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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 47



Meta Física

António Cagica Rapaz

- Desculpe, acredita na premonição e na reencarnação?
- É uma sondagem?
- Não, nada disso. É antes o deslumbramento, a fascinação, a materialização de um sonho milenário, de uma convicção enraizada em mim há uma eternidade...
- Ena, o que para aí vai, receio não compreender...
- É natural, é tão natural! Eu próprio começava a duvidar, a interrogar-me se tudo isto faz algum sentido, se não andaria a ser vítima e carrasco, promotor e escravo desta união sonhada. Há anos que ando numa busca sem tréguas, olhando à minha volta, batendo a cada porta, procurando confirmação para as minhas convicções transcendentais. Até que hoje, o Céu seja louvado, as minhas preces foram ouvidas, hoje obtive resposta, ao vê-la aqui, na esplanada do Martelo, com o mar por testemunha. Sim, porque desde há séculos estamos prometidos, temos encontro marcado...
- Tudo isso é erudito, mas algo complicado. Importa-se de ser mais claro?
- Com todo o prazer. Em termos simples, numa vida anterior nós pertencemos um ao outro, tenho disso a certeza absoluta. E é essa confirmação fulgurante que acabo de ter. Ao fim de vários anos de buscas desesperadas, o milagre deu-se. Senti-o logo que a vi, a sua aura, o seu perfil, o seu olhar luminoso, não, não pode haver engano, a minha vigília terminou, estamos de novo juntos...
- É estranho e, ao mesmo tempo, curioso, sinto-me um tanto perturbada. Há, na verdade, coisas misteriosas. Há muitos anos eu pressentia que, um dia, um desconhecido me abordaria, numa praia, numa esplanada, num lugar público, de forma pouco convencional e que captaria o meu interesse, primeiro, para em seguida fazer nascer em mim um verdadeiro vulcão emocional.
- Ah, como é reconfortante! Continue, continue...
- É surpreendente como estas coisas acontecem. O que é frequente é aparecer um parvalhão qualquer a meter conversa connosco, numa tentativa rasca de engate, com pretextos do estilo “Desculpe, não nos conhecemos já de qualquer lado?”. Está a ver, não está?
- Claro, é uma técnica mentecapta, estafada, sem imaginação nem talento...
- Como gosto de esplanadas, habituei-me a lidar com esses conquistadores de meia tigela. Ao mesmo tempo, tinha uma espécie de sexto sentido ou de premonição, uma convicção nítida de que um dia seria diferente, que me apareceria um homem especial, absoluto, único, o Homem. Da minha vida. Que haveria um reconhecimento mútuo imediato, instintivo, irreprimível, uma emoção que dispensa palavras, afasta preconceitos, ignora artifícios, varre convenções, derruba obstáculos reais e imaginários...
- E o sonho tornou-se realidade...
- Ah, sim, completamente, excedeu até as minhas expectativas. É verdade que, no início, tive alguma dificuldade em perceber, em identificar. Mas bem depressa foi como se o sol entrasse no meu coração. Foi uma explosão maravilhosa na minha cabeça, fiquei rendida, subjugada.
- Ah, como é bom ouvi-la, que encanto, que deleite! Eu sabia que éramos feitos um para o outro...
- Mais devagar, mais devagar...
- Não se pode travar o destino. Agora que nos encontrámos, nada nem ninguém poderá separar-nos, somos um do outro, estava escrito.
- Mais devagar, meu amigo, mais devagar, nada de precipitações. As regras do jogo por vezes mudam, e a mulher também tem o direito de brincar com a dialéctica da sedução orquestrada. Ou, se preferir, de entrar e conduzir o jogo do engate.
- Não estou a perceber...
- Já vai entender. Fique sabendo que nem tudo quanto disse foi inventado. De facto, conheci o meu marido numa esplanada e foi amor à primeira vista. De vez em quando, gostamos de umas fantasias, com uma cumplicidade e uma confiança sem falhas, com regras bem definidas, com limites que só nós conhecemos.
- E quem é o seu marido??
- É aquele matulão que está ali, na mesa perto do muro, a fingir que lê o jornal. Não leve a mal, desta vez não resultou, mas paleio e imaginação não lhe faltam. Não desista...
- Bem, paciência, dou-lhe os parabéns, gabo-lhe o talento e invejo o seu marido. Mas a vida continua. Olhe, está a ver aquela morena, de óculos escuros, a tricotar??
- Vai atacar outra vez com a premonição?
- Trazia essa bem estudada, mas acho que vou mudar de tema. As questões ambientais estão na moda e, se calhar, é boa ideia qualquer coisa como o massacre das focas, coitadinhas. Pode ser que pegue...

1998

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 43

as crónicas da Eventos...

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Apalpando rábulas*

António Cagica Rapaz

Despedimo-nos de 2001 abordando um tema grave e transcendente (Deus) para entrarmos neste novo ano a brincar, talvez para variar, quem sabe se por efeito perverso da capicua 2002. Muitas vezes caímos na facilidade da generalização, afirmando que os portugueses são sorumbáticos, tristonhos, vergados ao peso do Fado. Não sei se será bem assim, antes me parece que somos é mais de marés, de altos e baixos, de quartos crescentes e minguantes. O que não impede que tenhamos uma admirável veia irreverente, espontânea e bem humorada.

Em Sesimbra sempre se cultivou a brincadeira, a paródia, a chalaça, a partidinha marota, dentro e fora do período carnavalesco. Brincar e jogar são faces da mesma moeda, verbos diferentes que noutras línguas são um só, para significar várias coisas. O francês jouer, tal como o inglês play, tanto querem dizer brincar, como jogar, como tocar um instrumento ou representar um papel no teatro ou no cinema.

Na nossa terra sempre se brincou e jogou, à bola, ao alho, ao prego, ao ringue, às linhas, às bolas, ao arco, ao ping-pong, às cartas, aos matraquilhos, ao bilhar, ao não-te-irrites, às malhas, às prendas, à berlinda ou ao passarinho de alcatrão. Brincava-se no Verão, na praia, nas ruas enfeitadas, à volta da fogueira, e, em particular, pelo Carnaval.

Salvo erro, foi Napoleão que disse que o melhor da História são as anedotas, ou seja, as peripécias engraçadas. E a verdade é que, com a passagem dos anos, nas cavaqueiras entre amigos, vamo-nos apercebendo de que as brincadeiras da nossa mocidade constituem o núcleo mais persistente das nossas recordações.

De facto, se é verdade que na nossa vida há um tempo para cada coisa, sem perdermos a noção das proporções e das conveniências, não é menos certo que não vale a pena levarmo-nos demasiado a sério pois tudo é efémero. Por isso, a tradição da brincadeira se tem mantido, embora vá assumindo formas diferentes, os tempos são outros.

Em Sesimbra, o Carnaval era o palco natural da paródia, com as partidas clássicas dos rabos, dos badalos, dos telefonemas misteriosos, dos pós de espirrar e tantas outras.

Porém, o que sempre me apaixonou foi o repentismo, o rasgo súbito da fantasia, da improvisação ditada pelas circunstâncias do momento. Por vezes, havia alguma pontinha de maldade, mas é mesmo assim, tem de haver uma vítima. Certa vez formei parelha com o J. que colocava, silenciosamente, no chão uma lata de conserva amarrada a um cordel que, na outra extremidade, tinha uma mola da roupa. O meu papel era prender essa mola no casaco da “vítima” que ia arrastando a lata, para gozo da malta. Um de nós ia acompanhando e, se a marosca era detectada, pisava a lata. A mola caía, recolhia-se o cordel, apanhava-se a lata e desandava-se rapidamente. Às tantas, o belo J. aspirou a maior protagonismo e quis ser ele a prender a mola. Ainda estou a ver, foi junto aos degraus do adro da farmácia de cima, a “vítima”, uma mulher de língua afiada. O J. aproximou-se pé ante pé, braço tenso, gesto cauteloso. No momento em que ele ia cravar a bandarilha, ou seja, prender a mola no cinto do casaco, eu não resisti. Velhaca e traiçoeiramente, atirei a lata aos pés da mulher que se virou, num salto de susto e surpresa. Ao ver o J., de mola na mão, boca aberta de medo e de raiva, a “vítima” arrematou-o dos pés à cabeça, sugerindo mesmo sítios onde poderia enfiar a mola. Confesso e reconheço a deslealdade, mas foi um momento inesquecível, a partida dentro da partida, coisa infame que me passou pela cabeça. Mas que gozo me deu!

Numa tarde de 3.ª feira de Carnaval, em 1967, na esplanada do Central, a ideia surgiu, inesperada e fulgurante. Meia hora depois, da arrecadação do pai Rasteiro, saía um grupo de turistas estrangeiros de visita a Sesimbra, com um guia-locutor (um japonês ia filmando para a TV) e um pescador-intérprete “pilaglota”. Tudo começou com uma entrevista ao velho Jul Mouco, à porta, perante a curiosidade dos populares (como dizem na televisão) que começavam a juntar-se. A seguir descemos até à nossa tertúlia, a taberna e a barbearia do mestre Adelino, palco e fonte de mil malandrices arrebatadoras. A rua chamava por nós, o cortejo engrossava, a pantomina assumia proporções delirantes. E fomos andando, parando aqui e ali, interpelando este e aquele, dando rédea solta à nossa imaginação e à nossa irreverência. As ruas encheram-se de gente, intrigada, suspensa, seduzida, na expectativa de piruetas, réplicas e tréplicas, tudo ao sabor dos encontros e da nossa louca improvisação. Foi um triunfo retumbante, uma imensa paródia, uma tarde memorável. Felizmente, restam as fotografias, já que o microfone era uma batata com um fio de cordel e a máquina de filmar do “japonês” uma caixa de papelão com um canudo…

Um ano antes, o almirante Américo Tomás veio inaugurar a Marconi, e o cortejo, ao descer, passou em frente do Espadarte, interrompendo o restante trânsito. Na circunstância, vinha o Manel António a meu lado, no jipe que o Carlos Farinha tinha a bondade de me emprestar. De repente, mal o cortejo acabara de passar, enfiámos atrás e eis que o Manel se põe de pé, toalha enrolada na cabeça em genuíno turbante, e braços abertos, agradecendo os aplausos que os “populares” continuavam a dispensar à comitiva. A poucos metros dos últimos motociclistas, a brincadeira podia ter saído cara. Mas correu tudo bem e foi outra rábula saborosa, repentina e ousada. Era um tempo feliz que nós saboreámos com a avidez de quem pouco tinha, a não ser o sol, o mar, alguma fantasia e uma bela amizade. Hoje, a caminho dos sessenta anos, como fugir a alguma nostalgia dos anos sessenta? Felizmente, graças aos desafios deste e de outros Eventos, graças sobretudo a um grupinho admirável que estamos a consolidar, alguns de nós vão envelhecendo mais devagar, com um sorriso, recordando aventuras, revivendo brincadeiras, apalpando rábulas…

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* Publicado no n.º 17 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2002.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 47



Dúvidas*

António Cagica Rapaz

Por vezes, muitas vezes, pergunto a mim mesmo se devo continuar a escrever este tipo de crónicas, não sei se agradam, não tenho a certeza. Não é falsa modéstia, não é apelo disfarçado a felicitações, aplausos, manifestações de simpatia como as que o velho Salazar encomendava. Apenas sucede que muitos indivíduos se mostram carregados de certezas e eu sempre tive muitas dúvidas. Ao longo da minha vida, talvez por ser do signo dos Gémeos, tenho feito equilíbrio, um pé num lado, outro pé algures em mundos diferentes onde por vezes me senti fora de jogo, com ou sem razão. Ainda hoje me sucede, na rua, no metropolitano, olhar à minha volta e perguntar a mim próprio o que faço aqui em Paris, longe de Sesimbra, da pedra alta, do capitão Domingos, do Chico Patrício, da Toca do Ratinho, dos caracóis do Gil, do Carlos Farinha, do mar, sobretudo do mar…

Sempre tive muitas dúvidas e tenho-as neste momento sobre o interesse que possa ter para o leitor este arrazoado sobre as minhas dúvidas. Duvidam?

Não duvidem, é verdade, tenho dúvidas…

Desde que me conheço tive dívidas e tive dúvidas. As dívidas paguei-as, as dúvidas conservei-as porque não há dinheiro que as pague.

Com os anos, fui fazendo certas coisas, seguindo determinados caminhos e fiquei sempre na dúvida se fiz tudo quanto estava ao meu alcance, se fui o mais longe que pude ou se, pelo contrário, podia ter feito melhor. Sempre a dúvida, a alternativa, a hesitação, a duplicidade e no último instante um sinal, uma luz, uma porta, uma flecha a indicar o caminho.

Às vezes rio sozinho vendo à minha volta certas personalidades falando francês, evoluindo num universo normal para eles mas onde eu me sinto, por momentos, como um intruso. É verdade, sinto-me à vontade, exprimindo-me numa língua que não é a minha mas que domino bastante bem.

Porém, a seguir atravessam-me o espírito imagens e figuras de Sesimbra, de outro universo tão diferente que imagino o que seria uma mistura dos dois. E sorrio, discretamente, acho curioso quando vejo o filho da Amália Come-figos a ser recebido, sozinho, em audiência privada pelo Ministro do Interior, Charles Pasqua. Eleito em 16 de Março de 86, fui recebido em 25 de Abril, das primeiras pessoas certamente que o Ministro recebeu. Com esta minha mania de escrever tive uma ideia e escrevi-lhe. Confesso que fiquei surpreendido que me recebesse pessoalmente e tão depressa.

Não lhe perguntei se já comeu carapaus secos ou se já foi ao mar dos Ursos, mas confesso que são coisas que me passam pela cabeça. Ou eu não fosse sobrinho do Justino Come-figos. Devo ter um grãozinho de loucura, mas ainda bem que assim é.

Tudo isto vinha a propósito das dúvidas. Uma das poucas dúvidas que eu não tenho é de que gosto de escrever, isso é certo, gosto de escrever, partindo da convicção (talvez ingénua, crédula e pueril) de que alguém gostará de ler. Por isso escrevo, por essa e por muitas outras razões. A principal é sentir que dou prazer a algumas pessoas ao evocá-las de certa maneira. A razão fundamental que me leva a escrever é, com toda a sinceridade, dar prazer às pessoas que trago a estas colunas e às que lêem. Se lhes dou prazer, também sinto prazer.

Ficamos todos contentes, é uma festa!

É simples, é uma definição banal, natural, sem a menor pretensão intelectual. É um prazer, uma necessidade, manter este contacto com as raízes, com as origens e trazer ao de cima o que me parece e quem me diz alguma coisa de especial. Difícil é arranjar ideias, argumentos, cenários para encaixar as figuras do meu presépio. Se quero evocar o Joaquim Sobral não basta dizer que ele trabalha e mora na Rua Marquês de Pombal por baixo da Carlota parteira. Tenho de construir um enredo, conceber uma história na qual ele terá o seu lugar. Só assim fará sentido e só então o tio Joaquim vestirá o traje que os meus heróis envergam quando os chamo a este palco sem lhes pedir autorização em meia folha de papel selado.

Desta maneira tenho tido um indesmentível prazer ao dar modesto destaque a pessoas de quem gosto e que considero merecerem esta prova de apreço. No fundo, é natural, é o nosso jornal, é a nossa terra, é a nossa gente. Pouco importa se é este e não aquele, amanhã será o outro.
Não sou eu que os valorizo, são eles que merecem e eu apenas sou um instrumento, um manipulador do projector.

O Zeca Simplício era um ás com o microfone, quando apresentava o Amílcar Coelho e os seus sapateados, o Luciano Faria, o António Maquino e o Isac Leão a cantar o «Che la la».
Há tempos, vejam lá vocês, quem havia de dizer, ia eu a caminho do metropolitano, ali ao pé da Rua Auber, ora nem mais, então não querem ver que dou de caras com o Isac que vinha com o filho?

Que na rua Direita, ao entrar no Gás Cidla, eu veja esse homem admirável que é o Duque, nada mais natural. Agora que em Paris, sem mais nem menos, me apareça pela frente o Isac, só visto, contado não é nada.

Eu morra já aqui se é mentira, dê-me já uma coisa, ceguinho seja eu, fique já com a espinhela caída.

É por estas e por outras que surgem crónicas por vezes sentidas e nostálgicas, outras vezes sorridentes, retratos da vida que vivo e recordo, à minha maneira, com o bico da caneta que vou molhando no tinteiro da saudade, chamando aqui como o Zeca chamava ao palco o que de melhor Sesimbra tem, as pessoas de quem gostamos.

Para hoje tinha vagamente pensado contar-vos que sempre fui ver o cantor Serge Reggiani ao famoso Olympia. Quis o acaso que antes do espectáculo, duas horas antes, o encontrasse na rua. Aconteceu. Falámos um bocado e foi para mim um momento de emoção. Serge Reggiani é um grande actor que canta, como só ele pode cantar.

Achei-o muito abatido e tive dúvidas (cá estão elas outra vez) que ele pudesse cantar dali por duas horas, tão débil o senti, um pouco rouco, um tanto gasto pelo tempo, pelo álcool, pela saudade do filho, pela vida.

Mas cantou com a força do desespero, como se fosse a última vez. Foi belo e comovente.
Sofri durante o espectáculo, tive receio de que não aguentasse, estive inquieto e aplaudi cada canção como se fosse um obstáculo que ele conseguisse saltar. Mais um, outro ainda e a sala, de pé, a aplaudir Serge Reggiani com reconhecimento e admiração.

Mas havia no ar um perfume de despedida. Poderá ter sido o adeus, só Deus sabe.

Escrevi-lhe, dias depois, para lhe testemunhar a minha admiração. Não sei se recebeu a minha carta, não sei se algum dia responderá, não tem importância. Importante para mim era escrever, ao grande Serge Reggiani como ao tio Joaquim Sobral. O cantor e o actor só me interessam pelo que, através deles, adivinho ser o homem.

O homem é o nosso denominador comum, é o que conta. O resto é contingência.

Peço-vos desculpa pela extensão de escritos improvisados ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor.
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*Publicado em O Sesimbrense de Maio de 1991.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 38



Dizem que o GATO está proibido de entrar na "Toca do Ratinho"...
António Cagica Rapaz


[da série Reflexões]

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 46




Álcool ou sublimado

António Cagica Rapaz

Tudo nesta vida tem um fim e, por vezes, dou por mim a pensar que não soubemos apreciar devidamente a destreza do mestre Adelino, a carícia do pincel carregado de alvo sabão, o gesto preciso no afiar da navalha, as palestras eruditas sobre o contra-ataque ou a diagonal do Otto Glória.

Talvez não tenhamos dado a devida atenção à maestria com que o patrão Adelino manejava a navalha, com a desenvoltura de um espadachim de opereta. Mal dávamos por nós e estava-se no último acto, escanhoados a rigor e a braços com a temível e derradeira opção: álcool ou sublimado?

Tenho passado noites em branco, vasculhando a memória, forçando a imaginação, sem conseguir encontrar um motivo, um só, que me tivesse levado a recusar sempre o sublimado. À sacramental e dilacerante pergunta, a resposta saía pronta, tonta, precipitada, como quem confessa logo para ter perdão ou castigo mais leve. E era sempre álcool... Porquê?

É verdade que era fresquinho, agradável e dava direito a umas palmadinhas suaves que o mestre nos aplicava com a toalha macia, a rematar a operação. O meu drama é não saber por que recusei sempre o sublimado que tinha pouca saída, como as raparigas menos bonitas que ninguém ia buscar para dançar. Este sublimado é a minha frustração, o brinquedo que não tive pelo Natal, o filme que não consegui ver no Salão, a bola que não me saiu nos rebuçados do Chico da Cooperativa, a máscara que não consegui identificar no baile do Carnaval, um sabor a fracasso sem remissão. Álcool ou sublimado é o refrão de uma cantilena de outro tempo em que as tardes de sábado eram deliciosas e compridas. Ninguém tinha pressa, jantava-se tarde, amanhã é domingo...

Na barbearia havia quem desse a vez para ficar mais um bocado, pela boca da noite adentro, preso à sedução de uma cavaqueira apetitosa, às rábulas do Raúl, aos picantes rumores das comadres, às pantominas que tornavam a barbearia num palco de revista saborosa. As camionetas do peixe subiam a ladeira vagarosamente, Lisboa era longe, a vida era tranquila...

1993

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 42

as crónicas da Eventos...



Feijão com arroz em tacho de barro*

António Cagica Rapaz

Muitas vezes, se calhar sempre, o mais importante não é o acontecimento, mas a imagem que dele formamos no nosso espírito, antes e depois. E neste universo gastronómico, cada um de nós tem as suas recordações e as suas referências. Todos conservámos lembranças nítidas de confraternizações à volta de uma mesa, de uma fogueira, a bordo de um barco ou à sombra de um pinheiro. E conservámos, sobretudo, a imagem das pessoas que nos rodeavam…

A minha infância foi, a espaços, povoada pelas narrativas do meu pai que, entre mil outras coisas, evocava, com saudosa frequência, homéricas e pantagruélicas almoçaradas em que, curiosamente, a comida quase ficava na obscuridade, ofuscada pelo envolvimento afectivo, pelo calor e fulgor da descrição dos preparativos, do ambiente de companheirismo, de pândega fraternal que ganhava esplendores de expedição quando o cenário era o mar e a cerimónia tinha lugar a bordo, no Calhau ou na fascinante lonjura da Arrábida.

Ao domingo, depois do jantar e dos comentários do Lança Moreira, o meu pai ficava à mesa, falava, contava, reconstruía a vida, travejava o tempo. Eu conhecia de cor, não me cansava de ouvir os nomes dos corsários da caldeirada, Franco, Abel Embaixador, Duque, Manilhas, Zé Espada, Artur do Raça ou ainda o sublime Antero do Pão que encerrava as festividades com anedotas, partes gagas e relatos hilariantes. A rábula do camponês e do mestre Rabuge é de antologia, incontável agora, irrecuperável, única, teve o seu tempo, o seu lugar, o seu intérprete, morreu com eles…

Mas, no fundo, será realmente importante definir o que é uma boa caldeirada? Interessará mesmo saber se devemos ou não cozer as batatas à parte? Será útil explicar por que é aconselhável utilizar pequenos recipientes e não um panelão grande, à pescador? Para quê afiançar que o melhor da caldeirada é o fígado de tamboril?

Em verdade, tudo isso é secundário, pois o verdadeiro e supremo valor deste tipo de refeições é constituir um pretexto para convívio. De facto, quando buscamos pormenores de repastos memoráveis, depressa nos apercebemos que eles estão, sobretudo, ligados a pessoas, locais e épocas da nossa vida. O acto de comer não é, em regra, um prazer solitário, antes se enquadra num espírito de partilha e de comunhão, num envolvimento afectivo de que nos ficam, algumas vezes, imagens inesquecíveis. O cenário não é indiferente, naturalmente, mas não é essencial. Uma barca ao largo em dia de sol é sempre um deslumbramento, é verdade. A Arrábida ainda é um cantinho do paraíso, mas o prazer maior é estar com as pessoas de quem gostamos. Por essa razão, nos ficam a todos, cada um as suas, recordações de sabores, de cheiros, de atmosferas que o tempo não apaga. No meu espírito, a carne assada da dona Fernanda, em domingos de Inverno, na Cotovia, representa muito mais do que um primor gastronómico. É um marco no tempo, símbolo de uma generosidade que nunca esquecerei. As sardinhadas ou os carapaus secos na adega do Jorge pertencem a outro registo, igualmente inolvidável, mas de outra natureza.

Da infância, ficou-me o sabor inigualado do feijão com arroz, feito em tacho de barro, da sopa de fava, das fatias albardadas e das costeletas panadas, especialidades da minha mãe. Mais tarde, pelos anos fora, há inúmeros episódios marcantes, desde as bacalhauzadas da vindima até às maravilhosas consoadas em casa do tio Nuno. Pelo caminho fica aquela dobrada comprada na Virgilinda e comida na Maçã, com o Manel Galinho, em casa desse maravilhoso amigo que é o Raúl. Era domingo, chovia e seria mais indicado peixe seco. Mas calhou assim, foi decidido à esquina do Central, e teve o sabor dos impulsos e desejos repentinos.

Recordo ainda o Mário Martelo a grelhar, salpicando com um raminho de salsa a melhor posta de cherne que comi até hoje. O Eduardo trouxe o sublime exemplar para aquela noite de Verão iluminada pelo fogo de artifício da presença da Pepita, no pequeno arraial do quintal do Mário.

Quando vivia em França, e sempre que vinha a Portugal, raramente deixava de jantar com o Manel António, no Bairro Alto, bebendo o ar, comendo o céu de Lisboa, em momentos mágicos de celebração, com uma exaltação que era mais habitual no Manel mas que, nessas ocasiões, era muito provocada por mim, feliz por estar ali e com ele. Era uma verdadeira festa, com o pão e o vinho da nostalgia mais os enchidos da saudade. E uns “joaquinzinhos” que nos levaram a dar uma aula de gastronomia a todos os presentes, naquela abençoada euforia que nos invade em momentos raros da nossa vida. Hoje, objectivamente e sem qualquer parcialidade afectiva, garanto que ninguém faz uma caldeirada, um cozido à portuguesa ou sopas como a Dona Romilda…

Numa óptica menos pessoal e em termos institucionais, pode afirmar-se, sem a menor hesitação, que o cartaz gastronómico de Sesimbra é o peixe, sob forma de caldeirada e de peixe grelhado ou assado, como é mais corrente dizer-se. Paradoxalmente, este peixe assado pode ser um prazer solitário quando nos sentamos à porta, no passeio, à sombra, com o fogareiro ao pé, assando e comendo, comendo e assando petingas, enquanto ao longe se ouve o fado e o mar é um imenso espelho de prata.

Durante longos anos, a maioria das famílias comia sopa, feijão com massa, magras couves, e peixe seco no Inverno, sendo a carne apenas para privilegiados. O chouriço na sopa constituía o único luxo, dava gosto e prolongava a refeição. Aconchegado numa carcaça, convidava a um copito na taberna, antes de uma partida de “não-te-irrites”, esperando o fim do vendaval. É uma imagem, mais uma, esta que me ficou da taberna da minha avó…

Mas o cenário ideal da gastronomia em Sesimbra é o das ruas enfeitadas, um pouco como nos banquetes que encerram cada aventura do “Astérix”. Noutro tempo, o Carnaval era preparado com imaginação, fantasia e febrilidade, na concepção dos trajes e na urdidura dos enredos. Depois, vinham os Santos Populares e era a busca do tema para enfeitar a rua, num trabalho de equipa que aproximava as pessoas, criando uma atmosfera de presépio a cada porta. À volta das fogueiras, havia rasgos de polvo, sardinha assada, caldeiradas e canções de roda.

No Verão de 1969, na rua Joaquim Brandão, um grupo de rapazolas de uma barca teve a simpática ideia de jantar à porta da loja. Indo a passar, com um grupo de amigos, fui convidado e não hesitei. Ainda hoje recordo, com nitidez e prazer, aquela agradável jantarada. Comemos chaputa e imperador, foi uma assada deliciosa, eles ficaram contentes, eu fiquei feliz, foi espontâneo, foi saboroso, era assim Sesimbra.

Ali bem perto, o Deodato e o capitão Domingos fritavam lulas pequeninas, preparavam choquinhos com molho à pé descalço, sob o olhar divertido do Alfredo, enquanto do outro lado da rua, o tio Mário, pai da Celestina, tinha sempre marisco escolhido e um sorriso cúmplice iluminado por uns olhos da cor do mar.

Em Sesimbra comia-se no poial da porta, no passeio, no quintal, na loja de companha, a bordo da barca, com naturalidade, sem pressas nem aviso prévio, chegava sempre para mais um, franqueza à mesa. Se calhar não era bem assim, mas é o que nos ficou ou o que nos apetece recordar. A vida era tranquila, havia tempo, e o mar era um festival permanente com o colorido da chegada das traineiras escoltadas por mil gaivotas numa algazarra que chegava à Galé onde o Márinho fez apetitosas sopinhas de pelim que o Júlio Galgão ainda evoca com alguma melancolia.

A Galé continua a ser um porto de abrigo da amizade e, quando não há almoçarada na loja do Eduardo, lá estão o João e o Paulo a tentar-nos com irresistíveis lambujinhas e mexilhões. O segredo é esse, estamos com a nossa gente. Ainda por cima, é mais que barato, é dado, porque o mar a perder de vista e o céu azul estão incluídos no preço…

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*Publicado no n.º 13 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2001.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 46


Carta ao João Rodrigues*

António Cagica Rapaz

Meu caro João

Não é meu hábito deixar sem resposta uma carta e raramente o faço com atraso. Desta vez, porém, a situação é particular pois estou a escrever-te um bom bocado depois de ter recebido a tua carta. Para ser mais exacto, já lá vão… vinte e um anos. Foi em Outubro de 70, estava eu na tropa, no Porto, no Regimento de Infantaria 6. Ao longo da minha vida escrevi e recebi muitas cartas, mas poucas guardei. A tua conservo-a como um vinho raro que deixamos envelhecer ou um livro precioso que colocamos na biblioteca do salão. É costume dizer-se que toda a carta tem resposta, mas a tua quase não tem, talvez por ser um desabafo, uma confidência, um gesto puro, totalmente desinteressado. E foi uma verdadeira surpresa, primeiro porque não éramos íntimos e, depois, pelas considerações que fazias.

Na gaveta das minhas recordações, o João Rodrigues está na ficha, pertence ao universo Emílio Nero, cujo primeiro expoente era a Mininha, adolescente que eu via passar à minha porta a caminho do colégio do Dr. Costa Marques, com a Maria Emília, a minha prima Lucinda, o Fernando Gaspar e outros. Mais tarde seria uma bela professora primária que os rapazolas porventura terão admirado com o mesmo olhar malicioso do miúdo que eu era nesses tempos de colégio.

Depois, o Emílio Nero evocava no meu espírito o armazém entre os largos do Canino e da Câmara, as ferragens, os materiais de construção, as madeiras, as tintas, o cimento, o Leopoldo de falas suaves e o João Rodrigues de ar grave que não era pessoa que entrasse com frequência na pequena área da minha intimidade. Anos volvidos, abriste a tua loja à esquina da Rua Latino Coelho, a meio caminho entre a «Marisqueira» e o «Pinto e Pinto», ali a dois passos do meu velho amigo Joaquim Sobral. O mestre Joaquim tem a sua ficha, é outra imagem, é a minúscula e acolhedora oficina, os banquinhos de madeira, o cheiro a cabedal, os rouxinóis na gaiola, a frescura da rua lavada com grandes baldes de água à hora a que as mulheres começavam a passar para a praça. É assim que vejo o universo do tio Joaquim Sobral, não me perguntes porquê. É como o Carlos Farinha. Na imagem que dele guardo, é depois do almoço, desce a Rua Cândido dos Reis, junto ao muro da farmácia, de camisola grossa à pescador, a caminho do Central. É assim, são instantâneos que conservei, que queres que te diga?

Na tua loja, eras uma espécie de faroleiro, um olho no café do Alfredo e o outro varrendo de alto a baixo a Rua Marquês de Pombal, caminho que percorri mil vezes menino e Rapaz e, depois, já homem à procura das navalheiras do Deodato e das mil aventuras de verões de fábulas que o Alfredo um dia contará se não lhe der o resmango. Queres outra imagem? Olha, toma lá esta, é o TB, o Torres Batista, que tinha um «pirilau» muito engraçado, barquinho a remos que navegou em águas turvas. Pois o belo Zé Manel, o TB, para mim é o homem dos Gitanes e das lulinhas fritas. O Gitanes é o meu tabaco hoje (um cigarro por dia, sem engolir o fumo) mas foi ele o primeiro que vi com o belo maço da cigana recortada na noite. E foi ele que me levou pela mão a saborear, pela primeira vez, as lulinhas fritas do Deodato, ainda o Alfredo servia no primeiro andar. Foi o meu baptismo na noite do Pinto e Pinto… Gitanes, lulas e Pirilau, aqui tens o TB.

Mas voltando ao nosso namoro, caro João, é verdade que de vez em quando trocámos duas frases, mas os nossos contactos nunca foram assíduos. Por isso me surpreendeu e tanto agradou a carta em que me davas conta da tua satisfação ao leres n’A Bola que me tinha formado em Letras. Dizias-te orgulhoso como Sesimbrense do meu sucesso. Mas bem maior foi o mérito do teu gesto do que o título que consegui.

É muito raro alguém ter a atenção, a gentileza ou certa forma de coragem para fazer um elogio ou felicitar outrem. A crítica destrutiva, a chalaça barata e o gracejo alarve saem com facilidade, são reflexos constantes. Mas uma palavra de apreço custa a dizer, queima os lábios, parece que nos diminuímos ao pronunciá-las. Daí a minha surpresa e sincera admiração pela tua franqueza e pela tua simpatia. No fundo tenho a impressão que, de forma mais ou menos consciente, levamos a vida em competição uns com os outros, desde os bancos da escola. Há uma rivalidade surda e estúpida que nos impede de reconhecer que o Marcos Júlio era um ás na dança, o Alfredo na natação ou o Fragata na bola, sem que as qualidades dos outros nos envergonhem ou diminuam. Este lamentável espírito de concorrência só acaba ou se atenua quando chegamos à velhice, quando varamos a aiola da inveja, quando nada mais temos a provar, quando baixamos os braços, quando nos resignamos, quando depomos as armas e arrancamos as máscaras.

Contrariamente às aparências o Carnaval era tempo de verdades, sem inibições, sem pruridos nem barreiras. Havia muita malandrice, intriga e enredo, mas muita sinceridade também, quando eram murmuradas (como dizia o poeta) «coisas que eu teria pudor de dizer seja a quem for»…

E aqui tens, meu caro João, a expressão da minha admiração um tanto tardia mas que foi tema e pretexto para uma divagação que, espero, não tenha sido enfadonha. Estamos em Outubro, é tempo de Balanças que, segundo os entendidos, se dão bem com os Gémeos como eu. Talvez devesse ter escolhido a carreira de aferidor como o filho do tio Chico Carteiro, aí perto da tua loja. Daqui a vinte e um anos, se vires passar o carteiro, pergunta-lhe se não tem carta p’ra ti, vinda de longe, no envelope da distância e com o selo da amizade…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense de Novembro de 1991.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 37



Será verdade que o Jorge CARAPAU deixou de passar à porta do GATO?
António Cagica Rapaz


[da série Reflexões]

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 45




Flauta

António Cagica Rapaz

Os concertos ocupavam um lugar importante na sua vida, como os fins-de-semana na Praia das Maçãs, a leitura do “Expresso” ou as peregrinações à Feira da Ladra. O concerto era um ritual sagrado, a música envolvia-o, transportava-o, iluminava-lhe o espírito. E dava por si a percorrer com o olhar os diferentes instrumentos, ouvido nítido, identificando sons, antecipando gestos, acompanhando movimentos, reconhecendo inflexões, integrando-se apaixonadamente no universo mágico da música, participando na transfiguração do real quando a orquestra tão depressa lhe parecia emergir das brumas tenebrosas da Escócia como integrar o recorte primaveril de um jardim da Florença.

Sucederam-se as temporadas, sempre no mesmo enlevo, até que, uma noite, o ouvido assinalou, o olhar fixou, o mundo parou. A flauta. Era isso, a flauta, alada, etérea, claríssima, sussurrante, eco de seixos lisos, o ondear fascinante dos cabelos loiros, os lábios doces num sopro suave...

Passou a sentar-se cada vez mais perto do palco, olhos e ouvidos concentrados. Apesar do deslumbramento, ainda foi capaz de observar, com um sorriso, o cerimonial do aperto de mão entre o maestro e o primeiro violino, no início de cada peça e no auge dos aplausos.

Voltou a procurar com os olhos, com todos os sentidos bem apurados, a flauta. Percorreu com ela prados inenarráveis, viu esquilos, duendes, diabinhos atrevidos, cupidos dissimulados, arco-íris, lua cheia, crepúsculos de púrpura e de infinito. E aquela cabecinha loira, aqueles lábios em eterno movimento meigo...

Um dia resolveu esperá-la à saída dos artistas. Comprara um ramo de orquídeas (um bouquet, precisara a florista) e imaginava-se, com delícia, prostrado à sua passagem, deixando que sobre o seu corpo impuro ela caminhasse, serena, graciosa, flauta na mão direita, o vestido branco dispersando as folhas que a brisa da noite fazia esvoaçar.

Sobressaltou-o o ronco medonho de uma moto infernal, e viu a sua deusa enfiar um capacete na bela cabecinha loira, ajustar o blusão de cabedal preto e abraçar com ternurento vigor o tronco do seu companheiro. E a moto arrancou com fragor.

Depositou, melancolicamente, o bouquet na relva e perdeu-se na noite.

Passou a comprar “O Independente” que leva, à sexta-feira, à noite, para a Praia das Maçãs, e vai menos à Feira da Ladra.

Ultimamente, foi visto a jantar, no Bairro Alto, com uma colega do escritório de advogados...

1998

domingo, 13 de fevereiro de 2011

IMAGENS E DOCUMENTOS, 1


clique na imagem para a ampliar

Sesimbra, 9 de Maio de 2009. Átrio da Biblioteca Municipal. António Telmo e António Cagica Rapaz estão à conversa, durante a sessão de apresentação do livro Congeminações de um Neopitagórico, da autoria do primeiro. A objectiva captou a cumplicidade dos olhares trocados entre os dois escritores, amigos sesimbrenses de longa data. Como Cagica nos conta em O Damião e o Deca, foi o filósofo quem o iniciou no bilhar (há, sobre este motivo, uma crónica dos Noventa e Tal Contos que ainda aqui há-de ser publicada) e no xadrez, entre o Central e o Grémio, numa espécie de triângulo que se fechava junto à mercearia do Arménio, na redacção de O Sesimbrense. E é justamente este jornal, em que colaborou, que Telmo, na fotografia, agora generosamente facultada por Pedro Sinde, está a ler. Trata-se da edição de 30 de Abril desse ano, onde publicou o seu derradeiro escrito de temática sesimbrense: Acontecimentos extraordinários na Sesimbra de outrora. Meses antes, em Dezembro de 2008, Cagica Rapaz publicara excepcionalmente naquele jornal, onde, havia quase uma década, deixara de colaborar, uma crónica sobre o Alfredo, do Pinto & Pinto. Também a última que ali viria a dar a lume.

A António Telmo é inteiramente dedicado o colóquio que amanhã e depois de amanhã terá lugar no Palácio da Independência, em Lisboa. O programa pode ser consultado aqui.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 41

as crónicas da Eventos...




Em sede de pedantaria*

António Cagica Rapaz

É perfeitamente natural, compreensível e mesmo desejável que a nossa língua evolua, e tal vem sucedendo por influência de outros idiomas e pela introdução de neologismos ditados pela modernidade tecnológica.

Todavia, é com algum desconsolo que assistimos ao empobrecimento da língua portuguesa, e muito por culpa das individualidades que ocupam os écrans e monopolizam os microfones. Bem ou mal, são essas figuras que ditam as modas, lançam palavras e expressões que os populares (adorável vocábulo tão usado pelos nossos jornalistas) se apressam a repetir constante e tristemente, talvez por comodismo, porventura por necessidade de se sentirem também na crista da onda cavalgada por gente supostamente bem falante. Este seguimento, esta macaquice parola conduz ao alastramento de uma maré negra de frases feitas, chavões e lugares comuns de banalidade, falta de imaginação e, por vezes, asneira crassa.

A primeira tentação, por influência das telenovelas, foi a adopção de termos brasileiros como o insuportável “Tudo bem?”. O mal é que esta expressão não veio juntar-se às nossas. O mal é que ela veio substituir, deitar para o lixo, as múltiplas fórmulas de saudação bem portuguesas como “Passou bem?”, “Como está?”, “Que tal vai isso?”, “Ora viva!” ou “Vai ou não vai?”. Ganhámos uma expressão que não é nossa, a que não somos capazes de emprestar a graça, o tom doce dos brasileiros, e perdemos várias formas bem portuguesas, esvaziando, mutilando a nossa língua. Este é que é o grande problema, aquilo que perdemos por deixarmos de usar e que vai caindo no esquecimento.

Depois, a utilização insistente das palavras e expressões na moda dá lugar a uma linguagem monocórdica, estereotipada, cassete sensaborona. Políticos e jornalistas, a inefável sociedade civil (os outros todos serão militares?), todas essas insignes figuras, em vez de elevarem o nível, colocam a língua no baixo estrato do futebol. E é ouvi-los dizer “nesta altura do campeonato”, “a bola está no campo da oposição” e outros primores de originalidade e requinte literário. O País não tenta reagir, vencer os obstáculos, ultrapassar as dificuldades, recuperar, nada disso. O País, como o clube da bola ou o político em queda, apenas garante que vai dar a volta por cima. A expressão pretende ser moderna, voluntariosa e optimista, mas não passa de uma construção esquisita e reles que, para cúmulo, ocupa sempre (e aqui reside o mal) o lugar de fórmulas correctas e de outro nível linguístico. E o resultado, claro, só pode ser o empobrecimento do nosso idioma. Não admira, pois o futebol é uma mina de coisas bonitas. Os jogadores dizem sempre o mesmo, têm de trabalhar muito, de estar muito concentrados para atingirem os objectivos. Não são erros, são apenas cassetes estafadíssimas que revelam, no mínimo, falta de criatividade. E saturam…

Os jornalistas (?) desportivos não são melhores quando dizem que a equipa que está a perder vai ter de correr atrás do prejuízo, quando ela tem de fazer é precisamente o contrário, ou seja, anular a desvantagem, reduzir o tal prejuízo. Jogador ausente, por castigo, lesão ou opção técnica é, na boca desses inefáveis poetas, uma carta fora do baralho. O conjunto de jogadores é mais conhecido por plantel (o que será?) e sobretudo por “grupo de trabalho”. E é o grupo de trabalho para aqui, o grupo de trabalho para ali. Será que jogar futebol é sequer trabalho? E que dizer da rebuscada “sinalética” em vez de sinal? Também acontece um jogador perder a posse de bola (como se ela lhe pertencesse) quando, prosaicamente, perdeu a bola ou ficou sem ela. O futebol é, como se observa, a locomotiva privilegiada deste arejamento, desta onda de “modernices” catitas que ouvimos a cada esquina. Antigamente, o avançado aparecia isolado. Hoje surge na cara do guarda-redes. Na cara não têm vergonha os que andam a destruir, a manchar a língua portuguesa, sabendo-se da influência que exercem criaturas destas em cujas mãos imprudentes indivíduos põem um microfone. Dantes um defesa intervinha com rudeza, com dureza, com violência, forte e feio ou com excessiva virilidade. Hoje entra com tudo. É uma síntese importada do Brasil (está bem de ouvir) que pode ser sugestiva mas que tem o defeito de todas estas expressões na berra, cansa pela repetição papagueada e atira para o balde do esquecimento as diferentes fórmulas em bom português. Não chega a ser divertido, é apenas cansativo e desolador.

Todos os dias ouvimos dizer que o assunto vai estar em cima da mesa das negociações. Pudera, havia de estar em baixo da mesa?

Ninguém já fala sobre este assunto, este tema, esta questão. É sempre e só sobre esta matéria.

A par do calão mais ou menos reles e totalmente dispensável como bué ou curtir, temos expressões manhosas como “à maneira”, a par de muletas repetitivas como o horripilante “é assim”. De facto, já não há paciência para tão pindérica e supérflua expressão.

Os nossos jornalistas adoram, descrever festas que decorrem sempre com pompa e circunstância. Festividade com pompa, imagino como será. Agora cerimónia com circunstância, confesso que não consigo idealizar. Não haverá nas redacções alguém que explique às criaturas que se trata da pompa própria da circunstância e não a dita e a cuja?

É frequente ouvir-se que a questão se prende com isto ou aquilo. No máximo poderia prender-se a e não com alguma coisa. A não ser que se prenda com arames ou com corda. Que diabo, já não serve dizer-se que está ligada ou relacionada? Será que esta moda se prende com alguma crítica subliminar ao sistema judicial?

Não haverá uma alma caridosa que ensine que não se diz “foi um dos presos que fugiu” mas sim “um dos presos que fugiram”. Ou então “um preso que fugiu”. Este grosseiro erro é ouvido todos os dias, repito, todos os dias, na rádio e na televisão, na boca de gente com cursos superiores (a quê?)…

São os mesmos que traduzem a expressão latina pari passu por a par e passo em vez de passo a passo, de perto ou, literalmente, com passo igual. Para trás ficaram, felizmente, os incontáveis pois e portanto. Mas ainda se ouve demasiados pronto e (pior) prontos.

Três adjectivos ocupam todo o terreno da qualificação, ofuscam e deixam no desemprego todos os outros. São eles óptimo, espectacular e complicado, aplicam-se a tudo. Dantes dizia-se que o filme foi empolgante, que a água estava morna, o almoço delicioso, o tempo agradável, a festa divertida. Hoje só existem dois adjectivos para todos estes casos, óptimo, é tudo e só óptimo, na boca da gente mais fina. As camadas mais rasteiras usam, para tudo, o espectacular. Com sinal negativo, dizia-se que a criança era turbulenta, a estrada perigosa, a viagem atribulada, o jogo difícil. Hoje é tudo e sempre complicado. Desta forma, inexoravelmente, o nosso vocabulário vai minguando. Além de ser fastidioso ouvir constantemente as mesmas palavras…

Na moda está o “desde logo” que raramente é usado a preceito. Também na berra, em vez de “a questão é”, “o que se passa é” ou “trata-se de”, o que é fino dizer é “estamos a falar de”. Hão de reparar…

Com raízes fundas está o “dado adquirido” em vez de certeza, facto, realidade, etc. Não sei onde foi adquirido, se foi dado ou emprestado, mas que é piroso, lá isso é.

Tal como para se dizer que é possível ou que há condições surge sempre o chavão “estão reunidas as condições”. É incontornável, outra deliciosa descoberta.

E agora é tudo “em concreto”. Tal como não basta ser activo, tem de se ser pró-activo, neologismo algo suspeito nestes tempos conturbados dos escândalos da pedofilia.

Talvez por isso, dadas as delicadas e sensíveis questões legais, já cana ouvir o “alegadamente” que funciona como resguardo ou preservativo antes de cada afirmação, revelação ou indicação. Arranjem outra, já chateia tanto alegadamente

O mesmo se aplica ao sinistro “atempadamente”, como se não tivéssemos “a tempo e horas”, na altura própria, em tempo útil, oportunamente, etc.

Tempos houve em que existiam barbeiros, merceeiros, donos de cafés ou restaurantes, pedreiros, electricistas, mecânicos, pintores, construtores civis, etc.

Hoje só há empresários. A palavra enche a boca e o ego dos nossos comerciantes e industriais, seja qual for a sua dimensão. Até o engraxador da esquina se declara pomposamente empresário. Somos realmente um país do faz de conta…

Os políticos são os campeões da linguagem hiperbólica e modernaça, com pérolas como obstaculizar, empresarializar, contratualizar, deslocalizar, direccionar, para já não falar de “economicista”. Durante anos, décadas, séculos, conseguimos viver e compreender-nos, dizendo dificultar, gerir com rigor, contratar, transferir, dirigir e económico. Mas não, é preciso mais sainete, outro estilo. Vai daí, toca a inventar, a recriar derivações. De contrato sai contratar, não contratualizar que viria de contratual. Qualquer dia, aparece um senhor deputado a dizer negocializar em vez do corriqueiro negociar. E os populares vão logo atrás, é incontornável

Talvez por acharem que há falta de verbos, alguns eruditos resolveram, a partir de elenco e alavanca, dar à luz as graciosas formas que são elencar e alavancar. A tais espíritos superiores já não servia dizer enunciar, nomear, indicar ou citar. Não senhor, elencar é mais chique. Depois, impulsionar, incentivar, estimular, apoiar, nada disso serve. Agora gente fina diz alavancar que é palavra bonita, expressiva, soa bem.

Igualmente deliciosa é a preocupação em usar o substantivo em vez do mais que indicado verbo. Dantes, os espíritos simples diziam que “não pagar a multa no prazo traz complicações”. Hoje, dir-se-á que “o não pagamento da multa no prazo (ou será nos timings?) traz complicações. O advérbio “não” é repetida e despropositadamente usado, não junto ao verbo (como lhe compete) mas ligado ao substantivo. Ouve-se e lê-se com frequência “não presença” em vez de ausência, o não respeito em vez de desrespeito. Até já vi escrito ao lado de “o direito de caça”, o direito de não caça. E um reconhecido comentador político afirmava que o mais provável seria a não guerra.

Não se analisa um texto aquando ou na altura da revisão orçamental, mas em sede de revisão orçamental. Os nomes dos árbitros são conhecidos em sede de sorteio…

E já ninguém acompanha de perto nem segue um projecto. Agora só se monitoriza. Alegadamente, é outra elegância…

Hoje não se executa, arranca, põe em prática, leva por diante ou dá início a um empreendimento ou uma acção, só se implementa.

Delirante igualmente é o uso repetido (ou melhor, recorrente) da forma distorcer no sentido de afectar, adulterar, pôr em causa, quando distorcer significa precisamente o contrário, ou seja, endireitar, corrigir, restabelecer.

Nos bons velhos tempos, fazia-se perguntas. Hoje, coloca-se questões. Percebem a diferença? Eu não, e acho ridículo. E incorrecto, porque uma não equivale à outra, são coisas diferentes.

Nada agora é simples ou provável, mas sim líquido. E se não foi pacífico chegar a acordo, isso não significa que tenham andado à tareia. Quer apenas dizer que não foi fácil. Mas fácil não oferece o toque de classe que pacífico parece conferir a quem o utiliza. A verdade é que as figuras públicas influenciam e condicionam os teledependentes, os tais populares que julgam distinguir-se quando repetem tiradas pedantes. E como ninguém aponta a dedo os autores e os instigadores de tanta fatuidade, a degradação continua.

É uma tristeza, mas parece que é assim, é bué da fixe e à maneira

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*Publicado no n.º 25 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2003.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 45




Senhoras minhas*

António Cagica Rapaz

e meus senhores. Foi assim que iniciei a alocução que proferi no Clube Sesimbrense por ocasião da celebração do seu 146.º aniversário. Foi a forma que escolhi para prestar homenagem ao nosso inesquecível professor Artur Maria da Silva Costa e, ao mesmo tempo, dar o tom para a conversa em família para que o Rui Mota me convidou.

Não é minha intenção repetir aqui, por aproximadas palavras, quanto me ocorreu dizer naquela tarde de sábado. É verdade que poucos dos leitores lá terão estado, mas cada coisa tem o seu tempo e a sua moldura. E, se retomo o assunto, é porque se tratou de uma experiência de comunicação que envolvia para mim uma espécie de desafio, um teste a certas ideias que tenho quanto à natureza deste processo curioso e aliciante que é o diálogo imperfeito através desta última página. Já o escrevi muitas vezes, o que tendes entre mãos é apenas um jornal, papel que vai amarelecendo, capacho adiado, artigo perecível, folha à mercê de qualquer Outono menos meigo. Mas é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, algo de muito importante, quando nele pomos algo de nós, quando através dele passa a amizade, o desejo de partilhar alguma coisa, sonhos, recordações, ideias, o simples facto de pertencermos a esta terra, a este mar…

Nada disto habitava o meu espírito quando o Rui me telefonou. Sem hesitação, aceitei o convite, e só depois dei por mim a pensar no que iria dizer. No fundo, preocupava-me não saber quais seriam as expectativas da Direcção do Clube, o que esperavam ou desejavam de mim os que me convidaram e os que lá se deslocariam para me ouvir. Como costumo fazer, deixei aboborar, esperei que uma ideia viesse, um caminho se desenhasse. Felizmente, tinha carta branca, pois não me haviam imposto qualquer tema, como por vezes acontece. Na verdade, por mais interessante que possa parecer, um tema pré-determinado constitui um espartilho e um constrangimento. Por isso, confiei no acaso, deixei que o mar traçasse na areia um sinal, um rumo, ou deixasse na rede uma ideia de assunto.

A palavra palestra causava-me certo desconforto, evocava-me os inúmeros discursos a que não pude escapar. A ideia de falar de cátedra não me seduzia, por um lado, por não me achar à altura e, por outro, por preferir um tom mais coloquial.

O professor Silva Costa teria, imagino eu, uma perspectiva algo semelhante. Daí, porventura, aquela forma, remotamente maliciosa, que ele arranjou para retirar parte da solenidade que os discursos carregam às costas. E também para deixar entrever, desde as primeiras palavras, Que não iria ser fastidioso. Assim, resolvi adoptar uma perspectiva algo egoísta e falar de pessoas e de coisas de que gosto, admitindo que tal viesse a ser do agrado dos presentes. No fundo é o que aqui sempre tenho feito, impondo-vos a minha vontade, ao escrever o que me apetece. Mas não é menos verdade que procuro não me afastar do que julgo, adivinho, pressinto (e às vezes sei) ser o vosso gosto. Porque aqui intervém o que penso ser essencial nesta relação que se estabelece entre quem escreve e quem lê, ou seja, a criação de um espaço comum, espécie de pátio de recreio onde os jogos podem ser de palavras, onde cada crónica é apenas uma mensagem lançada ao vento, praia fora, marginal adiante, sinal combinado, pretexto para o que realmente é importante, o encontro entre pessoas. Cada crónica é uma palavra de um diálogo que só se torna efectivo quando nos encontramos à esquina do Central e falamos disto, daquilo, às vezes (não é indispensável) do que escrevi. Talvez por ser Gémeos tenho dualidades estranhas. E tanto gosto de conversar longa e acaloradamente como sou capaz de ausências e silêncios demorados. A escrita ajuda-me a não me deixar arrastar para a ascese…

E assim foi que me apresentei no Clube, disposto a fazer aquilo de que gosto, conversar ao sabor da inspiração do momento. Naturalmente, levei uma cábula, archote discreto para me iluminar o caminho, salvar-me do perigo de ir à via nas marés desencontradas da fantasia que às vezes me arrasta.

O nosso novo e jovem pároco apenas ficou alguns minutos, prometido que estava a missão inadiável. Mas ainda tivemos tempo para trocar duas frases de circunstância, tendo surgido pelo meio o nome do padre João. Com suave franqueza, confessou que muito tem ouvido falar no padre João, embora não tenha dado mostras de agastamento nem preocupação.

Pelo contrário, deu a ideia de querer conhecer melhor a figura do padre João, talvez para compreender as razões da saudade que ele em nós deixou.

Foi porventura este intróito que me levou a recordar outros que li, durante anos, a meias com o Pedro Gonçalves, na missa das crianças, até o futebol, me levar por outros caminhos…

A meu lado, na mesa de honra, como é usual dizer, estava o Dr. Manuel Nabais, meu professor de Português no antigo 5.º ano e que herdou a tremenda responsabilidade de substituir o Dr. António da Costa Marques, homem de grande envergadura, personalidade notável e mestre em várias disciplinas. Peso semelhante terá sentido sobre os ombros o padre Abílio quando veio render o padre João. Não é fácil assumir certas sucessões, é verdade. Não deixa de ser curioso observar que falar diante de um antigo professor foi uma espécie de prova oral, consequência natural das provas escritas que, mês após mês, aqui venho fazendo. Felizmente não dispensei desta oral cuja dificuldade paradoxal residiu no facto de não me fazerem perguntas.
Antigamente, nestas festas de aniversário, mandavam vir o Rui de Mascarenhas ou a Maria Marise. Agora atiraram-me para a boca de cena, naquela sala onde arrastei os pés, dotado que nunca fui da suavidade deslizante do Lucindo ou do Alfredo Filipe, um modelo Astérix, outro tipo Obélix, mas ambos admiráveis dançarinos. Cantar também não é o meu forte, e muito jeito me teria dado levar comigo o Luciano Faria, por exemplo, que tinha das mais bonitas vozes que passaram pela Vila Amália. Ao falar de “coisas que teria pudor de contar seja a quem for”, lembrei-me do João Villaret a dizer José Régio. E lembrei-me do David Saloio, naturalmente, o nosso empolgante declamador de tardes inesquecíveis dos primeiros de Dezembro da nossa Mocidade. Lembrei-me de tudo isso e muito mais, mas a verdade é que estive sozinho perante a curiosidade silenciosa dos prezados consócios que, por me conhecerem, me deviam interrogar sobre a cor do coelho que eu iria tirar da minha cartola de ilusionista do discurso directo.

No fundo, não lhes impingi uma crónica falada nem agora vos faço um relato do que lá disse. Se retomo o assunto é porque, pelo menos para mim, foi uma experiência muito agradável, interessante e honrosa. O mais significativo, a meu ver, terá mesmo sido o que aconteceu depois da alocução.

Enquanto esta durou tive a sensação de estarmos a partilhar alguma coisa, de lhes estar a dizer o que teriam escolhido se tivessem tido possibilidade de escolha. E isto porque, apesar de ser só eu a falar, tive a impressão de ser um verdadeiro diálogo, com réplicas dos presentes em forma de olhares, sorrisos, gestos de cumplicidade. Não se tratou de mérito do orador, apenas terei, porventura, tido a intuição de acertar o passo, de dar a mão ao entrar na roda, de remar em cadência, de estarmos em sintonia. Para, desta maneira, todos juntos, fazermos daquela cerimónia (um bocadinho solene, apesar de tudo) uma pequena festa de família, com certo sabor a consoada. Fiquei feliz por ter contribuído para alguma expressão espontânea de afectividade que julgo ter sido sensível durante o convívio que se seguiu. Não houve apenas a busca da comida, antes vimos conversas animadas, grupos que se formaram e entrecruzaram, certo espírito de fraternidade que me pareceu sincero. Quase havia no ar o perfume do cafezinho do Damião, foi bonito e simples. Afinal, é esta a razão de ser de todos os Clubes.

No fim, fica a dúvida sobre a duração da alocução, se teria valido a pena alongá-la, se não seria maçador ir mais longe. Alguns espíritos mais brejeiros gostariam de ver evocada a peripécia do duelo Ernesto-Zé Brandão, a peixaria face à oficina, pistoleiros da noite saídos do Ribamar dispostos a tudo. Ou o dueto burlesco do passo doble protagonizado pelo Zé António da parteira com o mascarado Zé Albano. Outros, mais propensos ao bucolismo, talvez tivessem apreciado um poema, meia dúzia de apontamentos poéticos, a cheirar a maresia e com música de Carlos Paredes em fundo, não sei.

Talvez um dia, com fogueira à porta, pelos santos populares, fica o alvitre…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense de Fevereiro de 1999.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 36



Em Santana, o Joaquim LEITE, que mora a dois passos do Fernando GATO, correrá algum perigo?
António Cagica Rapaz


[da série Reflexões]

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 44




Quotidiano

António Cagica Rapaz

O telefone tocou com o mesmo som irritante dos outros dias, o mesmo sinal perturbador de sempre. Todavia, desta vez, parecia haver algo de inquietante naquele som estridente.

O senhor Alexandre olhou o aparelho como se o visse pela primeira vez. Estendeu o braço, mas logo deteve o gesto, ficando a olhar o telefone. Nos olhos lia-se toda a angústia que o invadia naquele momento. Os colegas do escritório olhavam-no num silêncio absoluto. Era normal o telefone tocar àquela hora, a todas as horas. Mas se os telefones tivessem alma tocariam de acordo com as mensagens que vêm trazer. E aquele telefone parecia ter alma pois o som arrepiante continuava. Ninguém se atreveu a abrir a boca para dizer ao senhor Alexandre que levantasse o auscultador. Todos estavam possuídos do mesmo estranho terror. Por fim, o senhor Alexandre pegou no auscultador. Houve um suspiro geral de alívio, mas a expectativa não terminou. Pelo contrário, aumentou à medida que o rosto do senhor Alexandre ia exprimindo a preocupação progressiva ditada através do nefasto aparelho. O seu pressentimento tinha, infelizmente, confirmação.

O senhor Alexandre pousou o auscultador, lentamente, como se não tivesse força para o aguentar na queda. Ao desligar o telefone, como que se desligou a ele próprio de algo muito caro, de muito importante na sua vida. Sem uma palavra, levantou-se, pegou no casaco e dirigiu-se para a porta. Um colega correu para ele e perguntou o que se passava. O senhor Alexandre, com voz fraca, apenas pronunciou: - A patroa... E saiu, fechando a porta de mansinho, como se tivesse receio de acordar alguém que já dormia o sono de que se não desperta.

Passados uns dias, o senhor Alexandre ocupava, de novo, o seu lugar no escritório. O telefone tocou. Todos os colegas se voltaram como se uma força misteriosa os impelisse. O senhor Alexandre olhou o aparelho, fechou os olhos por uns momentos e, com firmeza, pegou no auscultador. Falou com a sua voz calma e tratou o assunto. Os colegas recomeçaram a trabalhar, mais tranquilos.

À hora do almoço, o senhor Alexandre pediu desculpa aos colegas por não os acompanhar, como era habitual, e afastou-se, apressadamente. Quase à esquina, ainda o viram comprar um pequeno ramo de flores e apanhar o eléctrico. Quando regressaram, já o senhor Alexandre se encontrava no seu lugar, trabalhando, em silêncio. Tinha os olhos vermelhos...

Durante a tarde não trocou uma palavra com os colegas. Ao sair, recusou delicadamente a boleia que lhe ofereceram e seguiu a pé, lentamente, o olhar perdido no céu que perdia o seu azul. Não tinha pressa de voltar para casa, a noite adivinhava-se sombria. Caminhou durante muito tempo ao longo do Tejo, até parar, olhando os barcos carregados de pessoas apressadas em regressar aos seus lares. Sentiu-se perdido, no meio daquela gente com que se cruzava, evitando-o como um impecilho. Sentiu-se só, dolorosamente só. As pessoas continuavam a passar, os barcos sucediam-se. As luzes já se acendiam, a noite abria os seus braços, espalhava a sua fascinação enquanto o rio ia ficando negro, como o telefone, como o fundo da noite, como a sua vida vazia. Sentou-se na muralha e olhou as águas. Por um momento, o olhar ficou-lhe preso naquele pedaço de madeira que seguia, silencioso e suave, levado pela corrente. Despertou, sobressaltado, quando lhe tocaram no ombro. Virou-se, num impulso, e viu um miúdo com um jornal da tarde na mão.

- Senhor, compre-me este jornal, é o último...

Recusou. Que lhe interessava o jornal? Que lhe interessava o mundo, a vida? O miúdo insistiu:

- Senhor, traz o escândalo, o dopping do Agostinho...

Ele não sabia do que se tratava. De súbito, deteve-se na contemplação do menino. Teria uns nove ou dez anos, um olhar límpido, um rosto expressivo, os cabelos loiros. Adivinhava-se a inteligência, via-se a miséria.

- Está bem, dá cá. Olha, já agora, diz-me, almoçaste hoje?

- Não, senhor, só comi um bocado de pão esta manhã.

- Então, anda daí, vamos jantar os dois, queres?

- Quero, sim senhor. Obrigado.

- Mas com uma condição, tens de me contar aquilo do Agostinho.

- Então o senhor não sabe? Não tem estado cá?

- Não. Tenho andado longe, muito longe daqui...

O senhor Alexandre sorriu. A noite estendia o seu manto sobre as águas tranquilas do Tejo...

Record, 1972

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 40

as crónicas da Eventos...

O Damião e o Deca*

António Cagica Rapaz

O Grémio começava no Central, era mesmo sua a esplanada que acabou ao serviço do Café. Mas ficou tudo em família, os frequentadores do Central eram, na sua grande maioria, sócios do Grémio e a ambivalência quase roçou a concorrência quando o Damião começou a fazer um delicioso cafezinho, de aroma refinado e sabor requintado…

O meu pai era sócio do Grémio e eu entrei na adolescência saltitando entre o Central, onde aprendi a bem jogar bilhar, e o Grémio, onde o mesmo mestre me iniciou no xadrez. A vista do tabuleiro, a concentração, o ar misterioso e transcendente dos jogadores assustavam-me, não me sentia capaz de tais lances cerebrais. Até que, com a sua infinita paciência, o António Telmo me explicou como empinar os cavalos, fazer deslizar os bispos, avançar os peões, servir-me da rainha e proteger o rei. O resto veio com a imaginação e languidez das intermináveis tardes de Verão, embora o pé me saltasse mais para a praia. O Zé Pedro Rasteiro, pelo contrário, era estudioso, aplicado, tomava notas, levava aquilo muito a sério, punha os cavalos a correr, as torres na retranca e os peões à solta. De cartas nunca gostei (excepto as de escrever) e só lhes prestei alguma atenção quando o Damião me ensinou três ou quatro truques inocentes e rudimentares, os únicos que conheço. O Grémio conservava ainda alguma solenidade, sentia-se o peso de figuras destacadas, homens respeitáveis, havia ordem, certo ritual nas actividades, mesmo no Verão quando as janelas se escancaravam sobre a esplanada onde as belas damas veraneantes faziam renda, exibiam os decotes e o bronzeado. Os homens, sócios, amigos e convidados, desciam para uma imperial do António Luís e voltavam para jogar ou conversar, ler o jornal ou ver televisão.

Nada escapava ao olho de lince, à perspicácia do Damião, o que se passava na sala, o que se pressentia na esplanada, o que ia na rua, na praia, na noite. Gavião implacável, o Damião tinha um sexto sentido, um periscópio invisível, um radar infalível, adivinhava o que as cartas escondiam, descodificava gestos e olhares, era um espírito fino, malicioso, discreto, astuto e arguto…

A cultura teve em Augusto Formiga um dos seus vultos maiores e quase me envergonho de ter provocado o seu afastamento da encenação de que tanto gostava. Era Verão, a televisão uma novidade irresistível e havia que ensaiar uma peça que constituía o ponto alto de uma festa de adeus ao padre João, de abalada para a Ericeira. Ora os meus atrasos acabaram por exasperar mestre Formiga que abandonou o palco da Vila Amália a uma semana do espectáculo, apenas com um único dos três actos sabidos. Ficou o João Salgueiro com as “Mãos Vermelhas” (era o título da peça) para ensaiar e aplaudir o nosso padre João.

Foi uma maldade bem menos intencional do que os pós de espirrar que, certa vez, lancei do alto do tecto, do forro, sobre os jogadores de póquer. As culpas (tal como os pós) caíram sobre os ombros do Alfredo Filipe…

O gosto pela pantomina e a alergia às cartas inspiraram-me uma farsa memorável realizada inopinadamente, certa tarde de modorra, com a cumplicidade do Zé Adelino. Sentámo-nos a uma mesa e começámos a dispor as cartas num misto de paciência, canasta ou algo que o valesse, para mim tudo era chinês. Deixámos correr a fantasia, dando cartas, ordenando cartas, fingindo ganhar e perder, comentando, discutindo hipotéticas irregularidades, numa simulação surrealista e desenfreada, sob o olhar atónito e intrigado de vários associados que tentavam compreender o incompreensível, sem o conseguirem, obviamente, mas sem quererem dar o braço a torcer, nunca admitindo não conhecerem o jogo que nós estaríamos a praticar. Até que um, menos hipócrita, perguntou que raio de jogo era aquele, ao que eu respondi, seca e desprendidamente, tratar-se do Deca. Novo silêncio embaraçado, ninguém ousando reconhecer que desconhecia tal jogo nem perguntando quais eram as regras, apenas seguindo as nossas loucas jogadas. No auge da expectativa, levantámos ferro e saímos porta fora. O Deca nascera e morrera naquela tarde…

Mas o sinal mais visível da presunção vigente era a obrigação grotesca e inflexível do uso de fato e gravata nas noites tórridas de Carnaval. Para fugir a essa ridícula tirania, eu costumava mascarar-me de “Tó Manel”, ou seja, à vontade, manga curta, usando com único e frágil disfarce um mascarim minúsculo que mal cobria o contorno dos olhos. Ora, certa vez, por essas quatro da manhã, e como ter mascarim ou nada era igual, resolvi tirá-lo. Eis senão quando se precipita sobre mim um “ayatollah” da Direcção, guardião do templo da virtude, de galões em riste, lançando-me um ultimato fulminante: ou repunha o mascarim ou ia vestir fato e gravata. Felizmente o ridículo não mata, senão o Grémio seria um vasto cemitério…

Mais grotesco ainda foi terem-me aplicado uma repreensão registada por ter cometido o sacrilégio de ter entrado na sala de boné na cabeça, facto que muito indispôs os prezados consócios que praticavam o salutar desporto do sintético. Como me censuraram o atrevimento e a audácia de forma quase histérica, resolvi ignorar as injunções. E não tirei o boné. Convém referir que nunca, a não ser naquela noite, andei de boné, na minha vida. Comprara-o em Paris e foi uma inocente brincadeira tê-lo posto…

Enfim, malhas que a hipocrisia tece mas que não chegam para destruir no meu espírito a imagem impressiva de belas partidas de xadrez, de conversas de fim de tarde, antes da lota, dos elegantes bailes de Verão, do passadiço até ao Central, do saboroso café do Damião, com um cheirinho a enigmáticas ilusões, um impalpável perfume a escândalo de veraneio, da chegada do Diário Popular com os ecos da última proeza do Agostinho na Volta à França. Foi esse o meu Grémio, com o convívio e a aprendizagem como amigos como o Raul que hoje, milagres dos ciclos da vida, é rapaz da minha idade. É esse o meu Grémio, com os seus excessos, sim, mas sobretudo com o seu inquestionável sortilégio que quero conservar no registo da memória, com prazer e saudade, entre as diagonais dos bispos, uma vitória única, inesquecível, do Fernando Cardoso sobre o Alberto Ló, a sensualidade e os mistérios cultivados pelas máscaras de um Carnaval inconfessável, a par da pantomina impagável do Deca…

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*Publicado no n.º 23 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2003.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 44



O Duque*

António Cagica Rapaz

A lota antiga à sombra protectora da Fortaleza, a água transparente da prainha, o calhau da Mijona, a festa do Cabo, a procissão das Chagas, as ruas enfeitadas, o café do Zé Filipe, o Central, a Marisqueira, o Pinto & Pinto são cartazes da nossa terra, imagens tradicionais do universo típico da nossa vila com os seus atractivos naturais, o ardor religioso e a alma boémia.

A nossa terra é tudo isso, as praias, as ruas, os becos e recantos, as tradições, os usos e costumes, as crenças mas, sobretudo, as pessoas. São elas a alma de Sesimbra. A lota, mais do que o peixe estendido, era o diálogo vibrante entre pescadores, vendedores e compradores sob o olhar contemplativo dos curiosos pendurados no muro.

A Marisqueira é o Tony com a dispepsia crónica, as gargalhadas pantagruélicas e as mangas arregaçadas. O Pinto & Pinto é (ou era) o Alfredo, regedor de uma freguesia inesquecível desde o Domingos ao Baeta, do Zé Manel Torres Batista ao Zi, gerações sucessivas de filhos da noite a quem o Deodato matou a fome de aventura e evasão com sandes mistas de amizade e «rusmango».

Sesimbra teve (e conserva algumas) figuras típicas, daquelas que marcam uma época. A minha visão de Sesimbra e dessas personagens foi-me dada por meu pai que povoou as noites da minha infância com narrativas rocambolescas, colorias, saborosas, que iam desde partidas de Carnaval a caldeiradas na Arrábida, de bailes de máscaras a jogos do Pátria, de guerrilhas entre monárquicos e republicanos a sessões de hipnotismo na loja do Câncio. De tudo isso o que mais profundamente ficou gravado no meu espírito foi o sentimento de amizade, de camaradagem. É certo que à volta de uma mesa com caldeirada ou sardinhas assadas e bom vinho, o ambiente tem de ser de festa, a laracha é fácil, a fraternidade espontânea, o juramento fluído.

Porém, dessa superficialidade sem compromissos marcantes algo fica pela vida fora, uma cumplicidade, um espírito salutar, uma lealdade subjacente. As histórias que o Antero do pão contava, com uma graça irresistível, provocavam barrigadas de riso que rebentavam com os cós das calças e faziam sair bocados de «cães-de-monte» pelo nariz.

Era o tempo em que Sesimbra era uma praia de raros banhistas, com o Numância inteiro, carregado de aventura, objecto de curiosidade dos remadores dos charutos do tio Abel. O meu pai tinha um escaler do qual guardei uma fotografia onde se vêem igualmente dois dos seus grandes parceiros de então: o Franco e o Abel Embaixador. A maior parte desses amigos só os conheci de longe, de baixo para cima com os olhos tímidos da minha meninice e sob o efeito da embriaguez das narrativas em que esses homens atingiam a dimensão de personagens míticas.

Mas um conheci eu de facto e por ele sempre tive grande admiração: é o caso do DUQUE. Em Sesimbra, o Duque é uma figura, uma personalidade, uma instituição. Homem de traineiras, do mar, é igualmente uma chama viva de franqueza, generosidade, desassombro, alguma irreverência. E um coração enorme.

Na doca, no Central, no Grémio, na rua Direita, em toda a parte, o Duque é o mesmo, honesto, sorridente, bonacheirão, um grande senhor sem artifícios nem brasões postiços, só com a verticalidade do trabalho e a nobreza do carácter invulgar.

As marés vão e voltam, a Fortaleza permanece altaneira e firme sobre os troncos que a sustentam, o Castelo resiste aos invernos expressivos, mas os homens são frágeis e têm a memória fugidia. Por isso vamos passando ao lado de homens de uma grandeza insuspeita na indiferença da rotina. Cruzamo-nos sem nos olharmos de frente, sem o tempo de um abraço. Quem, como eu, vê Sesimbra através dos filtros do tempo e da distância destaca mais nitidamente os contornos, retoca a imagem das pessoas, avalia a importância das coisas. E da massa sobressaem uns quantos a quem presto a minha modesta homenagem. Não partilhei as caldeiradas na Arrábida mas guardei uma certa ideia da vida e dos homens, formada a partir das evocações do meu pai. E, tal como ele, eu gosto do Duque, da sua simplicidade benigna e autêntica de Homem de alto a baixo.

Contrariando a tirada popular, o azar do meu pai foi que, no jogo da vida, não lhe tivessem saído mais Duques…

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Publicado originalmente em O Sesimbrense de Fevereiro de 1983.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 35



O padeiro anda radiante, o negócio melhorou desde que a patroa foi para o balcão. Vistosa, insinuante, simpática, atrai a clientela, especialmente a masculina. O padeiro, agarrado ao forno, vê multiplicarem-se os pães e os bolos, amontoarem-se os lucros.
A mulher é o sorriso equívoco, decote atrevido, promessa de pão, amor e aventura...
Os homens rondam, o comércio prospera, o padeiro resolve comprar segundo forno. As comadres olham de soslaio, as línguas tornam-se insolentes, a breve trecho toda a gente murmura, só não vê quem não quer:
o padeiro tem um par de fornos...
António Cagica Rapaz


[da série Gente, Nomes...]