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segunda-feira, 25 de abril de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 55



O muro das lamentações

António Cagica Rapaz

- O pior é que nem conseguimos comunicar...

Era a meio de uma manhã de sábado, no muro da eterna lota, quando o tempo parece parar, em que à nossa frente se desenha, mais do que um fim-de-semana, uma semana sem fim que o domingo prolonga até ao infinito.

Os dois amigos estão sentados no muro, de costas para o mar azul que se estende desde a falda da fortaleza até à linha brumosa do horizonte. Foram companheiros de escola, nunca se perderam de vista ao longo dos anos e estão agora com um pé na velhice.

- E com a tua mulher?

As motas de água começam a sulcar as águas lisas da baía, um barquinho à vela contorna com suavidade a muralha do porto de abrigo, sem pressas, na indiferença das gaivotas. O pequeno autocarro da carreira faz uma pausa no largo da Marinha, o Cristiano barafusta, o GNR passeia, imperturbável, com o livrinho das multas à mão de aplicar, o Garrau acende o lume no “Farol”, no Martelo lê-se o “Expresso”. É sábado, e ainda é manhã.

- Não sei, também pouco falamos desde que...

Aconteceu sem razão aparente. Raramente há uma explicação, sucede apenas, sempre de repente, sem algo que nos pareça justificar, sem que sejamos sequer capazes de detectar os primeiros sinais, os vagos apelos. E, se damos por eles, fingimos não ver, recusamo-nos a acreditar, esperamos que não seja bem assim, que acabe por passar. É difícil, ninguém está preparado para enfrentar a droga.

- Olha, ao fim de tantos anos, parecia que tinha a vida estabilizada. Consegui reformar-me dignamente, os filhos criados, empregados, julguei que ia poder descansar, dedicar-me às coisas que me dão prazer, agarrar no barquito, ir à pesca, ler, ouvir música, ver o tempo passar, repousar a cabeça, respirar fundo, enfim, viver ao meu ritmo. Afinal...

Primeiro, foi o choque devastador. Depois, a incompreensão, a revolta, a raiva, o desalento, o silêncio, a incapacidade de dialogar, a impotência, a vontade de desaparecer ou, pelo menos, de ir para muito longe. Mais tarde, foram os primeiros passos para a compreensão, com a ajuda da mulher e do outro filho, universo familiar fechado pela vergonha e pelo desespero, a esperança na cura de desintoxicação através de um empréstimo que o banco concedeu e que vai ter de suportar por uns anos ainda. E a angústia da recaída, a vida que nunca mais voltará a ser o que foi, se é que alguma vez chegou a ser...

- O pior é que nem sequer conseguimos comunicar...

Dói-lhe aquela sensação de serem, ele e o filho, quase dois estranhos, sem espaço comum a não ser aquela casa onde vivem, tanto quanto aquela coexistência pode ser considerada vida familiar.

- O meu pai, como te recordas, era pescador. E eu sofria, tinha medo, só descansava quando ele voltava do mar. À noite, depois do jantar, não me cansava de o ouvir contar os lances, as talas, as braças, as enviadas, os ventos, as pescarias, as peripécias a bordo, as brincadeiras na loja, as caldeiradas, as sardinhadas, os dias negros de vendaval de invernos intermináveis, a incerteza do amanhã. Gostava de ir ao muro ver a barca ancorar ali em frente e vê-lo depois saltar em terra, quando a aiola encalhava, de gargalhete. Nunca esquecerei os sacrifícios que a minha mãe e o meu pai fizeram para eu poder tirar o quinto ano no Costa Marques. Sempre me senti muito próximo do meu pai, apesar de falar mais com a minha mãe. E, hoje, quando vejo a distância que há entre mim e o meu filho, fico triste. Não há nada, nem cumplicidade, nem ternura, menos ainda ideais comuns, é um desconsolo, um desencanto. E não sei como melhorar a nossa relação, admitindo que ainda seja possível. Seja como for, os melhores anos já estão perdidos.

- Não é forçosamente culpa tua...

- Talvez, mas isso não serve de consolação nem resolve o problema. Isto é como nos divórcios, pouco adianta saber de quem é a culpa. A verdade é que, se não resulta, se não funciona, perdem os dois. E, neste nosso caso, perco mais eu porque sei o que é uma boa relação entre pai e filho, ao passo que ele não sabe. Por tudo isto, não consigo afastar esta frustração, este vazio, esta tristeza. Tenho a impressão de ter procurado estar próximo, de me ter interessado pelas coisas que ele fazia, de que gostava, embora nem sempre pudesse identificar-me com as suas preferências, as suas músicas, a roupa que usava. A gente julga que faz bem, mas só faz o que pode. Por isto ou por aquilo, não consegui, não fui capaz, o que fiz foi pouco ou mau, não sei. E o resultado é esta mágoa que me pesa em cada manhã cinzenta. É um mar que não acaba e não leva a lado algum. Olha, tu nem sabes a sorte que tens, sem problemas destes, dá-te por feliz.

O amigo não respondeu. Desviou o olhar, contemplou o mar, hesitou, ainda abriu a boca, mas não falou. Após prolongado silêncio, lá acabou por alinhavar duas frases sem nexo, desculpou-se com o almoço e foi-se embora. Sentiu-se mal, mal pelo amigo e mal por si próprio, incapaz de falar de si, da melancolia que disfarça, dos tormentos que esconde. Ainda esteve para voltar atrás, mas prosseguiu, virando costas ao mar e ao muro das lamentações. Não será ainda desta vez...

1999

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