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terça-feira, 30 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 4




Águeda*

António Cagica Rapaz

Era uma manhã bonita, cheia de sol, gente na rua, disponível, disposta à cavaqueira, no ar um perfume de maresia suave, sábado glorioso.

O sábado é o melhor dia da semana, vale por dois, temos uma sensação de eternidade, liberdade, tempo infinito, a manhã pode espreguiçar-se, o almoço pode esperar, a tarde envolve-se com a noite e esta não tem fim, amanhã é domingo.

O Carlos Batista ia às compras, mas ficou por ali, sem pressas, na conversa, por pouco deixava fechar a praça, enrolado nas malhas do diálogo saboroso, deleitado na frescura da manhã. Era um daqueles momentos que nos apetecia prolongar, mas nem mesmo aos sábados fugimos às obrigações. E foi durante aquela conversa que me entregou fotocópia da carta de uma leitora que vive na África do Sul. Meti-a no bolso, para leitura posterior, na Aiana, à sombra dos sobreiros, sem imaginar de quem fosse.

Ora, a autora da carta tem um nome invulgar, Águeda, nome de terra, e não me pareceu familiar, a não ser quando se referiu ao irmão. Então, sim, pude situar no tempo as imagens que vinham desde a rua da Fé, passavam pela rua do Forno e acabavam na garagem da Dona Beatriz que servia de escola onde tive por bom companheiro o Luís, rapazola cujo pai teria um fraco pelos rebuçados… Teve a Águeda a bondade e a paciência de escrever ao Director deste jornal e de me dirigir algumas palavras simpáticas que não só me deram muito prazer como me forneceram assunto a que tento dar forma aceitável, assim mesmo, sem rede, perante vocências, neste namoro que vamos mantendo uma vez por mês, da rua para a janela da mercearia do senhor Arménio onde ficam expostas dias a fio, à torreira do sol, coitadinhas, ao pé do bacalhau demolhado, a primeira e a última páginas d’O SESIMBRENSE, que é um dó d’alma, coisas do Carlos Batista a que o António fecha os olhos e abre a montra. É um namoro à antiga, à distância, com pudor e circunspecção, o respeitinho é muito bonito.

Ah, a rua da Fé, o inesquecível e inconfundível perfume da mercearia do Fernando Rasteiro e da Dona Aldegundes.

Era um cenário único, a cocheira ao lado, a mula e a carroça, o campo e a vila a dois passos do mar, à sombra da torre da igreja de cima. A caminho da escola, rua do Forno fora, habituei-me a passar em frente à oficina do tio Elias, parando sempre à porta para respirar fundo e aspirar o cheirinho da madeira, contemplar o universo fascinante que aprendi a conhecer com o meu pai que, de vez em quando, me levava ao Corpo de Marinheiros. Era uma excitação maravilhosa, ia no carro da carreira, de pé, ao lado do motorista, quando era um compincha que me deixava carregar com o pé no botão da buzina ruidosa, antes das curvas fechadas. O pior era o Mau-Mau, em Santana, no posto da Polícia. E lá voltava eu ao meu lugar. Depois era o desfilar dos pinheiros, estrada fora, até ao Laranjeiro e a entrada ufana pelo Portão Verde. Miúdo deslumbrado, brinquei dias inteiros na oficina sob o olhar atento e ternurento do meu pai, sargento artífice carpinteiro, todo eu orgulho e felicidade com perfume a madeira.

Ora, na rua do Forno, ao lado da oficina do tio Elias, havia uma casinha onde trabalhava um sapateiro a quem eu deitava um olho apressado, porque o meu sapateiro era o tio Joaquim Sobral e eu permanecia fiel ao seu estaminé pequenino, com os banquinhos minúsculos de escola infantil, os passarinhos na gaiola, o cheiro a cabedal e as canas de pesca lá dentro, à espera da segunda-feira, dia sagrado de epopeias nos rochedos do Caneiro.

Pois este sapateiro da rua do Forno tinha duas filhas, uma que viria a casar com o Cabecinha e outra com o Júlio Laranjeiro dos Santos, mais conhecido por Júlio Galgão, meu amigo de longa data. Mas tinha também o nosso homem um filho, um calmeirão de físico impressionante, com ombros largos, tronco em V, um atleta admirável que namorava a irmã do Luís, meu companheiro de infortúnio na escola-garagem da D. Beatriz. Era em 1954, talvez, numa altura em que o Camilo não sonhava com o restaurante Baía. Era carpinteiro naval e o único serviço de restaurante era assegurado pela mulher que, a meio da manhã, ia levar uma cafeteira de leite e um pãozinho com manteiga ao menino Luís que entrava às sete. Não, não insistam, não volto a narrar o mistério das flores que murcharam prematuramente nem outras histórias sombrias…

Lembro-me do falecimento da mãe do Luís e da partida para África da irmã, a Águeda, que casou com o calmeirão musculoso e esbelto.

Tanto quanto me recordo, ela era magrinha e cheguei a pensar que se quebraria em mil bocados nos braços poderosos daquele colosso. Pelos vistos (e lidos na carta) não só sobreviveu como lhe deu três filhos. E, sobretudo, é feliz, Deus os continue a ajudar. Teve ainda a Águeda força e ânimo para nos escrever, grande ideia, porque nós pensamos em todos os sesimbrenses que vivem longe, sabemos como é agradável receberem o nosso jornal.

Por estas e outras razões, a nossa modesta gazeta pode chegar a ser desejada, por trazer em si um pouco de todos nós, porque é nossa, porque nos diz respeito, fala de nós, nos chama pelos nomes, pelos apelidos e, até, pelas alcunhas, nos põe na berlinda, nos desafia para a desgarrada, nos empurra do Passadiço na maré cheia, nos dá uma amona, nos bate nas costas, nos dá um abraço, vai connosco atrás da procissão, faz parte da nossa vida. Por tudo isso, nos preocupamos com ela, procuramos fazê-la bem, deixando-a pronta para sair, de risco ao lado, páginas com vinco, toda catita na sua fatiota de plástico.

Se nos falta assunto, olhamos em volta, basta isso. Há pouco tempo, caminhava eu junto ao muro da antiga lota quando ouvi alguém cantar o fado, baixinho. Aproximei-me e meti conversa com o homem. Falámos disto e daquilo e, entre duas frases, lá ia mais meia de fado, sempre com um sorriso tranquilo. Tem 94 anos, quase um século às costas que virava ao mar, ali no muro da lota, num domingo de manhã, sorrindo à vida. Neste mundo de descrença, de desamor e de vazio, é quase um milagre. Era o pai do João Mau…

Nós sabemos que, friamente vistas as coisas, pouco ou nada valemos nem representamos neste universo a abarrotar de jornais diários, semanários, múltiplas revistas, inúmeras rádios, canais de televisão e Internetes. Não tenhamos ilusões, somos uma gota de água, insignificante e frágil, é a nossa fraqueza. Mas é água da Califórnia, água pura, com o sabor das nossas raízes, da nossa memória, da nossa paixão, do nosso mundo interior e anterior. É a nossa força.

E quem recebe o nosso jornal, lá longe, fecha os olhos, vê o mar a beijar a areia, o farol a piscar o olho ao cair da noite, e o castelo recortado no nevoeiro de um Setembro farto de sol. Mas quem está longe também aborda com receio e certa angústia a página da necrofilia. Abruptamente, pode dar com o nome ou a fotografia de um familiar, um amigo, o companheiro de carteira da segunda classe. Quem vive em Sesimbra passa junto à montra d’O Sesimbrense e fica a saber quem morreu.

O Zé de Matos andava feliz, enfim reformado, livre para poder saborear Sesimbra fora de horas e de dias de constrangimento. Livre para ver partir os visitantes ao domingo, pela tardinha, e no fim do Verão. Livre para ir com o Gil, o António Mateus e o Júlio Galgão, ao banho, na praia deserta das segundas-feiras, sem pressas, sem encontro marcado a não ser com as marés cheias de amizade e nostalgia, regresso ao desprendimento, às manhãs benditas que só acabam na Galé, com pimentos e peixe-assado. O Zé de Matos lia o nosso jornal e, de vez em quando, no muro da lota, na esplanada do Central, dava-me dois dedos de conversa, com futebol à mistura.

Há bem pouco tempo ainda, falava-me dos nossos pais, sugeria-me que não esquecesse, um dia, de referir que eram amigos. Prometi fazê-lo quando arranjasse ideia que permitisse encaixar essa nota. Nunca pensei que fosse tão cedo, que tão cedo se fosse o Zé de Matos, que tão cedo tivesse de falar dele no pretérito. Mas é assim, acontece, de repente, quando a vida parece ser um caminho ainda longo a percorrer.

E essa mesma (será?) vida vai continuar, sem ele, sem todos quantos nos vão deixando. E o nosso jornal?

O nosso jornal só obedece aos apelos do coração e basta-nos saber que algures, na África do Sul, a Águeda e os seus nos lêem com prazer.

E imagino o Zé António, na fria Alemanha, percorrendo O SESIMBRENSE, à procura de um nome conhecido, de uma referência à Torrinha, às imperiais e às navalheiras do Gil, aos rescaldos dos jogos do Benfica em debates quentes com o Hélio e o Vítor Batista, ao perfume dos eucaliptos do campo do Desportivo, com a camisola do Espadarte e o elegante Cardim na baliza.

Por isso, por eles, por outros, vamos escrevendo, enquanto é tempo, admitindo que não será inútil, aproveitando temas e ideias, inventando, sonhando, improvisando, tudo para que o nosso jornal continue a ser o toldo do jogo do prego, as escadinhas da rabeça…

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*Publicado originalmente na edição de Maio de 1997 de O Sesimbrense.

segunda-feira, 29 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 3




Portão verde

António Cagica Rapaz

O pátio é pequeno, pavimentado a cimento bruto, o pio da roupa num canto, um armário velho perto da janela, a gaiola do pintassilgo junto à porta e meia dúzia de vasos alinhados contra a parede.

De Inverno, o menino costumava encostar-se às vidraças, a olhar a chuva, horas a fio. A água escoava-se pelo rego, era a descer, para a rua, até ao mar que rugia lá em baixo, na cova funda. Por vezes, em dias de vendaval, quando as ondas galgavam a muralha, imaginava que o mar pudesse subir a rua e entrar pela casa dentro. Mas logo se sentia reconfortado e em segurança, ao contemplar o portão verde, de madeira rija, que resistira ao ciclone.

O pátio era o seu mundo, trazia do quarto os barcos de madeira e de cortiça, o carro de corda, os cubos da Majora, os livros velhos do pai, as bolas de aço e a palheta, as placas e os botões. Instalou o quartel num canto, junto à janela do quarto, armado com tábuas e folhas de zinco da Sopa. Isolou com barro amassado, a chuva não entra. Lá fora, o vento medonho, o mar estrondoso. E ele no quartel, aconchegado e seguro. Que viesse chuva, que roncassem as vagas, que assobiasse o vento, ele estava a salvo, no pátio, a casa ao pé, a mãe na cozinha, com o candeeiro aceso, o feijão com arroz ao lume. Só faltava o pai chegar para o mundo ser perfeito…

O portão da escola também era verde, mas de ferro. E havia grades à volta deste outro pátio, o de recreio. À sala de aulas, pelas janelas abertas, chegavam o chilrear dos pássaros, no jardim, vozes de mulheres que voltavam da praça e o ruído do motor de algum carro vagaroso. Ao longe, a serra, a tentação da evasão, olhares rápidos, ânsias de liberdade, apelos da praia, medos da régua, êxtases proibidos pela tabuada e pelos ditados. No livro de leitura, a contemplação repetida e sonhadora da página da lição sobre o luar de Agosto, o lavrador e a família, de mãos dadas, em contraluz, a bola branca enorme no céu azul escuro, imagem ideal, a paz, a pureza das coisas belas e simples…

O portão verde fecha-se à boca da noite. Pela janela da cozinha escoa-se uma luz doce que ilumina parte do pátio. A mãe já chamou, já é noite, está a arrefecer. Depois de jantar, o menino espreita pela janela do quarto. No canto, lá está o quartel, berço de sonhos, domínio intransponível, barca de navegações imaginárias, cantinho, retiro, esconderijo, jardim secreto. O mar está calmo, o céu sereno, e o portão verde, eterno e forte, protege a casa, garante a paz, aconchega e tranquiliza. O menino adormece com um sorriso nos lábios…

1998

sábado, 27 de março de 2010

TALVEZ POESIA..., 1


Rua das Janelas Verdes*

António Cagica Rapaz

É minha esta rua esguia
Triste e nua,
Mais sombria
Do que a tua,
Lavada em cada manhã
Por um sol de Primavera.
Melhor sorte eu tivera
Se, por acaso, nascera
Na tua rua, não era?
Se, por acaso me deixassem
Ter uma casa daquelas
Onde os meus pais me esperassem
E fossem verdes as janelas...

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* Recolhido no capítulo Talvez em Setembro, Talvez Poesia..., do livro Conversas Com Versos e Com Ventos, de 2008, este poema, seguramente um dos últimos escritos pelo autor, surgiu inicialmente publicado, com ligeiras variantes (que abrangem o próprio título), no blogue Sesimbra e Ventos, no dia 25 de Abril de 2006.

quinta-feira, 25 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 3


A Cotovia* (2.ª e última parte)

António Cagica Rapaz

Por uma bela tarde de verão, a tia Stella tomou corajosamente o volante do velho Anglia preto e a expedição arrancou com destino à longínqua Cotovia. Estaríamos talvez em 1953 e o tio Jójó tivera a insólita ideia de construir uma casa naquele ermo, longe do mundo civilizado que assentava arraiais no Central e no Grémio. No seu desejo de evasão fora acompanhado pelo tio Né, o Hernâni Baptista, garboso comandante dos Bombeiros que no meu espírito evocava igualmente a fábrica de conservas da Caveira.

A Cotovia era outro mundo, um castelo de aventuras dos cinco que em casa do tio Jójó eram três. Com o Luís Filipe eram quatro, como os três mosqueteiros. O Luís Filipe era o pupilo do Exército muito digno no seu uniforme, sempre de sobrancelha carregada e dons apreciáveis para o desporto. Eu desembarcava naquele universo, com admiração e deslumbramento. As bicicletas, as espingardas de pressão de ar, os mil brinquedos que nunca tive, uma lareira, um ar de festa, uma felicidade contagiante, tudo me deixava seduzido.

Mas a vida é cruel e naquela Cotovia maravilhosa, apesar da protecção sadia dos pinheiros, naquele presépio de sonho, o Luís Filipe viu partir a mãe numa idade em que se não é suficientemente forte para achar normal nem tão infantil que não se fique traumatizado. Vi e senti a alguma distância o seu drama, a sua revolta, a injustiça de um destino que parecia cor-de-rosa…

Nas nossas corajosas pescarias na doca, encavalitados num colchão de borracha (sem sabermos nadar), ou perto do calhau da Cova com o Padre João, nunca nos debruçámos sobre questões de ordem metafísica. Apenas nos habituámos a entender-nos sem grandes conversas, numa complementaridade que não mudou. Ele fala pouco, eu não me calo e ambos pensamos o mesmo, sentindo de igual forma. Chama-se a isto amizade, cumplicidade. Regista-se. Não se explica. Terá sido essa cumplicidade que me levou a ficar em sua casa nessa tarde em que, como dizia, a tia Stella conduziu a expedição à misteriosa Cotovia. O entusiasmo foi enorme e alguém lançou a ideia de irmos armar aos pássaros no dia seguinte, de manhã. Para tanto era melhor ficarmos para dormir. E ficámos. A minha irmã até acabou por ficar na família. Para mim era mais difícil, já que eles eram todos machos, na Cotovia…

Aí nasceu a minha paixão pela Cotovia, ou melhor, por uma certa forma de vida, por uma atmosfera especial que ali se respirava. A Cotovia era a fuga ao bulício de Lisboa durante a semana e à agitação de Sesimbra ao sábado e domingo. Era um retiro, um paraíso, uma estalagem, um convento, uma coutada, uma mansão, um oásis.

As primeiras chuvas do Outono desencorajavam os últimos turistas. Era o momento de voltar a vestir as camisolas grossas que a tia Fernanda fazia à mão. O vento, arauto do inverno, trazia consigo um gosto impreciso que a chuva revelava. Era chegado o tempo do peixe seco, dos carapaus doirados ao sol do verão. O apelo era irresistível e aposto que o tio Jójó não trocaria os primeiros carapaus secos do Outono por uma lata de caviar. A tradição venceu os anos e passei dos melhores domingos da minha vida na Cotovia com os da casa e o Luís Filipe que vinha dar uns toques cabazeiros nos matraquilhos onde ele e o Joca era fregueses certos do Zé e deste vosso servidor. Enquanto a Carmelinda e a tia Fernanda limpam a loiça, o António adormece agarrado à telefonia a ouvir o relato e o tio Jójó troca dois dedos de conversa com o Jorge até o Chico chegar.

O compadre Artur não deve tardar e o tio Nuno vê-se aflito com a «Miss» que procura cravar o dente no pudim que vai acompanhar o café por sua vez iluminado pela espectacular bagaceira «Patricius», segredo do mestre Jorge. O Jorge é o último fidalgo proletário da Cotovia, o último patrício de casta antiga, com a sua filosofia pura da vida que ele manobra com fleumática e cativante sabedoria.

O tio Jójó é o meu senhor feudal que não ergue a ponte levadiça como fazia Conrado, o lobo, o vilão das aventuras do Cavaleiro Branco, Jean de Dardemont, que eu devorava com avidez.

Na Cotovia eu encontrava recriado o ambiente medieval com um senhor feudal bondoso, apaixonado pela caça e pelas artes. O seu castelo estava sempre aberto aos amigos, vassalos ou suzeranos, peregrinos (como eu) de passagem ou membros da numerosa família.

O Jorge nunca tinha fome, já tinha sempre comido mas acabava infalivelmente por petiscar qualquer coisa connosco.

O compadre Artur deixou ao António uma recordação inolvidável com as sardinhas que trouxe de Cascais naquela almoçarada pantagruélica em que o admirável Duque se juntou à nobreza da casa.

O serviço militar é uma viragem na nossa vida. Em vésperas de entrar em Mafra almocei carapaus secos com o Jorge no Casal, à beira do alambique. Foi o fim de uma época, de um capítulo de aventuras, como se eu, leitor do «Cavaleiro Andante», tivesse por artes mágicas penetrado no universo de Jean de Dardemont para viver a seu lado o fragor das lides, percorrido o caminho exaltante da epopeia.

O tio Jójó lá continua, Deus o conserve por muitos anos com a sua bondade, a sua linhagem de figura nobre, o seu sentido estético da vida e o gosto sensível pelas coisas e valores autênticos.

Como Afonso da Maia, o tio Jójó encerra um ciclo. O Jorge é o seu velho mestre de armas que conhece os cantos á casa, as tocas, os abrigos, a direcção do vento, o canto dos pássaros, que maneja a enxada, o martelo, a acha e o pichel.

Protejam o tio Jójó, aguentem-me esse maravilhoso Jorge, não matem a Cotovia…
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*Publicado originalmente na edição de Novembro de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

quarta-feira, 24 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 2


A Cotovia* (1.ª parte)

António Cagica Rapaz

Durante muitos anos a Cotovia nada mais representava na teia das minhas recordações do que uma paragem no itinerário pachorrento do carro de Cacilhas.

Depois da subida soluçante, ruidosa e fumarenta, até Santana, quase sempre atrás de uma camioneta do peixe (daquelas que vão deixando na estrada um rasto salgado), contornando o posto da Polícia onde o Mau-Mau controlava o horário com severidade, rasgava-se um horizonte novo na frescura da manhã. Era a Cotovia. Sesimbra ficava lá em baixo, na cova funda, meia adormecida, com as «beatas» vestidas de preto a saírem da missa das sete e a juntarem-se em grupinhos no jardim, em frente da capela, os miúdos de saco branco com as carcaças quentes para o pai que está na loja e espera o café da manhã. As mulheres do campo começam a chegar com os burros carregados para a praça. Nas tabernas cheira a bagaço e a abafadinho. Os velhos pescadores sentam-se no muro olhando o mar azul, procurando a rabeça do sol que já se eleva por cima do Caneiro. Uma barca cruza a baía, o motor ronrona e o fumo perde-se no céu sem nuvens. O Mau-Mau volta p’rá barraca e o Manel Estêvão mete a quarta, Cotovia abaixo…

A Cotovia era, para mim, apenas uma paragem do carro da carreira, uma aldeia escondida onde, à hora a que eu passava devorando a paisagem com os olhos escancarados de miúdo curioso, o tio Sebastião da Sopa abalara já estrada abaixo enquanto o Jorge bebia uma tigela de café que a Joaninha lhe preparava. Mas nessa altura eu ainda não conhecia o Jorge, só conhecia o Tio Sebastião porque o via muitas vezes na «Sopa», de fato de ganga azul e boné. Para a criança que eu era, o tio Sebastião era um homenzarrão que eu achava parecido com o meu pai, com a mesma estatura, o mesmo aspecto franco e vigoroso. Só que o tio Sebastião ainda desce ao jardim, aconselha o Jerónimo, ajuda o Fernando, caminhando pausadamente, atravessando o tempo sem pressas…

A Cotovia é campo mas um campo diferente do meu. O João Pedro, o meu sobrinho, chamava-lhe o campo da Carmelinda (filha do Jorge). Mas o meu campo era as Caixas, ficava no lado oposto. A Cotovia era menos campo, estava mais perto de Sesimbra e, como ficava na estrada de Cacilhas, cheirava a Lisboa. O meu campo era diferente, a estrada era de terra batida, de macadame, só havia uma carreira de manhã e outra à noite. E a camioneta reservada à carreira de Alfarim era a mais ranhosa do Covas.

A minha paixão pelo campo, pelas Caixas, prolongou-se pelos primeiros anos da minha infância em que virei as costas à praia e só gostava dos porcos, das galinhas, das mulas, da debulha, do pão no forno, dos pinhões, do moinho, da vindima, da água-pé, daquela vida dura mas saudável, com manhãs luminosas, a alvorada anunciada pelo galo garboso do tio Meano, com crepúsculos suaves, com o dia a perder-se na curva da estrada onde desaparecia o carro da carreira que regressava a Sesimbra. Cansado das lides diárias, em que participava com ardor, eu adormecia beatificamente enquanto o meu pai ficava à porta em conversa sem fim com o tio Júlio e o tio Justino que o ouviam com prazer e admiração. Ao longe, confundindo-se com as estrelas, viam-se as luzes trémulas da costa do Estoril, de Lisboa, dessa Lisboa que nos obrigava a passar na Cotovia. E acabei por conhecer a Cotovia, na minha adolescência e já homem capaz de saborear o bagaço do Jorge. Assim aprendi a gostar de outro campo mas as minhas raízes ficaram nas Caixas, na água límpida da fonte dos Torrões, na sopa de tomate e batata com pele, no pão amassado pela tia Clarisse, nas vindimas da Roça, na farda branca do meu pai emergindo da poeira levantada pelo carro da carreira, na corrida atrás do trilho na eira, na melancolia do regresso a Sesimbra após as primeiras chuvas de Outubro e o apelo da escola.

E anos volvidos voltei a encontrar o tio Sebastião que já não me pareceu tão grande. Quando o conheci, em pequenino, não imaginava que ele fosse da Cotovia. Para mim ele era o tio Sebastião da «Sopa», velha mansão que as chapas de zinco protegiam da maresia. E o tio Sebastião simbolizava a sopa, o inverno, o vendaval, a rua dos Pescadores. E afinal ele é da Cotovia, quis Deus que fosse irmão do Jorge. E o Jorge, no meu espírito, é a Cotovia, a Cotovia é o Jorge. Lá iremos…

(continua)
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*Publicado originalmente na edição de 24 de Outubro de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

terça-feira, 23 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 2

O mar do campo

António Cagica Rapaz

Era no início dos anos 50. O ribeiro dos Torrões ia desaguar na praia, mas nós, exploradores de palmo e meio, ignorávamos o destino daquele fio de água límpida que retínhamos, aqui e ali, em represas improvisadas para mergulhos frustrados e caça inocente a rãs saltitantes.

Depois de termos encaminhado para os talhões, um após o outro, a água que o tio Júlio tirava à picota, íamos, o Julinho e eu, encosta acima, armar aos pássaros. Chegados ao alto, contemplávamos, num misto de estranheza e respeito, aquele mar imenso e revolto, com vagas poderosas que se desenrolavam com fragor na areia rija da praia a perder de vista. Ficávamos em silêncio tempos infindos naquela contemplação, maravilhados e intimidados. O Julinho nunca tinha ido a Sesimbra e eu tinha dificuldades em lhe explicar o nosso mar, o verdadeiro mar, o da Pedra Alta, ali mesmo em frente da rua dos Pescadores, quase à nossa porta, o porto de abrigo, os passadiços, a água doce, os destroços do Numância, a imponência da fortaleza, as aiolas baloiçando, dolentes, amarradas à popa das barcas ancoradas na baía, na quietude da manhã apenas quebrada pelo sino da igreja de cima. Esse, sim, era o mar, não aquela imensidão tumultuosa de ondas a rebentar em praia deserta a dois passos do pinhal. Não fazia sentido, ali era o campo, céu de pardais, não de gaivotas. Por isso lhe virávamos costas, em corrida vertiginosa, ladeira abaixo, até à cabana de canas de onde a tia Clarisse já nos chamava porque a sopa de tomate e batatas com pele esperava por nós. A minha mãe enchia-me, regularmente, a marmita com batatas fritas com ovos que eu partilhava com o Julinho. De tarde, íamos lavar as cenouras e os nabos, para a venda no Seixal quando, para lá do cabeço, a noite ia caindo sobre o mar e a neblina já se estendia sobre a praia do Meco…

1983

segunda-feira, 22 de março de 2010

IN MEMORIAM, 3





A última carta (3.ª e última parte)

João Flamino

Foi nesses almoços que descobrimos bons vinhos (vá-se lá saber o motivo de a carta dos vinhos me vir parar sempre às mãos! Devo ter cara de alcoolizado mental! Ou então, bastava-me ser virtualmente o Zé Cuscopos para tudo isso se tornar tão natural como a nossa sede!), e longas foram as referências aos Calços do Tanha, que nos deram margem de manobra para muitos trocadilhos, daqueles feitos pelo Mestre António ou por nós próprios, e que nos deliciavam intensamente, tão espontâneos eram os sorrisos, os olhares de cumplicidade na marotice e a brejeirice inofensiva que o inundavam e o rodeavam.

Recordo, igualmente, o dia em que lhe comuniquei que iria dar-lhe um abraço à Feira do Livro de Sesimbra, que se realizava na Fortaleza e onde também viria a encontrar a Ana, que por lá passou para nos ver e dar um abraço de incentivo ao nosso António, mesmo sabendo nós que estava ela própria a viver um momento difícil na vida pessoal, com a doença grave de um familiar muito próximo. Passado pouco tempo estava a receber um telefonema seu a dizer que iria petiscar a uma famosa esplanada, local com uma vista única para o mar de Sesimbra, com a Margarida, e que teria muito gosto que eu e a minha mulher também participássemos nesse petisco. Que fizeram questão de nos oferecer, antes de rumarmos, todos, às instalações da Feira do Livro, em mais uma demonstração da personalidade do casal. Foram totalmente infrutíferas as minhas tentativas para pagar a despesa e, para além do prazer da companhia, da qualidade das ovas, das amêijoas e dos caracóis e da inenarrável sensação que nos assolou a todos quando o sol começou a aproximar-se da linha do horizonte, conferindo tons únicos à pintura paisagística que apenas um génio poderia saber traçar, ainda teve tempo para me presentear com um livro, que comprara de propósito para mim. Guardo-o com uma estima tal que até me custa relembrar a gargalhada sincera que soltei quando li o seu título: Com os copos, de Miguel Esteves Cardoso. Logo seguida da emoção sentida, na mestria da palavra, quando dei por mim a ler a dedicatória, escrita pelo seu próprio punho, que reza da seguinte maneira: “Para o João… ou o Zé… ou lá como é, com um grande abraço do Caghica . Agosto 2009.”.

Como ele bem sabia, todos os meus textos jocosos, com muita ironia à mistura, e mesmo os mais sérios, que publicava no meu blogue, sob o disfarce de Zé Cuscopos, terminavam com a expressão, matreira, Hic Hic Hurra. Daí à brincadeira, puramente fabulosa, com o próprio nome foi apenas um pequeno passo de mestre.

Depois, estive presente com o Joaquim e com o Pedro na apresentação do seu último livro, feito de forma genial com um passeio de barco ao largo de Sesimbra, terra que sempre transportou no peito, num coração onde o sangue era também mar. Recordo o brilhante discurso do Pedro e as palavras, sempre sensatas e sábias, do António, num momento em que nada poderia fazer prever o que se seguiria, num ápice.

É que, no dia 30 de Outubro de 2009, a confraria teve a última ceia em redor do seu mestre. Já nesse dia, em que o António chegou atrasado (o que nele não era normal), e vinha acompanhado da Margarida (o que, isso sim, já era normal), logo nos primeiros contactos, e sem que o tivéssemos revelado até ao final do almoço, tanto eu como o Joaquim ficámos muito apreensivos. Havia ali qualquer coisa que não estava bem no António. O seu olhar estava mais ausente. A sua fala mais pesada e longa. A exposição das suas ideias não era feita com aquela garra, aquela energia, aquela vivacidade e força de vida que dele brotava normalmente. Aliás, durante todo o almoço manteve-se muito mais sereno do que o habitual, participando apenas esporadicamente nas conversas, como se estivesse um bocado afastado do que o rodeava ou extremamente cansado.

O certo é que, findo o almoço, tanto eu como o Joaquim, numa pequena conversa a dois, demonstrámos a nossa estupefacção pelo que tínhamos acabado de presenciar e decidimos averiguar. Essa foi a razão para o meu telefonema para o Pedro que, igualmente, de nada sabia e que apontou como possíveis causas as dores de costas que o assolavam e a falta de descanso.
Foi o Joaquim quem me comunicou a recepção de uma mensagem, por correio electrónico, dirigida a todos nós, recebida pouco depois, em que o António informava que lhe tinha sido diagnosticado um tumor no cérebro e que iria dar entrada num hospital de Lisboa para uma intervenção cirúrgica. Nela, para além de justificar o sucedido através da expressão “as coisas são o que são”, ainda estava presente a vontade de nos voltarmos a reunir para almoçar, uma vez tudo ultrapassado, como que a dar-nos a nós força para o que se seguia.

O que se seguiu foi tão violento como rápido.

O António embarcou para a grande e derradeira viagem em 13 de Dezembro de 2009.

Foi o Pedro, com quem mantive os maiores contactos nessa fase difícil para todos, quem me telefonou a dar a notícia que nunca, nenhum de nós, quis receber.

Deixou-nos, a todos, mais pobres, por já não o termos entre nós, mas tornou nossas vidas muito mais ricas durante o tempo em que nelas permaneceu.

Era uma pessoa notável e de quem eu gostava como se fosse meu irmão mais velho, e se o escrevo agora é para que não fiquem dúvidas daquilo que sentia por ele.

O António não era só isso, era muito mais do que isso. Era um ser humano fora de série e que, no momento em que escrevo estas linhas, me faz deixar escapar uma lágrima de saudade profunda. Estou imensamente grato ao destino por ter tornado possível que as estradas de nossas vidas se cruzassem a dado momento, mas estou igualmente triste por não nos ter deixado caminhar nelas, lado a lado, durante mais tempo.

Penso, também, que não existirão muitas palavras capazes de o descrever com propriedade. E todos os meus esforços nesse sentido se revelariam inúteis ou ficariam muito aquém do desejado.
Resta-me, pois, sentir a tua falta, querido AMIGO, na certeza de que estarás para sempre presente em meu coração e na minha mente ao longo da linha que me conduzirá, inevitavelmente, até onde já te encontras.

É o meu único consolo, sabes?

Acreditar que quando não te encontrar, por já ter parado o meu coração e a minha mente não conseguir suportar mais a vida em meu corpo físico, terei do outro lado, à minha espera, alguém para me receber de braços abertos e me levar, por entre um trocadilho e outro, de sorriso aberto no rosto, ao destino final das almas, mostrando-me os cantos à casa…

Obrigado, António, por tudo e… boa noite, ó mestre!!!

Escrito em Lisboa, entre os dias 16 e 17 de Março de 2010.

domingo, 21 de março de 2010

IN MEMORIAM, 2


A última carta (2.ª parte)

João Flamino
Regressando ao António, aos poucos fomos voltando a encontrar-nos, sempre com o Joaquim a, orgulhosamente (para ele e para nós), marcar presença e, logo num desses primeiros reencontros, agendámos um almoço para um restaurante perto da Casa dos Bicos. A localização era explicada pela presença do seu companheiro de blogue, o Escriba, a quem dava mais jeito o almoço por aquelas bandas. Nada a objectar, o que interessava era o convívio e ainda tinha o créme de la créme que era conhecer quem partilhava as linhas com o António Carteiro, pois sabe-se que gente de bem atrai a si mais gente de bem.

À boa maneira das fitas de cowboys, onde as surpresas agradáveis nos estão reservadas para o final, eis que pouco depois chega o tão esperado Escriba, o Pedro. Ele olha para mim, eu olho para ele e à sua saudação inicial eu apenas respondo, com um sorriso estampado no rosto: “- Olá Pedro!”. De repente, o Pedro olha mais aprofundadamente para mim e diz: “- Mas eu não te conheço?...”. Em mais uma das reviravoltas da vida, numa daquelas coincidências em que ela é tão pródiga, o Escriba que ali estava, ao lado do nosso Carteiro, era um velho conhecido dos tempos em que ambos frequentávamos os corredores sombrios e poeirentos de uma Faculdade lisboeta. Nessas alturas os nossos contactos tinham sido esporádicos, mas foi um enorme prazer, para a alma, voltar a vê-lo e poder reatar o contacto perdido. É verdade, afinal o amigo do peito de quem o António me falara emocionado, dizendo (verdadeiras) maravilhas a seu respeito, era comum. E nenhum de nós o suspeitara sequer…

E os almoços que inicialmente eram a três, passaram a realizar-se a quatro, estendendo-se assim a confraria em momentos que, para todos, eram de puro repasto para o corpo e para o espírito, se bem que, em determinadas alturas, por imperativos laborais, o Pedro não tenha podido estar presente.

E foi numa dessas alturas em que outro curioso episódio sucede. O António, o Joaquim e eu fomos almoçar à Churrasqueira do Campo Grande, onde tivemos de nos bater com um bacalhau assado com batatas a murro e feijão frade, regado a bom tinto e, por entre as deliciosas histórias com que o António nos ia brindando, surge uma a respeito daquele que ele considerava um verdadeiro felino entre os postes. Chamava-se (e ainda se chama, felizmente) Vítor Manuel e, para melhor esclarecer quem nos lê, jogou ao lado do nosso António que teve uma passagem distinta por vários clubes de futebol, desde o Grupo Desportivo de Sesimbra (onde começou), passando pela Académica de Coimbra (clube que muito o marcou), pela CUF e pelo seu amado Belenenses, onde terminou a sua carreira de futebolista. Ora, o caso do Vítor Manuel prendeu logo as nossas atenções, não apenas pelos rasgados elogios às suas capacidades feitas pelo nosso António, mas sobretudo por este ter sofrido, num fatídico jogo em Matosinhos, contra o Leixões, uma lesão de tal maneira grave que o incapacitou definitivamente para a prática do futebol (numa disputa de bola, num lance perfeitamente inofensivo, um jogador do Leixões lança-se contra o Vítor e dá-lhe uma violenta joelhada na cabeça, deixando-o logo inanimado e relegando-o para um estado de coma). No meio daquele episódio ficou a pena de não saber o que teria sido feito do Vítor Manuel.

Ora bem, voltando às coincidências, o meu compadre Joaquim é um homem do fado (e não se limita a ouvi-lo) e, nessa mesma noite, vai a uma sessão de fados à Tasca do Chico, no Bairro Alto. Conversa puxa conversa e quem é que ele descobre lá, a cantar o fado? Exactamente, o Vítor Manuel, de quem estivéramos a falar à hora do almoço. Aproveitou a ocasião para lhe falar do Tó Manuel (nome pelo qual era carinhosamente conhecido o António) e logo ali ficou alinhavado reencontro, que se deu no almoço seguinte que realizámos, novamente naquele restaurante perto da Casa dos Bicos. Foi bonito, pois o António nem suspeitava e apenas sabia que viria um homem do fado almoçar connosco, o que nem estranhou por saber que o Joaquim era um homem desse meio.

Não voltou a ser possível ter o Vítor em mais almoços nossos, mas foi muito gratificante poder assistir ao abraço dos dois.

Almoços esses que se foram tornando num costume, à razão de um por mês, para não se perder o contacto, e que foram, igualmente, sendo alargados a outros convivas.

Um deles foi a Ana. Que, como é evidente e tal como todos nós, também logo se deixou encantar pelo nosso António. Resta referir que a Ana também chegou do meio virtual e é pessoa que, tendo-se deixado encantar por nós, também logo nos encantou, pela sua maneira de estar, pela sua esmerada educação, pela sua simpatia e bondade e por, no fundo, estar em perfeita comunhão com o espírito de grande alegria e amizade que enchiam verdadeiramente a mesa nos dias dos almoços (a comida e a bebida eram apenas o pretexto).

Com tantos interesses em comum, e com a amizade a fortalecer-se, foi normal que, em breve, o grupo de quatro habituais convivas tivesse passado a cinco (com a chegada da Ana, que passou a participar em todas as iniciativas comensais que se seguiram) e fosse, esporadicamente, sendo alargado em virtude das circunstâncias.

Foi assim que, em determinada altura, o nosso António nos informa que vai trazer duas surpresas para um dos almoços (o mais concorrido de sempre). E essas agradáveis surpresas foram, nem mais nem menos, que a Margarida, sua simpática mulher, e o seu melhor amigo, dos tempos de infância, o Manuel António, que a todos, novamente, nos souberam encantar. António Manuel e Manuel António, os velhos amigos de sempre, ali estiveram a partilhar alegrias e histórias, juntando-se naturalmente ao convívio e bom ambiente que era já habitual naqueles momentos de pura delícia para todos os que neles tinham o orgulho e prazer de participar.
É um facto que as coisas boas desta vida são tão simples que, por vezes, só à distância e quando já não nos é possível repeti-las, pelo menos com todos os intervenientes fisicamente presentes, é que lhe reconhecemos qualidades suficientemente fortes que nos levam a recordá-las com os sentimentos à flor da pele. Talvez tenha sido o que sucedeu com os almoços, com os nossos almoços, que eram tão alegres, tão bons, tão intensos e perfeitos na sua simplicidade.

(continua)

sábado, 20 de março de 2010

IN MEMORIAM, 1


A última carta (1.ª parte)

João Flamino

Quando o meu estimado compadre Joaquim me fez saber que gostava que eu desse uma vista de olhos por um blogue que era feito, a meias, por duas personalidades de Sesimbra, jamais eu suspeitei o quanto tal iria influenciar a minha vida pessoal.

Quando dei à costa, após alguma borrasca fruto da nabice própria de quem, nem sequer sendo de Sesimbra, só a custo navega nesse mar aparentemente calmo que é a Internet, aportando ao magra carta, longe estava eu de pensar que, pouco tempo depois da descoberta, já estaria a ser colonizado (eu, que fora, assim o pensava, o descobridor) pelos seus autores.

A vida tem destas coisas e o certo é que, após ter iniciado uma troca épica, na versão deste pobre escriba (atenção que não estou a tentar furtar o lugar a ninguém), de galhardetes, em que as linhas breves de um João100Terra, escritas à pressa em bilhetes postais electrónicos caíam, certeiras e fulminantes, numa estação de correios onde um certo Carteiro, na altura ainda com a face oculta, ao lê-las, percebia que era ele o destinatário e, quantas vezes, pouco depois lá vinha a resposta, no mesmo tom das palavras inicialmente dedilhadas no teclado, a revelar uma sintonia de opiniões e de maneiras de estar na vida que nos foi aproximando, irresistivelmente, como se fossemos um íman a atrair metal.

Quantos sorrisos e quantas gargalhadas não dei nesses tempos, sozinho, sentado em frente a um computador, olhando para um monitor que era apenas a tela onde duas vidas, duas almas, se encantavam mutuamente, dado o caminho rectilíneo que o nosso percurso seguiu, de maneira inevitável e sem qualquer pressão (como deve suceder entre amigos), até finalmente se encontrarem face a face.

O virtual, pese embora os seus perigos sobejamente conhecidos por muitos, não será inimigo do real quando os virtuais amigos desejam realmente conhecer-se, o que passou a fazer todo o sentido após uma troca quase diária de correspondência entre este pobre escriba e o mais nobre carteiro que alguma vez conheci.

O encontro foi aprazado, imagine-se, através do próprio blogue, prometendo o carteiro que se ali fosse deixado o endereço do correio electrónico, uma vez que todas as mensagens eram previamente lidas antes de validar a sua publicação nos comentários aos textos, o mesmo não seria divulgado e a resposta já seria dada por essa via, longe dos olhares virtuais, pois nem todos poderiam revelar-se aconselháveis.

Para além do endereço do correio electrónico essa mensagem, que quero imaginar transportada por uma alva e branca pomba, levava no bico o número do telemóvel e o meu nome próprio, pelo que em breve aquele tocava estridente. Deixei-o repetir o toque antes de o atender, pois todos sabemos, pelo menos desde que vimos o filme no cinema, que o carteiro toca sempre duas vezes e, do outro lado, ouvi com satisfação a voz da amizade a chamar-me, dizendo por outras palavras que estava em contacto com alguém que me iria marcar para todo o sempre, que deixaria em mim um traço genuíno de bondade e de compreensão, de comunhão de pensamentos e de identidades, que será de difícil entendimento por parte de quem nunca experimentou tais sensações.

A apadrinhar o nosso primeiro encontro, ali ao Saldanha, junto ao edifício já muito transformado do Monumental (onde, em criança, com os meus pais, fui ver um filme do Popeye, cujo personagem era interpretado por, penso eu, Robin Williams, que muito me agradou), que recordo com grande emoção, lá estava o mestre dos correios, o António, ladeado pelo meu compadre Joaquim (pois então), que assim testemunhou, embevecido, aquele primeiro encontro.
É simples descrever o homem que, finalmente, dava a cara pelos textos de grande sabedoria e magia literária, com uma ironia invulgar e um humor à prova de tudo, que deixava publicados na magra carta e que, mais tarde o soube, eram apenas uma ínfima parte do espólio de uma vida a escrever no mesmo tom, de uma vida retratada no seu último livro, em que descreve o percurso de seu pai e o entrelaça com episódios marcantes da própria vida.

O seu sorriso simples e sincero, acompanhado de um aperto de mão vigoroso, contagiaria qualquer um e eu, obviamente, não poderia ser uma excepção a essa regra que o companheirismo instituiu muito antes de qualquer de nós ter nascido para este mundo.
Lembro-me de termos ido almoçar a um restaurante de um hotel nas imediações da Latino Coelho e de logo aí ter nascido uma empatia tão grande que nem os rijões (epíteto feliz, num trocadilho onde revelava toda a sua sagacidade na forma como baptizou os rojões) à moda do Minho foram capazes de impedir que novo encontro fosse marcado, sempre à mesa, sempre rodeados de comida e vinho, pois a vida quer-se assim, cheia de prazeres (e havia que fazer jus ao meu nome virtual, Zé Cuscopos).

Logo nesse primeiro encontro, onde a conversa acabou por fluir de forma perfeitamente normal e agradável, entre uma garfada e um bocado de vinho para acompanhar a carne, fiquei a saber que o companheiro da magra carta se chamava Pedro e também era de Sesimbra. Dados que, na altura, assimilei sem lhes dar a devida importância e que, mais tarde, vieram a constituir outra agradável surpresa, demonstrando que esta vida tem estradas que desembocam, frequentemente, em outras vidas e nos levam a locais e pessoas que não esperamos e que nos tornam ainda mais felizes e surpresos.

Um belo exemplo do que escrevi ainda recentemente sucedeu, pois em deslocação a África, por força de obrigações laborais, contactei com uma série de pessoas. No dia em que regressava a Portugal, ao apanhar o avião, na sala de embarque, deparo-me com uma dessas pessoas, e foi agradável o reencontro. Obviamente, mantivemo-nos juntos até à escada que dava acesso ao interior do avião e, antes de a subir, despedimo-nos cordialmente e fizemos votos de nos voltarmos a encontrar no destino. Qual não é o nosso espanto quando, poucos segundos depois, estamos sentados lado a lado, perdidos de riso e incrédulos na forma como, tendo sido adquiridas em dias distintos, algo fez com que, num avião com mais de cem passageiros, a viagem fosse feita junto a um conhecido, tornando menos monótonas as seis horas de duração.

(continua)

quarta-feira, 17 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 1


O peso da palavra*

António Cagica Rapaz

Se vos disser que aos doze anos beneficiei de aulas particulares ministradas por António Telmo, ninguém se admirará se, a seguir, revelar que tive a nota mais alta do país no exame escrito de Filosofia do antigo 7º ano, em 1962.

Obtive exactamente 18,5 valores, o mesmo tendo conseguido uma outra aluna com quem dividi o prémio de quinhentos escudos.

Importa, porém, acrescentar que os ensinamentos que recebi diziam respeito à forma mais expedita de bem aplicar os cirúrgicos efeitos, puxar com precisão ou juntar num canto as três bolas do bilhar, arte em que António Telmo era já um executante primoroso, aliando uma técnica apurada a uma imaginação exuberante e a um total desprezo pela comezinha avidez da vitória nas provincianas competições.

Estávamos na segunda metade da década de 50, em Sesimbra, e eu revelava algum tímido jeito para a coisa quando o futuro grande filósofo teve a bondade de me dar umas lições cuja particularidade maior era ser o mestre a pagar a hora do seu bolso.

A instrução teve o seu início no café Ribamar onde a tertúlia intelectual tinha lugar, e prosseguiu no café Central, teatro das grandes representações às três tabelas.

Mais tarde, troquei as bolas do bilhar por outras maiores, de coiro, e o taco por botas de futebol a que hoje gente evoluída chama chuteiras.

O ainda jovem Telmo seguiu o seu caminho até atingir a projecção que sabemos e de que os seus amigos tanto se orgulham, por tudo e porque ele continua a espalhar a palavra do conhecimento e a iluminar as mentes de quantos o lêem, é certo, mas particularmente dos bem-aventurados que têm o privilégio de o escutar.

Contrariamente ao que se poderia esperar, não segui Filosofia.

Na altura, o 7º ano era o fim do meu percurso escolar, o limite da bolsa dos meus pais, e o acesso à Faculdade só aconteceu graças às tais bolas de coiro que me roubavam o tempo e pouco espaço deixavam para leituras e reflexão.

E foi assim, ao pontapé, que acabei por alcançar um canudo de Filologia Românica, bagagem modesta que acabei por nunca levar para qualquer sala de aula já que a minha vida profissional foi feita na aviação comercial, carreira que nem o astrólogo Horus (que o António Telmo tão bem e também conheceu) foi capaz de prever.

As voltas da vida nunca me afastaram muito de Sesimbra, apesar de ter vivido 19 anos em França, e fui mantendo contactos com alguns amigos comuns, como os irmãos Reis Marques e, mais recentemente, o Pedro Martins.

Não estou aqui para debater nem suscitar reflexões, a tanto não me atrevo. Sou um espectador ocasional das extravagâncias da vossa Filosofia e já me sinto honrado por poder assistir e fingir que percebo.

Não me choca a ideia de que o pensamento português tenha a sua origem nas tradições judaica, cristã e islâmica, admito de bom grado que sim.

Nem arrasto por aí as correntes joaquimitas, embora me impressione a exegese xiita, quase tanto como a tradição cabalista.

Já me sinto perplexo perante a dúvida que paira sobre a eventualidade de Jesus ter ou não sido assistido pelos anjos.

E parece-me perfeitamente legítimo que alguém possa interrogar-se sobre a existência de uma Filosofia intrinsecamente portuguesa.

Na minha condição de profano, ao assistir a alguns colóquios, fica-me a impressão de haver ali uma espécie de jogo, um pouco à imagem do que Sant’Anna Dionísio diz de Pascoaes ao classificá-lo como um espírito dialéctico que afirma e nega na mesma frase e até na mesma palavra, saltando de heresia em heresia.

E acho estranho que, apesar de tanta sapiência, os filósofos dêem mostras de tanta inquietação, não parecendo que tenham conseguido alcançar a serenidade e a paz própria de quem deveria saber de onde viemos e, sobretudo, para onde vamos. Porque, afinal, o que se passa entretanto, esta passagem efémera, pouca importância tem.

Confesso que o que mais me agrada é aquele momento delicado, no final, quando da sala não parece surgir qualquer intervenção, a menor pergunta, e nos fica a sensação de que os diversos oradores estiveram ali a perder o seu tempo.

Felizmente, para todos nós, levanta-se o António Telmo e faz duas ou três observações, com ar de quem pede desculpa por se intrometer, e lança uma luz nova sobre o tema.

Todos nós podemos fazer leituras, coligir informação, preparar textos de apoio, mas o grande talento, o que define e caracteriza os maiores é a capacidade de pensar com profundidade e com originalidade, de arrancar sabe-se lá de onde um ângulo original, um raio luminoso, uma centelha de excelência.

Há pessoas assim, que nos transmitem a sensação de tudo saberem, de nos surpreenderem com uma palavra, uma frase que, depois de solta, nos parece evidente, mas que nunca cruzara o nosso pobre espírito.

Depois há o timbre da voz, denso e seguro, e o tom, arrastado, tranquilo, desprendido, próprio de quem não precisa de mais evidência.

É o vagaroso pôr-do-sol alentejano, o peso da sabedoria, o calor da partilha simples e suave do conhecimento, tomai e ouvi, estas são as palavras do Mestre…
____________
* Artigo orginalmente publicado no blogue dos Cadernos de Filosofia Extravagante, em 29 de Abril de 2009, no âmbito da Saudação a António Telmo, por ocasião do 82.º aniversário do filósofo, de quem Cagica Rapaz era amigo.

segunda-feira, 15 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 1

Numância

António Cagica Rapaz



foto tirada daqui

Há muitos anos encalhado na maré vazia, o Numância gerou e alimentou lendas e fantasias, foi centro de atenções, presença insólita, navio fantasma, antro de conquistadores, contrabandistas, espiões infiltrados, porões de mistério, nau de corsários na praia do tio Abel.

A rapaziada olhava, com respeito e temor, as cavernas sombrias, ninhos de polvos gigantescos, safios temíveis, moreias dilacerantes, refúgio do capitão Nemo saído das “Vinte Mil Léguas Submarinas” que nos deslumbraram a toda a largura da tela do cinemascope, milagre que o Parque proporcionava em cada noite calma, enquanto baloiçavam os eucaliptos da cordoaria. Os aventureiros do colchão de borracha armavam-se até aos dentes, com baldes, pás e bóias à cintura, para a expedição da última esperança de encontrar uma sereia na casa das máquinas ou um polvo enrolado na barra de leme. Os limos enormes, linguados castanhos, criavam raízes na estrutura de chapa ferrugenta e formavam uma barreira assustadora.

O Numância era o nosso Adamastor, a nossa Atlântida, palco de aparições quiméricas do enigmático cavaleiro Emílio da Rocha Negra, senhor de Vintemilhas, mais conhecido pelo Corsário Negro que, ao leme do seu “Relâmpago”, rasgava a noite a coberto da espessa bruma do mar dos Ursos, rumo à ilha das Tartarugas…

Quando caíam os primeiros nevoeiros de Setembro que o Rafael soprava das ameias do Castelo, o Numância parecia emergir das profundezas medonhas. Mãos e barbatanas fustigavam as águas com redobrado vigor, acelerando o regresso do colchão de borracha, fugindo à borrasca, em busca da praia, “num’ânsia” de segurança que só acalmava quando, do alto da gávea, o gajeiro gritava “Já há pé!”. Extenuados, corações a bater, só descansávamos quando víamos surgir no horizonte a silhueta branca do Zé Tucha, apregoando “Há bolos ò pastéis!”.

Logo os corsários da pedra de Zé Manel interrogavam: “Então e pastéis também não são bolos?”.
O bom do Zé Tucha, pacientemente, lá nos ia explicando que não, que há diferenças, pastéis são pastéis, bolos são bolos. Porém, os malandrins queriam era conversa e, no dia seguinte, voltavam com a provocação. Mal soava o pregão “Há bolos ò pastéis” surgia a interrogação irritante: Então e pastéis também não são bolos?”.

Com o tempo, esgotavam-se os bolos, os pastéis e, naturalmente, também se esgotava a paciência do Zé Tucha, que respondia, fleumática e pragmaticamente: “A puta da tua mãe!”…

Era assim, na praia dos piratas, no golfo de Maracaíbo, linguagem rude, espada na liga, gancho afiado, pala preta no olho esquerdo, brinco e lenço, barba hirsuta, chapéu de pluma, perna de pau, bandeira içada com a implacável caveira ao vento, canhões assestados e nós assustados, vem aí o cabo do mar, esconde a bola, chuta prà água.

O Numância foi desmantelado pelo mar e pela dinamite, lenda diluída, sonho desfeito, presépio desmontado. A praia do tio Abel mudou-se para o Espadarte, rumo à Califórnia. E nós abalámos para a vida que a muitos arrastou para o largo. Às tantas voltamos ao porto, um tanto à deriva. Atracamos como podemos, a carta de navegação está desactualizada, a bússola tresloucada, fiamo-nos no instinto e na memória enferrujada, e mal reconhecemos as tabernas do cais. Só o mar não mudou…

1997