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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 26

as crónicas da Eventos...



A suave mentira*

António Cagica Rapaz

Estávamos na intimidade da capela do Senhor das Chagas, e o corpo presente era o do João, em família, com os amigos e a bênção do padre Agostinho, quando a Maria Ermelinda me surpreendeu pedindo-me para ler um texto durante a missa. Muito embora não seja grande adepto deste tipo de participações externas, aceitei sem hesitação e, lá fui ler uma passagem cuja última frase era “Palavra do Senhor”.

Nessa altura, dei por mim a recordar outro tempo, o da minha juventude, quando, noutro altar, na igreja de cima, diante de um microfone parecido com aquele e a meias com o Pedro António, eu lia a versão portuguesa da missa das crianças enquanto outro João, o inesquecível padre João Ferreira, oficiava em latim.

Terminada a leitura, senti uma súbita vontade de continuar ali, de olhar todos quantos tinham vindo dar um último abraço ao João e dizer algumas palavras simples, depois da solenidade e da profundidade da palavra do Senhor. Mas, talvez por não estar preparado, não me atrevi. A verdade é que, por vezes, tenho receio de certos impulsos que podem não ser bem interpretados, sobretudo em momentos dolorosos. Lembrei-me de uma situação semelhante no filme “Quatro casamentos e um funeral”, tão iguais são a ficção e a realidade, e admiti que o João teria gostado que alguém dissesse duas palavras, na nossa linguagem, com a proximidade, o afecto e a cumplicidade que nos uniam. Acabei por ficar em silêncio e, hoje, tenho pena. Felizmente, resta-me este cantinho da “Eventos” para voltar a falar do João, porque é preciso ir um pouco além das fórmulas de circunstância. Ele merece mais do que recolhimento e prostração, porque não se limitou a cruzar-se connosco na marginal. O João fez efectiva e duradouramente parte das vidas de muitos de nós.

Há pouco tempo, embora não explicitamente nomeado, ele foi a figura central de um escrito que intitulei “E co’a dor” e no qual tentei abordar o difícil tema da dificuldade que todos sentimos em lidar com a perspectiva de uma morte que sabemos ou pressentimos inevitável; com a tristeza, a revolta e a impotência; também com a vontade de não abandonarmos os nossos amigos; mas igualmente com o apelo da vida que nos leva a apertar, por uns momentos, a mão do doente e, logo depois, irmos jantar fora, ao cinema ou ao futebol. Porque a vida é assim mesmo, porque não podemos chamar a nós todos os dramas do nosso círculo de amizades. Os familiares chegados, esses é que não podem alhear-se um só momento.

Nós, os amigos, podemos estar presentes, a espaços, falar disto e daquilo, deixar mensagens de ternura embrulhadas em palavras aparentemente banais, desanuviar o ambiente, ousar trivialidades, às vezes, uma laracha, fingir que acreditamos na recuperação, enquanto eles, na sua incerta consciência, fingem crer em nós, num jogo assente em cumplicidades inconfessadas, em que uma palavra despropositada pode ser devastadora.

Quando nos despedimos, quando viramos costas, sentimo-nos aliviados, cumprimos a nossa obrigação, respiramos fundo e olhamos o céu azul, dando graças a Deus por estarmos de volta à nossa realidade. Mas, quando somos verdadeiramente amigos, não podemos deixar de sentir o coração apertado. E sentimos alguma culpa, apesar de tudo.

Depois, o tempo vai passando, com uma ou outra ilusão de esperança, a angústia de um agravamento insuportável e um cada vez menos convicto discurso que mais não consegue ser do que uma tímida e suave mentira. Um dia, farão o mesmo connosco, e também nós fingiremos acreditar…

O João deixa em todos quantos o conheceram uma recordação muito forte, pela bondade, pela gentileza, pela lealdade, pela honestidade, pela autenticidade, pelo entusiasmo, pelos ideais, pelos sonhos que perseguiu.

Nos momentos derradeiros, o padre Agostinho serenou-o, assegurando-lhe que podia partir tranquilo porque cumpriu a sua missão, deixa uma grande saudade nos seus alunos, nos seus amigos, nas gentes da nossa terra. De cada vez, e muitas são, que vou ao porto de abrigo, penso nele, no seu amor pela natureza, pela vida. Em cada aiola, em cada barca de aparelho, por este mar fora, ele deixou o seu olhar e a sua paixão, o nosso João…

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*Publicado no n.º 37 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2005.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 30


«Técnico»*

António Cagica Rapaz

Uma das sortes mais típicas da magia do progresso consiste em colocar uma capa sobre um velho estabelecimento, deitar uns pós de perlimpimpim, umas notas de mil e, maravilha das maravilhas, surge uma agência bancária…

Foi o que aconteceu à loja do mestre Adelino.

Na evolução natural das coisas, as tabernas deram lugar aos cafés que, por sua vez, se transformaram em bancos.

A taberna do mestre Adelino foi uma curiosa excepção. Primeiro, manteve durante muitos anos a sua modesta mas mui digna condição de taberna, aliás frequentada por uma clientela muito especial, variada, com pescadores, empregados de comércio, estudantes e até um encantador de serpentes.

Depois passou a Banco sem ter sido café…

A casa tinha dois centros de atracção. De um lado, na taberna, o jogo dos matraquilhos que funcionava dia e noite com as bolas a entrar, as moedas a cair e a malta a discutir. No princípio era a cinco tostões a jogatana.

Um belo dia, o «estádio» foi levado para reparação e no seu lugar foi colocado outro que só funcionava com moedas de escudo. Uma tal inflação assustou o pessoal, mas o mestre Adelino apressou-se a acalmar os espíritos explicando que era provisório. O vício, porém, era grande e o jogo continuou no mesmo ritmo apesar do preço haver duplicado. Resultado: o provisório virou definitivo e, se não fosse o banco, a esta hora ainda a maralha martelaria os matraquilhos do mestre Adelino.

Ao lado da taberna, com comunicação pelo fundo, ficava a barbearia onde o Raul começou a afiar a navalha com a qual era tão hábil como nos matraquilhos, a par do Lopes que, diga-se desde já, preparava umas sandes atuchadinhas de atum que eram um regalo.

Para além de rapar a nuca (vulgo caldinho) o mestre Adelino dava todos os dias lições de futebol. E era ver os benfiquistas reunirem-se para ouvirem o mestre fazer o balanço da jornada anterior ou as previsões para o domingo seguinte.

Cada um é como cada qual e o Mestre Adelino tinha a sua particularidade linguística: na palavra «técnica» ele pegava na navalha e escanhoava o «c». Daí que da sua boca saísse, por tudo e por nada, uma «ténica» repetida naquela orgulhosa convicção de que só ele pronunciava correctamente e os outros estavam todos errados. E era ténica para a direita, ténica para a esquerda e às vezes pelo centro…

A palavra caiu no goto de certo núcleo de malandragem e, a breve trecho, o Mestre Adelino passou a ser conhecido pelo Ténico.

O Carnaval começava ali com as brincadeiras da praxe, o «lápis do Lopes» guardado na caixa atrás da porta da barbearia, os porta-moedas pregados ao alcatrão que faziam as mulherzinhas do campo descer dos burros e tantas outras. A malta continha-se, silenciosa, com ar de quem não quer a coisa, mas quando alguém se baixava para apanhar o porta-moedas saltava o coro. «Larga Larga»! Era o susto, a surpresa, o vexame das mulherzinhas que, recuperado o ânimo, davam respostas adequadas, sugerindo mesmo lugares onde poderíamos meter os ditos porta-moedas.

Um dia, quem caiu na armadilha foi o «João-Vai-Vem». Aos gritos de «Larga! Larga!», o Fedor entusiasmou-se e clamou: «Larga, urso»!

Rescaldo: cento e sessenta escudos de multa. E vá lá, vá lá…

O mestre Adelino tem saudades da sua casa, do ruído dos matraquilhos, da algazarra da freguesia, das histórias de «lenha», dos penaltyes roubados ao Benfica…

As mulheres do campo escolheram outro rumo, os matraquilhos calaram-se e o Raul contempla, nos Açores, o oceano. O mesmo oceano que ele aprendeu a amar na rua dos Pescadores onde nasceu…
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* Publicado na edição de 25 de Junho de 1980 do Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 21



Estraguei aquele bonito relógio de marca italiano. Azzaro meu...
António Cagica Rapaz


[da série Coisas]

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 29


Lenha

António Cagica Rapaz

Nasceram na mesma rua, quase na mesma casa. Os pais enfrentaram juntos vendavais sucessivos, conheceram invernos de angústia, compraram fiado na mercearia, foram à sopa, comeram açorda e peixe fresco sem azeite.

Começaram a namorar na escola, na escada, à volta da fogueira nas noites quentes de S. João, sob os balões da rua enfeitada. A rua estreita os aproximou até ao casamento, natural, quase inevitável. Ele, bom rapaz, amigo dela, trabalhador. Ela, jeitosa, asseada, boa dona de casa...

Marés subiram e desceram, a lua passeou sobre o oceano, o farol iluminou noites sem conta, os barcos saíram ao mar e voltaram mil vezes. Erguida foi a muralha no porto de abrigo, apareceu o nylon, arribou a cavala, albacora à patada, pescada aos montes, o vento varreu os invernos difíceis e o sol da fortuna começou a brilhar com mais intensidade numa vida nova.

Em casa nada falta, rádio, televisão, frigorífico, máquinas de lavar. Ele, sempre bom rapaz, cada vez mais trabalhador. Ela começou a ler “Caprichos e Ilusões”, a escutar folhetins, a ir ao cabeleireiro, a usar toilettes caras, a não saber sair sem mala, a não passar sem fazer compras em Lisboa, instalando-se progressivamente num mundo onde vai havendo cada vez menos lugar para um marido que cheira a peixe, que só fala de talas, braças e nordeste, que a ama sem uma palavra doce, sem lhe dar prazer. Uma vez, outra e mais outra, fica a vê-lo virar-lhe as costas e adormecer enquanto ela fica bem acordada na sua frustração.

Ao domingo passeiam os dois, ele à vontade, ela toda aperaltada, em grande estilo. Vão comer marisco e ele vai para o mar às dez horas. Ela fica à janela a ver os namorados que se beijam, furtivamente, no calor da noite...

Os barcos vão pescar cada vez mais longe, as viagens são demoradas, longas são as esperas. Os lances sucedem-se, as vagas da vida afastam aqueles dois seres que nasceram na mesma rua, que vivem sob o mesmo tecto, mas que cada vez têm menos em comum. Até que um dia...

Ninguém sabe quem descobriu, o boato nasce do vento e fere pelas costas. No café, na loja, na barca, uma só palavra, venenosa, irónica: Lenha!

Perguntam-se as comadres como foi aquilo possível, que mau espírito se apossou daquela rapariga. Ele, tão amigo dela, não lhe faltava com nada em casa. Que mais queria ela?

A luz pálida no mastro mais alto da traineira que se afasta na noite é o limite impreciso entre a ilusão e a realidade. Que mais queria ela?

Perguntem à brisa morna do Verão que aquece o sangue e sopra as velas da barca dos sonhos...

1981

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 25

as crónicas da Eventos...



A Festa das Chagas*

António Cagica Rapaz

- Olha, o carrocel oito já chegou...

Os paus havia muito que tinham sido erguidos na avenida e as novenas estavam a chegar ao fim. Os miúdos mal se tinham apercebido de que o Senhor já tinha ido para cima, ansiosos e excitados que andavam, com os olhos postos na curva do Desportivo, junto ao ribeiro, na esperança de ver aparecer o primeiro camião carregado com o material para montar o Carrocel Ribatejano ou os carrinhos.

Era, porventura, o período mais apaixonante da festa, com os rapazolas a acompanharem de perto, mal saíam da escola, a montagem dos carrocéis, os motores potentes, as cadeiras, os bichos de madeira, todo um universo de sonho e mistério a crescer ali sob os seus olhos deslumbrados.

Em frente à escola de Santa Joana, aquele mesmo espaço onde jogávamos à bola, era posto à disposição do gigantesco carrocel oito, com as suas calhas entrelaçadas e sobrepostas, e com a bola de coiro pendurada em que os mais calmeirões aplicavam murros em cada passagem, à semelhança dos pugilistas quando treinam.

O Carrocel Ribatejano instalava-se ao lado, junto à escola feminina, e o dono, todo janota, repetia monocordicamente “Nova corrida, nova viagem, não subir nem descer com o carrocel em movimento, deixem parar fazem favor”.Aos poucos o arraial ia ganhando forma, com as barracas, o poço da morte, os carrocéis, a música e as luzes que prolongavam o dia em noites mágicas.

- Ó simpático, vai um tirinho?

Era o convite malicioso, carregado de segundos sentidos, no olhar e no sorriso de mulheres provocantes, muito pintadas. Os mais novos mal se atreviam a aproximar daquelas barracas de perdição onde os adultos armavam em atiradores de elite, gastavam com ostentação, afinavam a pontaria, machos engatatões e fanfarrões.As mulherzinhas das guloseimas passavam o tempo sentadas à espera que alguém tivesse a bondade de comprar um pacote de queijadas. Algumas metiam-me pena, coitadas, ali encolhidas, mal merecendo um olhar das pessoas que passavam, indiferentes. Outras não tinham mãos a medir na venda de algodão doce, pinhoadas e farturas.

Dos altifalantes jorrava música abundante e ensurdecedora, Ai Jalisco, Jalisco, Jalisco, tu tienes un’ nobia que es Guadalajara, aqui e ali um foguete, era Sesimbra em festa, dias abençoados de euforia colectiva, fatinhos a estrear, mealheiros a partir, para muitas voltas nos carrinhos e no carrocel.

No panorama das festividades populares da nossa terra, a Festa das Chagas sempre teve um estatuto e um clima muito especiais, associando, de alguma maneira, o recolhimento da Páscoa e a excitação do Carnaval, naquela mistura contagiante de devoção religiosa e de divertimento pagão. Por um lado, o silêncio contrito da capela, a emoção da procissão, o cumprimento das promessas, pés descalços atrás do andor, e, por outro, a preocupação dos vestidos novos, a exuberância das colchas nas janelas, a ostentação das incontáveis viagens nos carrinhos, as mil coisas inúteis compradas no arraial, as mariscadas pelos cafés e os petiscos no pavilhão dos Bombeiros.

Era uma dualidade curiosa, com a vila, de cabeça no chão, comovida e silenciosa, atrás do Senhor, para logo procurar a animação do arraial, o estrondo dos foguetes, de braço dado, avenida acima, carrocel abaixo, catrapiscando este, namoriscando aquela, ai Jalisco, Jalisco...

O largo do jardim era a antecâmara, e o coreto ali armado era outro pólo de atracção, com a exibição da Banda que, também ela, participava desta ambivalência, acompanhando recatadamente o Senhor através da vila, passo lento e arrastado, acordes pausados, no mesmo ritmo letárgico dos meninos da fragata D. Fernando, soldadinhos tristes de chumbo com tambor e cornetim. Mais tarde, a mesma Banda espevitava e atacava, com brio e jovialidade, trechos animados pela noite fora enquanto os miúdos adormeciam ao colo das mães, vencidos pelo sono, pelo cansaço, com a cabeça à roda e a barriga cheia de guloseimas.Regressado à capela, o Senhor das Chagas só descansava quando o último camião abalava Santana acima, rumo a outra feira onde outros meninos estariam na mesma febrilidade que nós sentíamos em cada véspera de Maio. O desmanchar da feira trazia de volta a melancolia da quarta-feira de cinzas, era como desfazer o presépio. As crianças olhavam para o chão, as ervas pisadas, o local onde, poucas horas antes, estivera o carrocel, e mal queriam acreditar. Felizmente, a nossa tristeza durava pouco porque logo começavam os preparativos para enfeitar as ruas.

Perdiam-se ao longe os silvos das sirenes das traineiras ancoradas, o roncar das motas no poço da morte, a música e a lengalenga de nova corrida, nova viagem. Sesimbra já só pensava nos santos populares. E o Santo António é sempre o primeiro...

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* Publicado no n.º 6 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2000.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 29


Lota*

António Cagica Rapaz

O peixe que o mar dá, o homem recolhe, o homem mata, o homem compra, vende e come. O mar que o homem trespassa com as quilhas dos barcos que se agigantam para alcançarem lonjuras e profundidades antes julgadas no outro lado do mundo, fora do seu alcance.

Mar que recolhe os homens, que o violam com os seus anzóis e redes de malhas apertadas. Que recolhe e guarda esses homens lá em baixo para se vingar e alimentar os mesmos peixes que o homem come…

Peixe objecto, peixe mercadoria, mas ainda peixe espectáculo que morreu, não quando cedeu à tentação do anzol, mas quando os projectores da Fortaleza se apagaram porque já não adiantava iluminarem a área vazia da que fora a Lota onde o fluxo e refluxo das minúsculas ondas se assemelha a um canto nostálgico, evocando as longas noites de verão em que a Lota durava até às tantas e às vezes mais com a canção dos vendedores, os apelos dos compradores, o zigue-zague dos homens das paviolas, o deslumbramento dos curiosos empoleirados no muro…

Os projectores da Fortaleza que descobriram o sortilégio da Lota fecharam os olhos, deixaram cair os braços pois o porto de abrigo fica demasiado longe e a poesia foi sacrificada ao progresso.

Felizmente que, mesmo na doca, continua a ouvir-se a voz forte e tão especial do Cristiano.

Por trás da nova lota, nas costas do Farol, morre o Sol em cada fim de tarde, quando as gaivotas começam a voltear por cima das traineiras que não tardam a fazer-se ao mar…

Duas das maiores atracções de Sesimbra estavam tão intimamente ligadas que quando uma morreu, a outra faleceu.

A descida da Rua Cândido dos Reis, tão perigosa para os automóveis e peões, conduz, virando à direita (evitando assim embater na Fortaleza) e roçando a pastelaria do Tomé, ao largo da Lota. Hoje «tá» largo mas não «tá» lota…

A primeira atracção era o muro, o muro da Lota, sobre o qual os curiosos se inclinavam para ver o belo peixe estendido na areia, à espera do «chui», espécie de juízo final sobre o preço. Debruçadas as pessoas naquela janela p’ró mar virada, visíveis ficavam os respectivos traseiros cujo maior ou menor interesse advinha do sexo e idade dos seus proprietários. O espectáculo começava para cá do muro e para além se prolongava. Havia autênticos e fervorosos apaixonados dessas decorações murais pouco morais e cujos nomes aqui não cito por compreensíveis pudor e discrição...

Ao fim da tarde, um lugar no muro da Lota era quase tão difícil de arranjar como um balcão de frente, sem gorjeta, no velho Salão do João Mota.

Ponto de observação sobre o mercado do peixe, objecto de olhares gulosos de passantes, era ainda o muro posto de controlo do picadeiro de domingo.

Nesse santo dia, ao cair da tarde, as pessoas descobrem o desejo de sair a passear. E tudo se passa como nas corridas de estafetas. Uns dão lugar aos outros, à medida que as pernas revelam fadiga. Então sentam-se no muro e começam a cortar nas casacas dominicais daqueles que prosseguem na lenta maratona entre o Hotel do Mar e o Espadarte, ao longo da marginal.

O Domingo (para quem não souber) é o dia em que as criancinhas vão à missa, os papás ao futebol e, antes do jantar, toda a família passeia que é um regalo ver-se. No resto da semana, marido e mulher raramente são vistos juntos na rua…

Com a mudança do mercado do peixe para o Porto de Abrigo, a nossa vila perdeu o que seria, porventura, o seu mais significativo centro de atracção. Cá de cima do muro os mirones regalavam-se com a cantilena dos vendedores, autênticas metralhadoras despejando números sob o ouvido atento dos compradores.

Alguns faziam-se ouvir claramente, mesmo à distância, mais notavelmente o Alfredo Filipe e o Zé Pardal…

Perdeu Sesimbra a lota, perdemos nós o espectáculo, mas ganhou o Maquino que montou uma peixaria ali ao pé. O seu peixe é fresco, a conversa agradável e o negócio próspero. Dizem os invejosos que ele está a fazer fortuna. Mas, às quatro da manhã, enquanto uns ressonam e outros bebem whisky, ele toma o volante e os faróis da sua carrinha rasgam a noite em direcção a Lisboa…
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Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 20



Invariavelmente, sempre que a discussão filosófica não lhe agrada, muda de tema, fala de futebol, desvia para Kant...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 28


clique na imagem para a ampliar: Fragata é o segundo, em pé, a contar da esquerda.


Fragata

António Cagica Rapaz

Quem via o Fragata na rua, com a sua boina e camisola aos quadrados, tinha muita dificuldade em imaginar ser ele aquele número 3 todo nervo, todo músculo, todo energia, que subia às alturas para ganhar lances de cabeça aos calmeirões, que antecipava com fulgor, que dobrava os companheiros na hora exacta, que ia a todas, a queimar, a rasgar, a dar a cara, com coragem e abnegação, que ainda arranjava forças e engenho para arrancar, campo fora, driblando curto, progredindo sempre, arrastando a equipa para o ataque.

Era empolgante, um verdadeiro espectáculo...

Não cheguei a ver jogar o Marcos, mas assisti a muitos jogos desse futebolista impressionante que foi o Manuel Santana. O Fragata veio a seguir para se tornar uma referência, um símbolo, um valor muito dificilmente superável. Por tudo, pela sua capacidade invulgar, pelo ardor, pela vibração posta em defesa da camisola do Desportivo, pelo exemplo, pelo excepcional nível de desempenho que atingia em cada jogo, a par de uma longevidade rara.

Ao Fragata faltou apenas confiança ou estofo psicológico para sair de Sesimbra a tempo de fazer a carreira que estava ao seu alcance. Mas acabou por ficar, como ficaram o Santana, o Valdemar e outros. Hoje, olhando para trás, talvez não sinta remorsos nem frustração porque teve a glória à medida da sua ambição tão modesta que cabia inteirinha numa selha de aparelho. Sabe Deus se teria sido mais feliz se tivesse abalado.

De qualquer modo, tenho pena que, por este país fora, nos maiores estádios, os bons apreciadores de futebol não tenham tido a oportunidade de admirar o jogador portentoso que foi o Fragata...

1982

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 24

as crónicas da Eventos...




Coisas de velhos*

António Cagica Rapaz

Levados por peregrinos e líricos devaneios exalados à beira-mar, ao lusco-fusco, em tardes lúgubres de vendaval, os portugueses decidiram reclamar direitos de autor pelo sentimento que designam por saudade e que, garantem com esfíngico orgulho, os restantes povos do Mundo ignoram.

Esta original e benfazeja presunção encontra, porventura, algum fundamento na generalizada ideia de que a saudade decorre da ausência, da solidão e da distância.

Ora, sendo como é sabido que demos novos mundos ao Mundo e encurtámos as distâncias, nenhum outro povo terá melhores razões para reivindicar a paternidade ou a maternidade da saudade. Generosos como somos, espalhámos a Fé, o Império, a língua e incontáveis mestiços pelas sete partidas que pregámos por esse Mundo fora, em particular no Brasil e em África, concedendo a muitos milhões de mal agradecidos o direito e a bem-aventurança de usar como sua a nossa palavra saudade. Não custa imaginar (como tão bem garante o sublime Régio) que um “português marinheiro, dos sete mares andarilho” cantasse o fado, à proa de uma nau, definhando de saudade, lá longe, perdido entre céu e mar.

Aliás, nem é preciso ir tão longe para sentir melancolia e nostalgia, dós de alma que são irmãs gémeas da saudade e companheiras igualmente fiéis dos nossos pescadores que, em cada sortida, mal dobram o Espichel já estão ansiosos por dar meia volta, ancorar o barco em frente à sua rua e voltar para casa, sendo cada regresso uma festa celebrada pelas gaivotas logo que a traineira começa a contornar o molhe do porto de abrigo. Sempre assim foi, ontem como hoje, e a imagem que ficou em muitos de nós, é a silhueta da “Sesimbrense” recortada na contraluz do entardecer, enquanto ao longe se ouve a melodia dos Galés. É uma visão idealizada, admito, mas que nos aquece a alma, permanecendo como símbolo de um tempo que, se calhar, nem foi tão bom como isso. Havia a guerra do Ultramar, as perseguições da Pide, a nostalgia não tem por força de ser ingénua…

Nos dias que correm, a generalidade das pessoas deixa transparecer desencanto e pessimismo, havendo a sensação, mais ou menos nítida, de que o Mundo está a caminhar para a sua destruição, em parte devido a convulsões naturais incontroláveis, como o “tsunami” que devastou dramaticamente o sudoeste asiático, mas, especialmente, pela acção irresponsável e criminosa do homem.

O fim do Mundo vai chegando, muito lentamente, quase imperceptivelmente, pela mão de quantos, a diferentes níveis, das mais variadas maneiras, vão assassinando o Planeta. Nunca somos nós, são sempre os outros. Nós preocupamo-nos com as emissões de gases tóxicos, com o buraco da camada de ozono, com o aquecimento da Terra, com a violação da Amazónia, com a queima dos resíduos industriais perigosos, separamos o lixo, mas sentimo-nos impotentes para travar a loucura e o egoísmo das grandes potências. O pior é que, à nossa porta, à nossa escala, fazemos o mesmo. Nós não, os outros. Nós, os que temos um mínimo de civismo só podemos sentir vergonha, tristeza e revolta quando deparamos com lixo e entulho que os outros deixam por todo o lado, nas serras, nos pinhais, até em sítios quase inacessíveis.

Em verdade, este nosso mundo moderno é um paradoxo incompreensível. A ciência dá passos gigantescos, alcança progressos fabulosos que ultrapassam expectativas e excedem necessidades básicas. Porém, essa marcha a caminho da perfeição é acompanhada por um processo paralelo e simultâneo de degeneração e destruição, com a droga, a fome, a guerra, o desemprego, a exclusão social, o pessimismo dos jovens e a amarga indigência de tantas pessoas idosas. A nova ordem mundial apenas beneficia minorias. Os valores e os ideais desaparecem ou são subvertidos. Mata-se em nome da democracia, da religião ou do petróleo enquanto os governos se curvam perante os novos senhores do Mundo, os grandes grupos económicos.

Neste cenário, os políticos fingem que detêm o poder, prometem o que não está nas suas mãos nem na sua competência e apenas se preocupam com os seus privilégios, com os interesses dos amigos. E reformam-se (confortavelmente) ao fim de dois mandatos de quatro anos. No nosso país, eternizam-se os incêndios de origem criminosa, continuam as descargas de suiniculturas e outras actividades poluidoras, a suspeita de corrupção paira sobre os diversos agentes sociais, na política, nas administrações públicas, na justiça, no futebol. A fuga ao fisco, a golpada, a transgressão, eis o que caracteriza o portuga vivaço. É a conversa da treta, o falar para nada dizer, o culto do vazio, o elogio do “chico-esperto”. Caem as pontes, morrem crianças num esgoto ou num semáforo, há imediato e indecoroso alvoroço nas televisões, mas depois nada acontece, a impunidade triunfa sempre, o crime afinal compensa.

Vivemos num país estranho que aceita com naturalidade e pateguice que cada telejornal inclua, obrigatoriamente, notícias alargadas dos treinos dos chamados três grandes do jogo da bola; um país que acha normal um banal jogo de futebol ser classificado de alto risco; um país que não se incomoda quando vê a claque de um clube ser escoltada e enquadrada pela polícia de choque, ao chegar ao estádio. Serão gladiadores a entrar no circo? O jogo, o tal de alto risco, afinal tem lugar no relvado ou nas bancadas? Murmura-se, suspeita-se que há violência, doping, arbitragens condicionadas, sorteios habilidosos. Mas ninguém abre o livro, menos ainda os que andam lá dentro, os que sabem se é verdade ou mentira. No fundo, “eles” vivem bem no casulo do tal “sistema” enquanto nós, os papalvos que pagamos quotas, compramos jornais, camisolas e cachecóis, apenas queremos é que o nosso clube ganhe. Além dos dez sumptuosos (e dispensáveis) estádios e dos gastos faraónicos, que ficou do Euro 2004?

A terra por cultivar seca ao sol do abandono, o mar está exangue, mas tal não impede que na nossa costa continuem a ser utilizadas redes de malhas apertadíssima. Não é por ordem dos burocratas imbecis de Bruxelas, somos nós, a nossa gente, aqui nas praias do nosso concelho. Agora os barcos de pesca são grandes, equipados com tecnologia requintada, mas o peixe continua a desaparecer e a culpa morre afogada à vista de toda a gente, esmagada pelas toneladas de peixe deitado ao mar.

Falamos mal e escrevemos pior a nossa língua que se vê invadida por estrangeirismos desnecessários, desfigurada por neologismos impróprios e minada pela praga das abreviaturas. Abundam as frases feitas, as conversas são formatadas, previsíveis, macaqueadas. Fala-se por monossílabos, às vezes por grunhidos. O grande semanário de referência consagra, infalivelmente, duas páginas ao culto da noite, às discotecas, aos copos, à gente dita bonita.
Daqui a vinte anos, esta geração do telemóvel, do gel, das discotecas, dos “shots”, do ecstasy, das mil licenciaturas a fingir, dos óculos vanguardistas, vai ter saudades de quê?

É possível que, entre outras coisas, recordem melancolicamente as discotecas onde começam a chegar às horas a que nós saíamos das “bóîtes” do nosso tempo. Vá lá saber-se, a cada um a sua saudade. Afinal, talvez esta visão desencantada não passe de uma cantilena para nos ajudar a aceitar melhor, com certa forma de filosofia e alguma resignação, a nossa própria degradação, o cair das folhas do Outono das nossas vidas. Coisas de velhos…

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*Publicado no n.º 37 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2005.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 28

Fortaleza*

António Cagica Rapaz

«A guarda morre mas não se rende».

Alguém o disse e a Guarda Fiscal tomou aquilo a sério. O Primeiro, Segundo, Terceiro e Praças ali estão para ficar.

Quando todos os esforços se conjugam para eliminar toda e qualquer acção militar, quando os olhos se viram para o futuro a construir, para as potencialidades a aproveitar e desenvolver, parece razoável pensar-se que o Turismo poderá ser uma magnífica fonte de receita para o nosso país.

As muralhas da Fortaleza não poderiam melhor enquadrar um complexo turístico do que albergar meia dúzia de guardas?

Quando a Fortaleza abrir um portão de estilo medieval, bem de frente, bem no fim da ladeira, mais nenhum automobilista se esmagará contra a parede obstinada. Poderia ser o primeiro passo para um turismo mais realista, mas enquanto a Guarda marcar passo adentro das muralhas da Fortaleza, não avançaremos no caminho do futuro…
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* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 19



Varrida após as eleições, vai batendo a todas, na esperança que alguma porta ZITA SEABRA...
António Cagica Rapaz


[da série Coisas]

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 27



O mar não chega à Aiana

António Cagica Rapaz

Entrámos na igreja de cima com o deslumbramento humilde e a inocência da nossa infância, com a serenidade que nos invade de cada vez que visitamos a casa onde entrámos para o catecismo pela mão do padre João, onde nos habituámos ao êxtase da missa da meia noite, à voz sonora do padre Abílio, ao relógio da torre e à procissão do Senhor das Chagas.

A igreja vazia, Deus só para nós, a paz, a luz doce dos vitrais, a frescura límpida da pia baptismal, o perfume suave dos altares, o tempo suspenso, tudo nos recorda a insignificância do que somos, o nada que valemos. O silêncio tem um peso de eternidade...´

Ao sair, olhámos o sol de frente e vimos o mar, para lá dos telhados, das mil antenas de televisão, monotonamente azul na indiferença que o hábito gera em quem nasceu com os pés na cova funda, à beira da Pedra Alta.

Sesimbra acorda tarde nas manhãs de cada domingo que vê a rua Cândido dos Reis afunilar os carros até à fortaleza para depois os despachar para a esquerda e para a direita, marginal adiante, restaurantes adentro.

A areia rija de Inverno, lavada pelo vendaval, temperada por marés mais vivas, as gaivotas circundantes, o barco solitário na quietude fresca da baía, o sol generoso irmão do mar, é domingo em Sesimbra, um hino à vida que ecoa na rua da Esperança e chega ao largo da igreja. Lá em baixo, na capela, o Senhor das Chagas aguarda a visita dos velhos pescadores que amarraram as aiolas aos bancos do jardim e se aquecem ao sol do Inverno das suas vidas.

Entre as manhãs gloriosas que vão do Caneiro à doca e o pôr do sol no Meco fica a poesia da Aiana. Ao cair da noite, a tia Fernanda acende o forno e, lá por essas dez horas, coze o pão que amassou e acariciou pela tarde fora.

No céu estrelado eleva-se um fumo de paz e cheira a pão, o bom pão da tia Fernanda. E a vontade que eu tenho é ficar à espera que ela coza, como nos anos distantes da minha infância, ali perto, nas Caixas, eu esperava, com o Julinho, que a tia Clarisse fizesse o seu pão, o nosso pão, com a farinha que eu ia buscar, orgulhoso e deslumbrado, a um moinho de que hoje apenas resta uma saudade desfeita nas paredes destroçadas, no silêncio da mó, no vento inútil que sopra por entre os escombros e dispersa a memória.

A vida é feita de coisas simples e boas, como a água cristalina do ribeiro dos Torrões, o pão do campo, o céu azul. E o mar que não chega à Aiana...

1993

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 23

as crónicas da Eventos...





AZEite*

António Cagica Rapaz

Quando fui para o Liceu de Setúbal, com 16 anos, não era propriamente uma criança, mas nem por isso deixei de me sentir pequenino naquele átrio de entrada que, na altura, me pareceu imenso. Era, provavelmente, o contraste com o colégio do Dr. Costa Marques que funcionava numa vivenda, enorme para uma família mas acanhada para um estabelecimento de ensino. Este universo quase familiar terá sido, porventura, o segredo da alta qualidade e dos tão notáveis resultados alcançados, anos a fio, sob o comando firme e competente do Dr. Costa Marques que foi, sem dúvida, um grande homem da nossa terra.

Há poucos anos voltei ao liceu de Setúbal e não pude deixar de observar que, afinal, aquele átrio era bem mais pequeno do que a recordação que dele conservara. Todos nós já conhecemos situações semelhantes, já sentimos este tipo de estranheza, a decepção perante espaços, coisas e, às vezes, pessoas que sobredimensionámos, ingénua e involuntariamente. Lembro-me de uma crónica que escrevi sobre o Duque e que conclui dizendo que acabou o tempo dos grandes homens. Aqui chegado, poderia interrogar-me: terá o Duque realmente sido um grande homem ou essa impressão deve-se à inexperiência da minha juventude? Por outras palavras, se eu tivesse pertencido à geração do Duque, será que o teria visto da mesma maneira, com os mesmos olhos?

Na mesma ordem de ideias, até que ponto somos capazes de reconhecer o mérito, o talento, a capacidade dos nossos parceiros de infância, dos nossos parceiros de escola, dos nossos vizinhos de rua, dos nossos companheiros do desporto, dos nossos colegas de trabalho? Teremos nós a franqueza, o desassombro, a grandeza de espírito ou, simplesmente, a honestidade suficiente para admitirmos, sem nos sentirmos ofuscados, ou diminuídos, que alguns dos nossos amigos e conhecidos são pessoas de valor? Às vezes não é por mal, por inveja ou despeito, mas apenas porque continuamos a ver-nos como éramos, sem sermos capazes de parar o filme, fixar a imagem, dar dois passos atrás e tomar consciência de que aquele rapaz já é um homem, maduro, feito, digno de admiração.

Foi assim, nestas coisas que me passam pela cabeça, que, de repente, tive uma percepção mais nítida da emergência e da dimensão intelectual e humana de um homem que eu teria certamente apreciado se o tivesse contemplado com os meus olhos de adolescente, como me aconteceu relativamente a seu pai, João Baptista Gouveia. O Zé, pois é dele que se trata, sempre viveu em harmonia com a natureza, desde os tempos mais felizes do alto da Cotovia. Por isso, não estranhámos vê-lo partir rumo à escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Depois, foi a ascensão brilhante no Instituto Superior de Agronomia, concluída com licenciatura e culminada com doutoramento decorrente de uma tese resplendente sobre o azeite.

Podia ser o pão, o vinho ou o trigo, mas foi o azeite, esse dom maravilhoso da Natureza que alumiou as nossas casas e as nossas igrejas, até se tornar uma presença indispensável à nossa mesa, cada vez mais, reconhecidos que estão a ser os méritos da chamada cozinha mediterrânica. Há anos, em França, à falta de manteiga, resolvi estrelar ovos com um fio de azeite. Improvisação que me trouxe uma revelação comovente, ao reencontrar um gosto de infância, o dos ovos assim feitos pela minha mãe. Ainda vejo o António, na mercearia do senhor Arménio, a dar à bomba, igual à da gasolina, para encher o cilindro transparente logo iluminado por aquele líquido verde, espesso, feito de mil bolhinhas fascinante. Bem fez o Professor José Gouveia ao escolher o azeite, a menos que tenha sido o azeite a escolhê-lo, nomeando-o sacerdote do templo, celebrante supremo de um culto que talvez tenha entrado na sua vida pela mão fina e generosa do senhor Braguez, pai da Carolina, linhagem distinta do Alentejo. O azeite conferia gosto e nobreza aos míticos carapaus secos da nossa idolatração, cozidos de água e sal ou, melhor ainda, grelhados na brasa como me presenteou o Jorge, num domingo de chuva, na velha adega, em Outubro de 69. No alambique caía, pingo a pingo, a inigualável “Patricius”, o dedo do mestre Jorge, a assinatura do tio Jó…

O Professor catedrático José Gouveia atingiu um estatuto elevado, é hoje uma autoridade reconhecida internacionalmente.

Mas isso pouco importaria se ele não fosse como é, um homem admirável, digno da imagem que todos conservamos do pai.

Ao mesmo tempo, casado com a doutora Cristina, pai de quatro filhos, participando empenhadamente na vida colectiva, sempre em contacto com a natureza, no seu trabalho, no lazer e prazer da caça, o Zé tornou-se, sem querer, sem dar por isso e por sua vez, num patriarca tranquilo, com o Chico a seu lado tal como o pai tinha o Jorge, no mesmo círculo de amizade e afinidades, a mesma filosofia de vida.

O Jorge teria gostado mais de ver o Zé consagrar-se ao vinho que nos põe calorzinho da alma, brilhozinho no olhar e, às vezes, um grãozinho na asa. O Chico é uma personagem maravilhosa, o único à altura do tio Jorge, um amigo tão puro como o azeite extra virgem…
Com a sua aura, o seu olhar sereno, a dignidade, o Zé Gouveia é uma personalidade destacada que honra a nossa terra. E, ainda por cima, tem um belo rosto de profeta ou príncipe árabe, o malandro. É verdade, uma verdade que está bem patente, que vem, ao de cima, como o azeite.

Afinal, o tempo dos grandes homens não acabou…
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*Publicado no n.º 12 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2001.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

NOTAS & NOTÍCIAS, 4

Um lapso

Por lapso, a crónica aqui publicada na passada segunda-feira - A "ténica" e a pertinácia - na rubrica Noventa e Tal Contos ainda não era a devida segundo a ordem que resulta deste livro, e que temos vindo a observar. Foi já, por isso, substituída por aquela que devia agora ser publicada: Os Cantoneiros. Aos leitores, e em particular ao Luís Milheiro, que havia já comentado o escrito, as nossas desculpas.

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 27


Outono*


António Cagica Rapaz

A vida tem destas curiosidades e sucedeu-me aprender a ler com a professora do meu pai, D. Rosa Manão, vindo a fazer a 4.ª classe com a mestra de minha mãe. D. Beatriz Palmela.

Na Rua de Alfenim havia duas escolas particulares, a da Rosa Manão e a da Maria da Arrábida, vizinhas e rivais. À beira delas morava o António José Parada Gomes (e se a memória não me falha) que sonhava vir a ser um grande guarda-redes, como o Carlos Gomes. Teve a terminação e ficou pelo sonho…

Sonho bonito foi também o da Maria Augusta e do Raul que lá começaram a namoriscar até formarem um casal modelo, exemplo admirável das coisas bonitas que a vida por vezes proporciona. Começaram muito cedo e não resistiram ao desgaste dos anos…

E foi pena, por eles e por nós que assim vimos esfumar-se um pouco do sonho, da admiração e da ternura que sentíamos.

Não se trata de emitir juízos nem atribuir culpas (com que direito?) porque nestes casos perdem os dois. E perdemos nós que gostamos deles. É um pouco como quando descobrimos que o Pai Natal afinal não existe. Ou que não adianta ir com o banquinho de madeira até aos Bombeiros esperar uns reis que nunca virão…

Da Rua de Alfenim fui para a escola Conde de Ferreira onde me esperava na 1.ª classe uma sala enorme e o perfil de águia do Professor Amável.

Na intimidade da casa sombria, a Rosa Manão era uma galinha velhota que protegia os pintainhos mijões que passavam o dia a pedir «Minha senhora, posso ir lá dentro?» Lá dentro era a tigela da casa…

A escola Conde de Ferreira era outro universo, com as suas grades, as batas brancas, escola oficial, quase tropa.

O meu parceiro de carteira era o António Sebastião Vieira Fidalgo que, mais tarde, viria a ser meu companheiro de equipa de juniores e cúmplice de namoro. O Professor Amável era um olhar penetrante, gesto seco, discurso breve e cortante, régua violenta e bofetada pronta. O terror. Muitas vezes abalava para o Café Central para discutir futebol e deixava o Acácio Gaspar de espia, de pé, no estrado a ver quem falava. E a apontar no quadro os nomes. Bem lhe dizíamos que é feio apontar, mas ele apontava. E quando o Professor voltava era tudo menos Amável para com as vítimas…

Métodos de outros tempos que apenas nos deixaram uma vaga noção de disciplina imposta pelo medo da régua e um perfume de nostalgia que nem chega a ser amarga porque, a esta distância, só nos lembramos do sol, das tangerinas, das jogatanas e da praia. Nunca mais voltaremos a ter sete anos…

Depois tive a meiga D. Emilinha, a metódica D. Ernestina Cifuentes e, por fim, a temível D. Beatriz.

A escola feminina, em frente da minha casa, albergava no Verão colónias balneares e as meninas desfilavam entre a escola e a praia cantando tristemente «Eu não vou para o meu pai nem tão-pouco para a minha mãe, a senhora D. Alice trata a gente muito bem…»

Talvez nem fosse Alice, mas não faz mal. Importante é conservar esta e outras recordações. Talvez valesse a pena que cada um puxasse pela memória e enviasse para o nosso jornal quadras cantadas nas rodas do recreio ou à volta das fogueiras, o «Jardim da Celeste», Adelaide Adelaidinha tua mãe está-te a chamar», Rosa branca ao peito a todos vai bem, à menina Candinha olaré melhor que a ninguém»…

Estas e muitas outras são peças do nosso património cultural e, sobretudo, afectivo. Não serão talvez criação local, talvez pertençam ao cancioneiro popular nacional, mas eram cantadas nas nossas escolas, nas nossas ruas, fazem parte da nossa vida.

Por isso volto a fazer a sugestão à minha tia Lucinda e a todos quantos conhecem quadras e cantigas. Não as levem para a cova, deixem-nas cá, elas fazem-nos falta…

Por vezes penso que estas coisas podem parecer um bocadinho piegas, em especial quando lidas num café barulhento, com a televisão aos berros, as conversas ruidosas, a agitação ensurdecedora deste tempo que atropela a poesia. Mas um jornal como o nosso também fica um mês na mesinha da sala, naquele canto onde nos refugiamos quando queremos viajar no mundo dos sonhos e das recordações. Os leitores que vivem longe de Sesimbra precisam de reviver, reencontrar um paraíso distante, um rosto, um nome, poeira de um universo que é o arco-íris, caleidoscópio, filme em trinta e uma partes, com o cheiro da lota, os gritos das gaivotas, o recorte da jangada, a água doce, os passadiços, o Parque, o pão quente nas madrugadas da lonjura no tempo…

É isto e muito mais, é o que cada um conservou em si, de forma mais ou menos consciente. O nosso jornal é particularmente importante para os leitores que estão longe, que o abrem com avidez e febrilidade, procurando notícias de Sesimbra, talvez das sessões da Câmara, mas muito mais certamente das pessoas, da gente da nossa terra.

As pessoas são o pior e o melhor que existe em Sesimbra. O pior quando só vemos a inveja, as intrigas, o rei na barriga e a carteira no mastro mais alto. O melhor quando sentimos a franqueza, a fraternidade, o amor pelo mar, o apego a valores simples e o gosto por coisas belas que gostam de partilhar. Por isso, meu caro Doutor e amigo David Sequerra, permita-me que acrescente algo à sua sugestão relativamente às «Figuras Inesquecíveis».

Por mim, simplificaria a fórmula, nem esquecidas nem inesquecíveis, apenas Figuras. «Figuras» de ontem, «Figuras» de hoje e mesmo «Figuras» de amanhã, pois seria bom irmos transmitindo aos nossos jovens aquilo que, talvez ingenuamente, pensamos ser uma certa filosofia ou culto de Sesimbra, que vai dos azulejos à sopinha de pelim, do Senhor das Chagas à Senhora do Cabo, do alecrim ao peixe seco, das sacadas extintas ao fantasma das armações que continuam a chegar à tardinha à praia da nossa saudade…

O Capitão Domingos é uma Figura, o Duque é uma Figura, o David Saloio é outra Figura. E o Luís Passos Leite, o Zé Bagaço, o Aurélio, o Zé Manel Torres Batista, o Jorge Aranha, o Chagas, o Eng.º Eduardo Pereira, o Jacinto «Maneta», a Felicidade, a Manuela do Caminhão, o Alfredo Pinto, cada um deles, à sua maneira, evoca algo de importante, para alguns de nós, faz parte do nosso passado e do nosso imaginário, como agora se diz. Há mil Figuras e Sesimbra vive por elas, através delas, graças a elas.

Elas são Sesimbra.

É certo que o presente não é só droga e desencanto. É claro que o passado não foi o paraíso que idealizamos com retoques saudosistas. E é evidente que somos uns piegas desgraçados. Mas como é bom ser pequenino (como cantava o Zé Manel), como é bom ser piegas (como repetia o António do Porto) e como é bom Sesimbra no Outono…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense em Dezembro de 1992.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 18



Se não são utilizados, os instrumentos desafinam e depreciam-se. Por isso mesmo, Nero, que raramente tocava, deixou desvalorizar a lira...
António Cagica Rapaz


[da série Coisas]

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 26




Os cantoneiros

António Cagica Rapaz

O carro do Caretas, conduzido pelo Manel Estêvão, arranca do largo da igreja às oito e vinte. Vai em primeira até passar em frente da porta da sacristia e, aí chegado, enfia a segunda que o motor recebe com alívio, ganhando ânimo novo. Para trás ficam o Chico da Cooperativa e a rua Cândido dos Reis que desce até à praia onde a lota já se agita.

As traineiras começam a chegar e as gaivotas volteiam, enchendo a manhã com os seus gritos de festa. Os guardas-fiscais, em passo pausado, descem da fortaleza enquanto as mulheres do campo vão chegando à praça onde o Cebola já arrumou os caixotes da fruta. E o carro do Caretas segue rumo a Cacilhas. Depois da paragem em frente da pastelaria das delícias, em Santana, é o posto da polícia que surge no horizonte. O Mau-Mau consulta o relógio, verifica a pontualidade e vira as costas, com o ar ameaçador do costume. A Cotovia já está à vista e, antes da Venda Nova, o carro da carreira ultrapassa um ciclista de chapéu de aba larga. É um cantoneiro...

Um pouco mais à frente, dois homens arrumam as ferramentas, tranquilamente, junto a um soberbo pinheiro manso. Na suavidade da manhã, o sol já brilha sobre os cumes da serra da Arrábida, e o Manel Estêvão acelera. Os cantoneiros ficam, o tempo parou ali...

Na carreira vão os apressados empregados de escritório, como o Guedes, marido da Dona Ernestina que, a essa hora, está a entrar na escola Conde de Ferreira. Vão também os doentes com consulta marcada no hospital dos Capuchos. Os cantoneiros ficam. Para eles o relógio é o sol que viaja devagar no céu azul, acariciando as nuvens, aquecendo o mar, do Caneiro à doca. Um deles vai buscar uns cavaquitos enquanto outro já coloca as pedras em posição de suportar as marmitas. Os carros do peixe não vão tardar a passar em direcção a Lisboa, deixando no alcatrão um rasto de água salgada e gelo a derreter. Sentados, em equilíbrio nos taipais, vão o Zé Baúte e o Manão. Os cantoneiros ficam...

No Verão, o calor do sol e do alcatrão da estrada são um tormento, mas nas manhãs frias de Inverno sabe bem fazer uma fogueira. O garfo atravessa as batatas, o bacalhau está cozido. Os chapéus de abas largas são colocados ao lado, as ferramentas encostadas. A garrafa de tinto à mão de semear, o frasco do azeite, o dente d’alho, a fatia de pão caseiro, o ar puro dos pinhais e o silêncio da estrada adormecida. A essa hora, os empregados de escritório correm para o restaurante habitual na rua dos Sapateiros e os doentes definham na sala de espera dos hospitais...

A tarde desce morna e serena, a estrada retoma o seu movimento enquanto os cantoneiros prosseguem, tranquilamente, o seu trabalho entre duas frases e uma pausa, junto à berma. Para eles, o tempo escoa-se docemente. O carro da carreira está de regresso e já ataca, ruidoso, a subida para a Cotovia. Depois será Santana e, por fim, Sesimbra, à hora da lota, desta vez com o sol a esconder-se por trás do farol.

Os empregados de escritório regressam esgotados, dormem o caminho todo. Os doentes contam, em voz bem alta, os pormenores das doenças, dos medicamentos e do enjoo no barco de Cacilhas. Um bebé chora e o Manel Estêvão acelera. Pela beira da estrada, no crepúsculo ameno que Deus dá, os cantoneiros levam pela mão a bicicleta dolente. A patroa já pôs o jantar ao lume e, na Charneca da Cotovia, uma ligeira neblina começa a descer sobre os telhados de cujas chaminés se eleva um fumo alvadio que anuncia o calor do lar e convida a regressar a casa...

Os carros rolam cada vez mais depressa nas estradas cujas bermas os cantoneiros desbravam e arranjam. Os homens correm e olham em frente, mais depressa, sempre mais depressa, sem se darem o tempo de apreciar o nascer do sol, o voo das aves. Os cantoneiros ficam a beira da estrada e, de vez em quando, têm um olhar nostálgico onde haverá, porventura, uma recôndita vontade de partir. Mas acabam por ficar, por rotina, por medo do desconhecido, dos desafios da vida. E nunca saberão que, com eles, fica a poesia...

1982

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 22

as crónicas da Eventos...





O stick mais alto que o ombro*

António Cagica Rapaz

Era em Maio, o defeso começava a ameaçar o futebol e chegava a época do hóquei em patins. E é em tudo assim, cada coisa a seu tempo…

Ao longo do ano, mão invisível inscrevia em paredes irreais o calendário das brincadeiras. Ninguém sabia como acontecia, quem dava a voz de comando, mas os períodos sucediam-se, ordenadamente, como as estações do ano, como as marés, agora era a placa, amanhã as bolas de aço, depois o arco e a gancheta, mais logo o alho, as linhas, o còcalha…

O jogo da placa requeria uma escolha prévia dos passeios e a consequente selecção dos módulos a utilizar consoante as características do piso e do fim em vista. As mais “santinhas” de todas as placas (em Lisboa chamavam-lhe caricas) eram as das garrafas de Água de Castelo, recheadas com casca de laranja, papel ou, até, chumbo derretido.

Cada placa tinha uma missão específica, conforme a largura, o comprimento, a inclinação e o acidentado da berma. Umas eram leves e ágeis, galgavam as barreiras formadas pelas placas dos adversários e cortavam a meta distante de um só fôlego. Outras, como as de chumbo, serviam para avançar cautelosamente em pisos escorregadios e irregulares, bem como para desafiar as mais leves que, após o embate, iam pela borda fora, rumo à sarjeta, por vezes. Mal dávamos por nós e já a tal mão invisível apontava o caminho da escola de Santa Joana de onde começava a chegar o som metálico das bolas de aço movimentadas pelas palhetas hábeis dos “borrugas”, especialistas nos cabos e nas embocadelas, prudentes a evitar a “marré” e certeiros nos lançamentos à bola que até estalava na “muda”…

Mas, não divaguemos, Maio era o hóquei em patins, o fascínio dos torneios de Montreux, o deslumbramento da rapaziada e dos adultos, todos unidos na grande aventura, presos aos relatos da Emissora, à porta do tio Chico da Cooperativa. Solta só a fantasia, na vã tentativa de imaginar o ambiente escaldante e empolgante daquele ringue mítico onde a equipa suíça jogava com o apoio do seu público e com algumas tímidas ilusões justificadas pela valia dos irmãos Pierre e Marcel Monney. Os italianos eram os eternos terceiros, apesar da galhardia dos guarda-redes Bólis e Cataletto, do Prinz, do Brezigar, do Marcheto ou do Panagini.

A final colocava sempre frente a frente Portugal e Espanha, a temível Espanha, com o insuperável guardião Zabalia, Soteras, Trias, Más, o lendário Orpinelli, o talentoso Puigbó, o Gallen e outros valorosos jogadores. Na geração seguinte pontificaram, na baliza, o imenso largo e, na frente, o diabólico Rocca. Do nosso lado estavam todos quantos figuravam naquela enorme fotografia que o tio Chico tinha na cave do ping-pong e do négus. Eram o Emídio, o Cipriano, o raio, o Edgar, os primos Jesus Correia e Correia dos Santos, o Sidónio. O resto era a paixão, a vibração delirante com os golos de Portugal nas vozes arrebatadoras do Artur Agostinho e do Amadeu José de Freitas que ecoavam no silêncio da igreja de cima, pela noite fora.

No dia seguinte, íamos, timidamente, até aos Bombeiros onde o tio Elias observava com desconfiança e severidade os quatro ou cinco felizardos que possuíam patins e se exibiam enquanto os outros ficavam à espera de um gesto bondoso para uma voltinha apressada. Jogar hóquei estava fora de questão, não havia espaço nem patins suficientes. Algumas tentativas à revelia do Tio Elias acabavam com vidros partidos e debandada precipitada… Restava-nos o mistério e a sedução dos relatos, um perfume de magia na vertigem da velocidade dos hoquistas, o malabarismo, a execução fulminante, os golos em catadupa, sempre goooooolos de Portugal. A geração seguinte, com o Matos, Edgar (ainda), Cruzeiro, Lisboa e Perdigão também nos entusiasmou. Mas o mais fabuloso foi o quarteto laurentino formado por Moreira, Adrião, Velasco e Bouçós, a que se juntavam o eterno Edgar e, definitivamente, o admirável Vaz Guedes.

Por vezes, dou por mim a pensar que os jovens de hoje têm muita sorte porque lhes são oferecidas todas as condições para a prática do belo desporto que é o hóquei em patins. Contudo, não sei se alguma vez os terei invejado. É verdade que eles dispõem de ringue, patins, sticks, tudo como deve ser, real e concreto. Mas nós tínhamos o sonho, a fantasia, a imaginação que nos levava a improvisar apetrechos, a inventar golpes duplos na marca de canto à porta da escola de Santa Joana, a anular golos porque o Pedro levantara o stick mais alto que o ombro. Em verdade, nunca chegaremos a saber ao certo se, lá bem na linha de fundo, apenas fingimos ou se acreditamos mesmo que aquele sonho de meninos pobres é melhor do que a realidade actual. Provável é que só procuremos consolação, irrecuperável é a mocidade que perdemos, ao longe, no mar. Sorte terá, porventura, o Amílcar que conserva o mesmo papagaio que o pai Chico tinha no café, com poleiro na primeira fila, testemunha privilegiada de acontecimentos memoráveis. O Amílcar já dobrou o caso dos setenta, é um bocadinho mais velho que o “louro”, e quando passa no largo da igreja, a caminho de casa, mal consegue disfarçar a emoção diante da “Ginjinha Coelho” para sempre encerrada. E não me admira que, a meio da noite, ainda acorde, de vez em quando, com o papagaio a gritar “Goooooolo de Portugal”. Então, o bom Amílcar corre, excitado, a acender a velha telefonia, sintoniza a Emissora e põe o som bem alto, mais alto que o ombro, mais alto que o sonho…

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*Publicado no n.º 9 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2000.