do último cálice de Porto.
No dia de Natal é a grande fraternidade, mais visitas familiares e a vida que se desejaria ver deter-se por umas horas. A noite de Natal é sempre fria, tem sempre estrelas no céu ou nos nossos corações. O Natal está em nós, connosco e com aqueles que connosco já não estão. Natal do bolo-rei e dos licores, das prendas, dos vestidos e dos sorrisos vendidos ao preço duma tradição que se impõe manter aos olhos do vizinho.
Natal de cuja árvore caem bolas vazias, frutos corrompidos, brinquedos mortíferos, solidariedade balofa.
Os cânticos da missa perdem-se na noite longa e fria. Lá em cima, para lá das estrelas, moram aqueles que ainda viveram Natais de verdade… 
Junho de 1974
____________
* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite".

Sem comentários:

Enviar um comentário