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segunda-feira, 26 de julho de 2010

NOTAS & NOTÍCIAS, 3

Uma pausa para férias
Boa Noite, Ó Mestre! regressa em Setembro.

NOVENTA E TAL CONTOS, 21


Manuela

António Cagica Rapaz

Acontece com todos nós cruzarmo-nos mil vezes, ao longo da nossa vida, com pessoas que conhecemos de vista e, por vezes, até de nome, sem jamais trocarmos duas palavras.

Ora, curiosamente, pode ser-nos agradável ver algumas dessas pessoas, ainda que nunca venhamos a falar com elas até ao fim dos nossos dias. De onde virá então esse estranho prazer? Provavelmente apenas porque as reconhecemos como fazendo parte do nosso universo, do nosso espaço existencial, espécie de actores secundários ou figurantes do filme das nossas vidas. São actores que entram e saem de cena sem interferirem na acção, mas que nem por isso são insignificantes nem dispensáveis.

Ao longo dos anos, fomo-nos habituando a ver aquele homem encher bóias, iscar caçadas e, no nosso espírito, ele fica associado a uma época, a uma barca, a uma rua, a uma página da nossa vida. De facto, ele faz parte do nosso mundo, do nosso presépio, numa esfera de proximidade que tem particular significado numa terra pequena como a nossa. Bom seria que, um dia, fôssemos capazes de dar um passo em direcção deles e trocar duas frases. Mas não o fazemos, por isto, por aquilo, e um dia morremos, uns e outros, sem lhes termos dito que eles fizeram parte da nossa vida.

Estas pessoas têm ainda a virtude de nos devolver uma imagem diferente da que o espelho nos dá em cada manhã. Quando as olhamos não as vemos tal como são hoje, antes julgamos ver nelas uma frescura que, em verdade, perderam com a passagem dos anos. Da mesma maneira, nós próprios nos sentimos rejuvenescidos, transportados para outro tempo. Serão, porventura, jogos de espelhos mentirosos, mas fazem-nos bem, são uma ilusão inocente.

Todavia, e bem melhor, é quando encontramos, de vez em quando, pessoas de quem gostamos e que sentimos gostarem de nós, pessoas que raramente cruzam o nosso caminho, que fazem curtas aparições, mas que são referências, estrelas que nos acompanham pela vida fora, ainda que só nos vejamos de longe em longe e, às vezes, só de longe...

Há, graças a Deus, pessoas assim que, embora não vivam na nossa intimidade, têm um lugar muito importante nas nossas vidas. Algumas, por acaso, são da nossa família, tia chegada como a Lucinda, prima afastada como a Celestina. É costume dizer-se que quem não é da nossa família não nos pertence, nada menos verdadeiro.

Pessoas como a Manuela do Caminhão estão em nós, pertencem-nos como nós lhes pertencemos, de facto, por escolha, por amor. Vemo-nos quando calha, sem encontros marcados, ao acaso do tempo, e basta um olhar, um sorriso, um gesto de ternura. Para ela continuo a ser o menino de meses que a minha mãe, por brincadeira, meteu numa mala como sendo uma encomenda que o meu pai lhe mandara de África. Andava ele embarcado no Bartolomeu Dias, era na rua dos Pescadores, foi há uma eternidade, parece ter sido ontem. Talvez por me ter visto nascer, a Manuela me olha com tanta ternura. Por isso, naquele dia de Abril distante, no cemitério, quando ela me deu um beijo, não resisti mais e chorei, incontroladamente. Porque, por instantes, nos braços da Manuela, voltei a ser menino e chorei como choram todos os meninos que ficam sem mãe...

1998

sexta-feira, 23 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 17

as crónicas da Eventos...




Torrões*

António Cagica Rapaz

Porque a língua é viva e a aldeia global, há palavras a nascer todos os dias, umas necessárias, outras supérfluas, muitas indesejáveis. Ao mesmo tempo, e reflexamente, inúmeros vocábulos e expressões vão caindo em desuso. Há modas mais ou menos passageiras, amiúde infelizes, em certos casos pindéricas, que vão conquistando espaço com a ajuda de jornalistas semi-analfabetos, meras caixas de ressonância, e políticos janotas, pavões da era da empresarialização e outras pérolas catitas que enfeitam o universo pedante e pimba da nossa comunicação social, em particular, da televisão.

Antigamente, na nossa santa ingenuidade, fazíamos perguntas. Hoje, coloca-se questões. Dantes havia comerciantes, industriais, empreiteiros. Hoje só há empresários. Não há vendedor de cautelas ou engraxador de vão de escada que não seja empresário. É o mundo da aparência, do faz de conta, do protagonismo ilusório, da visibilidade em sede de presunção e notoriedade rasca e manhosa.

É assim, à maneira, prontos, tudo numa boa. Mais palavras para quê? Os artistas são portugueses, trabalham muito e dão o seu melhor para alcançar os objectivos…

Ora vem isto à colação por força da quadra que se avizinha e que me fez recordar a expressão torrão natal que repousa, mumificada, na galeria silenciosa do esquecimento. Para a generalidade das pessoas, as suas raízes estão na terra ou no torrão natal. No caso dos sesimbrenses talvez fosse mais apropriado falar de areia ou mar natal. Isto para os que nasceram na vila, podendo os camponeses reivindicar o monopólio dos tradicionais terra ou torrão natal. Ainda assim, teríamos de admitir a existência de faixas de ambiguidade, espaços híbridos (ou anfíbios) onde o mar e a terra se abraçam e se confundem, como acontece na aldeia do Meco.

Na própria vila de Sesimbra, a fronteira é ténue. Aliás, a dicotomia terra-mar foi, em tempos, bem visível na rivalidade entre marítimos e terristas, embora estes últimos nunca tenham pretendido ser os únicos com direito legítimo a falar de terra natal. Por outro lado, esta noção de terra ou torrão natal, não é rígida nem inflexível, antes varia consoante a distância a que nos encontramos. Assim, para um sesimbrense que viva em Lisboa, a sua terra natal é, indiscutivelmente, Sesimbra. Porém, se o mesmo sesimbrense estiver no Minho e falar da terra natal, é mais provável que se refira não só à vila, mas igualmente ao concelho, à região. Por fim, se o tal sesimbrense andar a viajar no estrangeiro e evocar o seu torrão natal, é evidente que se refere a Portugal.

Para complicar ainda mais esta reflexão, acresce o facto de, nos últimos anos, inúmeros sesimbrenses terem trocado a vila pelo campo onde passaram a viver não só casais jovens mas também muitos reformados, em busca de tranquilidade. Nestas condições, mesmo para quem nasceu em Sesimbra, ao fim de algum tempo, é natural que surjam flutuações e hesitações à volta da noção de terra natal. No fundo, o nosso torrão natal será o sítio onde estão as nossas raízes, e estas podem perfeitamente estar espalhadas. No meu caso, tendo nascido na rua dos Pescadores, a dois passos da Pedra Alta, é ali que estão as minhas primeira e, porventura, mais fundas raízes. O que não me impediu de, bem cedo, ter aprendido a amar a terra, o campo, ao longo de inesquecíveis verões passados nas Caixas.

Mais tarde, outra zona do campo me foi (e é) muito cara, a Cotovia. Agora, e desde há uma década, tenho a felicidade de estar na Aiana, bem perto das Caixas, fechando assim o círculo e um ciclo de vida. Curiosamente, quando vou à praia do Moinho de Baixo não posso deixar de recordar a minha meninice, os dias maravilhosos passados ali ao lado, nos Torrões. Do alto das dunas, contemplava com estranheza e temor a praia selvagem que a meus olhos não fazia sentido por ficar no campo. Aquela parcela de terra, que o tio Júlio e a tia Clarisse cultivavam, foi a minha pátria do campo, ali à esquina do mar para onde corria a límpida água do ribeirinho dos Torrões. Por estas razões e outras inocentes divagações, teria grande dificuldade se tivesse de nomear com rigor a minha terra natal, tantas são as raízes, tantos são os amores, tantas são as saudades.

Alguns terão nascido e morrido na mesma rua, a ver o mar. Outros, como eu, terão andado por longe. Felizmente, o nosso sangue e o nosso instinto não se enganam e, quando voltamos, sentimos com nitidez, sabemos com certeza profunda, onde é o nosso lugar, a quem pertencemos, ao colo da nossa mãe, aos braços do nosso primeiro amor. Por isso, olhando para trás, vogando entre mar e campo, alargo os horizontes para lá da terra ou do torrão, revivo as emoções, volto a brincar nos Torrões…

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*Publicado no n.º 22 de Sesimbra Eventos, de Natal/Ano Novo de 2002-2003.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 21


António do Porto*

António Cagica Rapaz

Não sei qual a relação entre ele e o porto, mas a seu lado estamos sempre ao abrigo da tristeza.

– Ó António, não vais aos touros?

– Oh, ver um espectáculo tão bárbaro?

Diálogo que se retoma a cada passo, com a réplica bem humorada do António que logo salta com a agilidade de um jovem quem ele será até ao fim.

Na sua simplicidade, com a sua permanente boa disposição, um sorriso que lhe vai de orelha a orelha (e que grandes são as orelhas e o sorriso) destacando ainda mais o a nariz altaneiro.

Numa das mãos as castanholas, na outra a gaita de beiços de onde saem marchas militares, valsas, viras e tudo quanto vier à borda.

Ultrapassado o cabo dos setenta anos, o António continua senhor de um corpo ágil, pleno de «ginástica» e, para ele, tudo é formidável.

Na Sesimbra boémia ele tem um lugar muito especial. Vive com alegria, vibra com a música, toca e dança, dança só ou com «ladies» da sua idade (mas não só). Porém o seu coração é puro, os dedos acariciam sem intenções ocultas. O António é um boémio com alma de criança. Ri, canta, dança e toca mas não toca no que não deve, não se aproveita da euforia e da confusão, não crava cigarros nem copos…

Todos conhecem o António Piedade Formidável do Porto e todos o estimam. Ele ficou mais só quando a sua companheira lhe faltou numa noite fria de um Natal que rasgou sulcos de lágrimas naqueles olhos que não sabiam chorar.

Nas noites quentes de Verão, o António senta-se à porta a olhar as estrelas e toca baixinho a gaita de beiços até adormecer com o seu sorriso de menino velho…

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Publicado no Jornal de Sesimbra, em 1974, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 20 de julho de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 13



Ela preferia o horário nocturno, gostava de trabalhar em silêncio.
Chamavam-lhe a calada da noite...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 19 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 20


Um homem


António Cagica Rapaz

A praça da Guarda encostou o jipe à berma da estrada e desceu devagar, com a segurança de quem possui autoridade absoluta. O cabo ficou sentado a observar a cena.

- Você não sabe que não é permitido fazer lume?

As praças e os cabos vêm dos confins das Beiras, destacados em comissões de serviço, são corpos estranhos, deslocados, desconhecedores. De outra forma, a praça da Guarda teria reconhecido, ao primeiro olhar, a estatura do seu interlocutor, teria abordado de outra maneira aquele homem de olhar profundo, pele curtida pelo sol e pela geada, porte altivo, palavra medida, mãos vigorosas, dono da terra que conhece e ama, senhor do vento cujos movimentos antecipa, patriarca austero que só se enternece com os netos.

A praça da Guarda viu fumo e cegou, feliz por ter apanhado um infractor. Viu aquele fumo e não descortinou para além, não ouviu os cães que ladram no lusco-fusco, quando o sol começa a esconder-se por trás do pinhal, e de cada chaminé se vai elevando outro fumo suave que anuncia o jantar. É um lapso de tempo suspenso, fronteira vaga entre a tarde e a noite. É o silêncio que desce como um nevoeiro espesso só cortado, aqui e ali, sempre ao longe, por algum cão a que outro responde. O pinhal vai-se tornando numa mancha escura, o mocho já piou duas vezes, as portas vão-se fechando, luzes matizadas vão surgindo nas casas, os gatos enroscam-se junto às chaminés. Aquele fumo é o último rasto de presença humana no horizonte, mas a praça da Guarda não pensou nisso, tal como não sabe que aquele homem se levanta às seis da manhã, acaricia a erva orvalhada, interroga o céu, respira o ar vivo e fresco, saúda a estrela do pastor e vê a terra acordar. Ao longe canta um galo, o sol não vai tardar a romper, é um novo dia, graças a Deus. Este homem sabe se vai chover ou não, se é preciso regar ou cavar, pressente, adivinha, conhece, comunga com a natureza com que faz corpo.

- Você não sabe que é proibido fazer lume? – a pergunta é já uma acusação, interpelação infeliz, tosca e desajeitada.

A praça da Guarda desconhece que, para aquele homem, o lume é uma prática ancestral manejada como a enxada ou a foice, o arado ou a forquilha. Que ele sabe exactamente como e quando pode queimar, sem o menor risco, acautelando o vento, orientando a manobra com a mesma perícia com que enxerta uma árvore ou mata um porco. É uma ciência instintiva sem outro manual que não sejam o olhar certeiro, a mão segura e a atenção paciente. A praça da Guarda é apenas um uniforme, terá um nome, mas ninguém sabe, está de passagem.

- E não tem mangueira? – a praça ia condescendendo.

Com o assentimento do cabo, lá se ficou pela recomendação de prudência e seguiu o seu caminho. De forquilha na mão e cabeça levantada, o homem saúda as autoridades que o jipe leva de volta a Sesimbra. A noite começa a cair, o dia chega ao fim, a netinha pega-lhe na mão, é a tal hora bendita da paz do Senhor, a sopa está na mesa.

O homem chama-se António e vive na Aiana de Cima...

1995

sexta-feira, 16 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 16

as crónicas da Eventos...



Bruscamente, no Verão passado*

António Cagica Rapaz

“O Verão é uma das quatro estações do ano. O Verão começa a 21 de Junho. Eu gosto muito do Verão por causa das férias grandes”.

Naquele tempo os professores mandavam-nos para casa com uma mala cheia de trabalhos para os três longos meses de canícula. Eram cópias, ditados, problemas e redacções que começavam mais ou menos assim, naquele jeito ingénuo, soluçante e embaraçado de rapazolas que só sonhavam com bola e praia. As ruas enfeitadas eram o palco de despedida de um ano de escola e a antecâmara da festa do Verão, prelúdio colorido de um tempo que nos parecia interminável, Outubro não aparecia sequer na linha do nosso horizonte. O Verão era o sol impiedoso e a sede de bola que matávamos no ribeiro do Desportivo, com azedas e água duvidosa…

A nossa memória é caprichosa, conserva imagens com assinatura reconhecida pela nostalgia, e nós juramos a pés juntos que nunca chovia durante aqueles três meses. Quando muito, admitiremos a ocorrência de um ou outro dia de vento em Julho e alguma manhã de nevoeiro em Setembro, quando já suspirávamos por chuva e frio, fartos da torreira do sol.

O Verão era ainda a festa da fruta madura, do trigo loiro, com a ceifa, a debulha, as desfolhadas, mais tarde as vindimas, a celebração da Natureza, os figos que nunca chegavam a secar no telhado, as pinhas queimadas à porta do Outono…

Em Sesimbra, a noção de férias era vaga e estranha, apenas associada à escola e aos banhistas. As pessoas da terra, em geral, não tinham férias, como se tal privilégio não fizesse sentido para quem vive permanentemente com o mar a beijar o poial, o mesmo mar com que tanta gente, por esse mundo fora, sonhava o ano inteiro.

O Verão eram os banhistas alentejanos, primeiro, e os turistas estrangeiros, mais tarde. E Sesimbra transfigurou-se com a inauguração da ponte sobre o Tejo. Durante muitos anos, a nossa terra foi um paraíso escondido e protegido. A travessia do rio, com os carros transportados nos barcos grandes e as bichas que chegavam à Cova da Piedade, foi o aliado da nossa felicidade egoísta, o obstáculo maior ao desenvolvimento turístico, à massificação degradante para nós, indígenas felizes neste cantinho maravilhoso que vai do Caneiro à doca.

Mais tarde, a ponte e as transformações sociais trazidas pelo 25 de Abril, estiveram na origem das sucessivas invasões de hordas sequiosas de praia e mar, pior do que isso, da nossa praia, do nosso mar. Vindos da poesia dos charutos, dos barquinhos a remos, dos colchões de borracha, da jangada, dos passadiços e da “água doce”, fomos entrando na era dos carros em cima dos passeios, da música hedionda aos berros, das perigosas, poluentes e incontroladas motas de água, dos inúmeros barcos a motor, dos incontáveis chapéus de sol, malas térmicas e lancheiras, marabunta de pesadelo.

A marginal dos românticos passeios ao luar, na quietude da noite, é hoje uma pista infernal onde se cruzam e se acotovelam velhos e novos, num movimento incessante e frenético, ao ritmo de batuques, ao sabor da cerveja. A madrugada costumava cheirar a maresia, a praia convidava, o mar chamava por nós. Hoje, a marginal acorda transformada em lixeira, garrafas, latas, mil detritos indescritíveis, frutos de ressacas e marcas de excessos que, muitas vezes, nos envergonham.

A vida hoje é diferente, é outro tempo, outros são os valores, embora na sua essência o homem seja o mesmo. E sonhos de uma noite de verão todos tivemos. Mas hoje, para mim, a verdadeira Sesimbra é no Inverno, a meio da semana. Será fundamentalismo, caturrice piegas, talvez sim, não sei nem é importante. Apenas sei que este Verão não é o meu, decididamente não, muito obrigado. Por isso, abro-lhe a porta quando ele chega, uns dias antes do S. João, convivemos civilizadamente, sem preconceitos, mas a prudente distância. E quando a festa não me agrada, abalo para a Aiana, refugio-me. Bruscamente. No Verão passado…

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*Publicado no n.º 8 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2000.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 20





Grémio*

António Cagica Rapaz

Todas as sociedades são de cultura e recreio, não um recreio inocente como tinham os galdérios alunos do professor Leal, entre as grades da escola Conde de Ferreira, nem uma cultura que começa nos degraus dessa escola e acaba sabe Deus onde!

Degraus igualmente conduzem ao velho Grémio, a mais aristocrática das nossas sociedades de cultura e recreio. O seu passado é, claro, das mais altas e nobres tradições tal como é invariavelmente glorioso o passado de qualquer clube de futebol ou de alpinismo no Alentejo. O presente, porém, não se vislumbra indicativo da nobreza do pretérito.

Toda a actividade cultural do Grémio se resume à televisão que sabemos ser paupérrima. O recreio, esse, é mais variado e contempla a maioria. Como passatempo ocasional há a mesma televisão, os jornais e revistas que algum associado distraído já tem levado para casa. Há o Carnaval que no passado foi glorioso também, mas que actualmente é uma caricatura.

Fica a festa de aniversário com a ceia à americana em que os prezados consócios envergam o fato novo e a gravata com o brilhante que era do avô, enquanto as senhoras disputam entre si o título da mais elegante, balzaquiana ou não. Sorrisos, ternuras a cada passo de dança, todos felizes, todos contentes, enquanto se espiam pelo canto do olho para ver se algum traz o mesmo fato do ano passado. À meia noite, o champanhe, os brindes, beijos e abraços, o mesmo ridículo ritual da noite do fim do ano, parabéns a todos, é o aniversário do Grémio.

O maior centro de interesse, a actividade por excelência do velho clube é, contudo, o jogo sobre o pano verde. Sobre o relvado de fazenda, os jogadores equipam-se como podem, com maior ou menor fôlego económico, tomam as cores mais variadas conforme a sorte do jogo, utilizam tácticas específicas, arriscam alguns o salário a cada passo.

Felizmente, valha-nos Nosso Senhor Jesus das Chagas que ao jogo ninguém perde. Ninguém ouve um jogador dizer que perdeu. E se perdeu foi ontem. Hoje ganhou e amanhã vai de certeza ganhar outra vez. O pobre Damião toca para o quarto de hora à Belenenses e, enquanto uns dão tudo por tudo, outros atiram bolas para o ribeiro. Alguns recolhem aos balneários de tal forma acabrunhados com a derrota que até se esquecem de pagar ao Damião. Até um reverendíssimo senhor padre (de férias entre nós) sofreu de tal arreliadora amnésia.

Por vezes é mais penoso descer os degraus, às tantas da noite, do que subi-los em antecipação para arranjar lugar à mesa. Grave, gravíssimo não é jogar a saúde, o equilíbrio nervoso e o orçamento do lar, mas não tirar o boné quando se entra num tal santuário de cultura e recreio…

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* Publicado no Jornal de Sesimbra, nos anos 70 do século passado, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 13 de julho de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 12



Aquilo já era mania. Pôs a filha a fazer limpezas, o filho a angariar seguros, a mulher a vender fruta. Até o carro ele punha a trabalhar...
António Cagica Rapaz


[da série Coisas]

segunda-feira, 12 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 19


Azóia

António Cagica Rapaz

Há tempos fui jantar ao Meco e acabei em prolongada conversa com o senhor António que, tanto quanto eu imaginava, era do Meco. Tinha dele as melhores referências pela Eulália, sobrinha do professor Amável e pessoa entendida tanto em gastronomia como nas veredas da alma.

Imaginem o meu desapontamento quando fiquei a saber que o senhor António, afinal, não é do Meco nem sequer de Sesimbra, tendo nascido para os lados de Peniche, terra de estranhos amigos.

Mal refeito do choque, abalo para a Aiana e qual não é o meu espanto quando deparo com uma tabuleta na qual se vê Azóia, assim mesmo, com acento agudo. Se o Rafael ainda estivesse no castelo, enrolado na sua capa alentejana e na sua ciência, bem teria metido rodas a caminho. Assim, fiquei ali a cismar, como o Infante D. Henrique ou o João Manuel Pinhal, embuchado, macambúzio, desnorteado, apatetado, enfim, numa lástima. Ando eu há cinquenta anos a ouvir e a dizer Azoia, com o fechado, Azoia como poia ou saloia, para agora me aparecer um acento. Porquê? Quem deu ordem? Dir-me-ão, acento agudo não é coisa grave. Admito que não, mas se vamos por este caminho, qualquer dia temos Sântana, Cotóvia, Zambújal, Cabo Espíchel, Mecú, pode lá ser!?

Isto dos nomes tem que se lhe diga. O Zé Azoia jogou no Desportivo que, apesar de ser o clube de Sesimbra, teve nas suas fileiras Santana, Piedade, Caparica, Lagos, Laranjeiro. Este Lagos tem por alcunha Zé Broa, mas não é de Alfarim, mora na Corredoura. Vá lá a gente fiar-se em nomes...

Assim laçado resolvi prosseguir as minhas escavações toponímicas e procurei descobrir a origem de Aiana de Cima. Foi uma tarefa muito árdua pois nenhum habitante da simpática povoação parecia ser capaz de fornecer a menor pista. Até que o acaso me levou ao contacto com o senhor António, pai da Cidália, homem que tudo conhece como a palma da sua mão calejada. Depois de muitas hesitações, acabou por me revelar, em grande segredo, que havia lá na aldeia, há muitos anos, uma moçoila bonita, fresca e apetitosa chamada Ana. O marido era uma fraca figura, magro, esfalfado.

Uma vizinha, de olhos bem abertos e ouvido atento, suspeitava que a moçoila batia no marido. Garantia essa vizinha que, à noite, ouvia gritos e gemidos. Mais afiança que o marido repetia, com voz estrangulada: “Ai, Ana, ai Ana”.

Com um olho malicioso, o senhor António diz que há outra versão dos factos, ou seja, as palavras e os gemidos do marido são verdadeiros, mas não se tratava de pancadaria, a luta era outra. Mais acrescenta, com um sorriso pérfido, que o nome Aiana de Cima é uma deturpação de um grito mais violento numa noite de maior vibração, com o marido a proferir: “Sai Ana, sai Ana de cima”.

A verdade histórica poderá não ser rigorosamente esta, mas as lendas têm sempre um rasto de verdade. E o senhor António é um homem sério...

1994

sexta-feira, 9 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 15

as crónicas da Eventos...





imagem tirada do blogue Sesimbra

Foi em 1962… Começava a década maravilhosa*

António Cagica Rapaz

O retiro na Arrábida era um ritual, evasão e recolhimento no fim de cada Verão, com a família e amigos escolhidos. Talvez por influência do cenário paradisíaco, pela harmonia com a Natureza, talvez porque o poeta Sebastião da Gama dissesse que pelo sonho é que vamos, a verdade é que o Chagas sonhava. Sonhava e fazia planos para o seu Ribamar, café a que a fortaleza impunha um limite, restringia os horizontes. E assim, no silêncio do Portinho, foi crescendo a ideia de um restaurante, projecto que lhe permitiria conciliar os seus anseios profissionais e a satisfação da sua velha paixão pela música, o gosto da festa e da confraternização calorosa.

Com o tempo, a máquina de discos calou-se, o bilhar deixou de ter bolas a girar e, na sala de cima, surgiram mesas e cadeiras, quadros pintados por artistas amigos, música típica de gravador e os petiscos da dona Cremilde, ajudada pelo Domingos.

Foram os primeiros passos do café em direcção ao restaurante, evolução natural do negócio e, sobretudo, etapa colorida no percurso que o Chagas idealizara. O Mário Regalado ia afinando os instrumentos dos futuros Galés, compondo e cantando em noites memoráveis em que havia no ar o perfume das lulinhas fritas e dos bifinhos de espadarte. Aos poucos, o velho café foi-se chegando para a porta, o rumo estava traçado, o Ribamar escolhera outra maré, o Chagas içava a vela maior, o restaurante era o bom bordo…

Assim nasceu em Sesimbra o que foi o primeiro restaurante digno desse nome, com o Chagas em “maitre”, animador de convívios, cicerone de sabores, anfitrião sorridente, alma e corpo de um Ribamar concebido à medida do seu espírito empreendedor e da sua concepção hedonista da vida. Foi em 1962, começava a década maravilhosa…

Fernando Farinha, o menino da Bica, foi o padrinho do novo Ribamar, nascido sob o signo do Fado. Sesimbra estava a tornar-se um destino muito procurado pelos turistas, sobretudo escandinavos, que se instalavam no hotel Espadarte e descobriam no Ribamar a excelência de uma cozinha rica de cores e aromas, à luz de uma vela e ao som de uma guitarra.

O Chagas, comunicador apaixonado, desdobrava-se entre as mesas e o microfone, mangas arregaçadas, sorriso permanente, todo ele paixão e alegria em noites inesquecíveis de uma Sesimbra que nunca lhe agradeceu o espírito inovador, o dinamismo e a audácia. Pelos anos fora, o Ribamar tornou-se uma segunda casa para a Maria Valejo, para o Helder António, para a Beatriz da Conceição e outros, não muitos, a casa era pequena, casa portuguesa, cada de família. Logo o folclore se juntou ao fado, e o Ribamar vinha para a rua de arquinho e balão, Sesimbra em festa, com os Galés.

O Helder herdou do pai o gosto pela música e tanto fazia coro com os Galés como parafraseava os “Bee Gees”. O rigor e a tenacidade que lhe vêm da mãe ajudaram-no a enfrentar a responsabilidade da sucessão. Primeiro, deitou a mão ao leme e enfrentou o mar. depois, olhou em frente e desafiou a fortaleza, evitando-a pela esquerda e criando o “Pedra Alta”.

Mais tarde, com o apoio e o incentivo do pai, foi mais longe no sonho ao erguer, bem de frente para o oceano, apenas com o horizonte por limite, um outro Ribamar, este mesmo onde nos encontramos, este mesmo onde celebramos, sempre em família, cinquenta anos de Ribamar, cinquenta anos de luta, de desafios, de paixão, de amor, de ousadia, de lágrimas, mas também de festa, em plena Festa das Chagas esta festa dos Chagas, festa do Helder, em nome do pai…

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* Publicado no n.º 9 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2000.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 19


A telefonia*

António Cagica Rapaz

A minha avó Sabina tinha uma taberna, na Rua dos Pescadores, onde havia uma telefonia que, nas minhas recordações, ficou como uma fábrica de fados. Recordo-me nebulosamente dos Companheiros da Alegria, do Zéquinha e da Lelé, mas a imagem sonora cujo eco perdura é a do fado. E o fado era a Amália com a sua voz nostálgica num pranto da Mouraria a arrastar-se na Rua dos Pescadores. O fado era a taberna, a da minha avó e as outras, de balcão, mesas e bancos de madeira, a gaiola dos canários ao desafio com as guitarras, a serradura no chão e a quartola arrimada. O fado era o refúgio na noite, os bancos cá fora, à porta, a garrafinha de cerveja meia de tinto, o pêssego a acompanhar, a luz alvadia da taberna a recortar-se no empedrado escorregadio da rua onde miúdos descalços brincavam às escondidas e ao «cócalha». Lá em baixo, o mar contornava suavemente a pedra alta aproximando-se das escadinhas para apanhar algum trinado, gravar na espuma o tom magoado que Deus pôs na voz da Amália e o levar para as sereias do mar da Pedra…

Mas o fado era também o sol glorioso da hora do almoço, a sardinha assada à porta no fogareiro, a telefonia em altos gritos com a Hermínia fadista, o Carlos Ramos roufenho, as mulheres chamando pelos filhos e os pimentos a fumegar nas brasas vivas.

O mar azul estendia-se até ao céu infinito, espelho deslumbrante onde se miravam as sereias que penteavam as loiras madeixas, cantarolando «Lá vai Lisboa». Era o fado, a poesia simples do povo, berço de sonho de espuma salgada que ajudava a esquecer vendavais, a alimentar a resignação fatalista habituada a uma miséria que o sol atenuava, o fumo das sardinhas disfarçava, o vinho diluía e a guitarra embalava.

Era a rua da minha avó, a Rua dos Pescadores onde nasci…

Depois fomos morar para a Rua da Fé numa casa do Gá, em frente da mercearia do Fernando Rasteiro e da mulher Aldegundes. Era um mundo diferente, as gentes eram outras. Cheiro a mar viria talvez do Pedro Boi que vendia peixe na praça e morava por cima. De resto, era o cheiro a campo com a cocheira do outro Rasteiro, ao lado da mercearia do Fernando onde cheirava a café torrado, linguiça, marmelada, feijão, pão e bacalhau demolhado. Ao lado ficava a padaria do João Henriques com o calor e o perfume do pão mole. Mas não cheirava a mar, apesar da praia ficar a uns duzentos metros, pois a Rua da Fé conduzia à lota depois de se passar em frente ao Justino das mobílias e ao Cabecinha.

Mas a Rua da Fé, pelo menos a parte de cima, virava as costas ao mar, não era o rumor das vagas a marcar o ritmo mas o relógio da torre da igreja de cima que tudo dominava. Aquela parte da vila movia-se à volta do largo da igreja que exercia um fascinante poder de captação com o sino a dar horas, a tocar a finados, a chamar p’rá missa, a badalar as novenas e a choramingar alegremente os baptizados. Lá no alto, a derradeira morada, o cemitério que contemplava o mar, deitando contas à morte, certo de que todos os que escapassem às garras do vendaval viriam cair-lhe no seio com dois baldes de cal no bucho.

Todos, igrejas, camionetas e cemitério, faziam concorrência ao mar atraindo as gentes, afastando-as da praia. O largo da igreja era a ida à missa, a viagem a Lisboa ou a estadia definitiva no cemitério onde o velho Pinhal cavava covas fundas, mais fundas do que as da maré cheia ao pé da pedra alta…

E, da telefonia da taberna da minha avó, passei à do café do tio Chico da «Comprativa» onde aos domingos à tarde sofríamos com as desgraças do Belenenses, numa decepção que não era só minha mas também do Amílcar e do tio Chico, pastéis refinados. Mas a telefonia do tio Chico evoca no meu espírito, de forma nítida e colorida, os relatos de hóquei em patins na época apaixonante da rendição da velha e gloriosa guarda do Emídio, Raio, Edgard, Jesus Correia e Correia dos Santos. Eram os torneios de Montreux e o despertar do Matos, Cruzeiro, Lisboa e Perdigão. À noite, a telefonia vinha para a rua e os golos de Portugal eram festejados com tal vibração que o Menino Jesus de vez em quando ia pedir ao padre João para acalmar a malta porque na igreja os santos não conseguiam pregar olho…

Quando fomos morar na casa do Justino, entre o Dr. Fernando Lopes e o velho Carlos Palmela, comprámos uma telefonia a prestações ao Manuel Estêvão. Às sete da manhã ecoavam em toda a casa as duas argoladas vigorosas que o Eduardo do leite aplicava. Era o litro do revigorante branco e o boletim meteorológico que o bom e saudoso Eduardo nos trazia da Cotovia, nesse tempo em que eu ainda não conhecia o Jorge Patrício, o mestre Jorge para quem não souber.
Às sete e meia, no decorrer do Talismã (o seu programa da manhã) chegava o folhetim desastroso em que todos os papéis eram interpretados por uma senhora chamada Manuela Reis. E eram só desgraças. Mais tarde viria o Tide e quejandos, sendo de destacar um palpitante, de acção empolgante (como dizia o Filipe ao anunciar os filmes) com os amores desavindos da Olga e do Henrique Sampaio que a minha mãe e a minha prima Judite acompanhavam de coração contrito. Os intérpretes eram o Vítor Marques (do Forno) e a mulher.

As preferências da D. Amália e da Judite iam inteirinhas para o programa dos doentes, transmitido a meio da tarde pela Rádio Voz de Lisboa onde havia uma locutora que dizia num tom muito doce «Esta é a Voz de Lisboa».

Era um a pieguice das antigas a que se seguia a dedicatória dos discos aos doentinhos dos hospitais dos Capuchos, da Estefânia, Curry Cabral, sala oito, piso nove, cama dez. Só faltava indicar a temperatura dos doentes e o nome dos medicamentos que tomavam. E lá vinha o Max a cantar o Sinal da Cruz que na pequena capelinha, da aldeia velha e branquinha dera à Maria da Luz. Uma cruz de pôr ao peito e o juramento foi feito por nós dois sobre essa cruz, etc.… Vejam lá vocês!

Depois era a Maria Amélia Canossa a dizer que anda o vira na minha rua, já me encheram a rua toda, oiço harmónios e cavaquinhos, cabeças à roda, uma festa.

E os doentinhos melhoravam ao ponto de dançarem o vira nas enfermarias.

Quem se tramava era o Joaquim Russo à espera do café enquanto a Judite ouvia os cavaquinhos…

Ao sábado à noite no Rádio Clube Português, às oito e meia, ia para o ar a «Onda Desportiva» apresentada por um tal Henrique Mendes, voz sem rosto nesse tempo em que a televisão ainda não entrava em nossas casas.

A última rubrica desse programa intitulava-se «Jogadas de Antecipação», com perguntas de Fernando Pires e respostas previsionais de Alves dos Santos.

O meu pai chamava a minha atenção para o bom-senso, a ponderação e os conhecimentos técnicos desse tal Alves dos Santos. O nome ficou-me e a admiração nasceu. Tinha eu os meus nove ou dez anos e mal sonhava que a vida me proporcionaria estar em contacto com ele e mereceu uma amizade que me enternece e honra. Hoje somos dois irmãos, dois amigos, dois compadres, pai e filho pelo espírito e pelo coração. Lá em cima, o meu pai há-de achar graça e sorrir de satisfação…

Da rádio desse tempo guardei muitas outras recordações que conservo intactas e dariam para encher algumas páginas, mas não quero abusar da vossa paciência.

Hoje quando faço os meus breves comentários na rádio, nessa rádio que sempre adorei, sinto a mesma fascinação da meninice, o deslumbramento com que ouvia o Teatro da Emissora, os apontamentos do dia do Américo Leite Rosa, as máximas do Lança Moreira, o jornal da APA, o Jorge Alves na Onda do Optimismo, as maluquices do José de Oliveira Cosme, as lendas da nossa terra, as aventuras do Zé Caracol no programa para crianças, da Maria Madalena Patacho.

E quando me sento numa mesa redonda, na Renascença, ao lado de Alves dos Santos, volto a ser o menino que lhe bebia as palavras nas jogadas de antecipação, encostado à telefonia que comprámos ao Manuel Estêvão. A telefonia é vida e é um fado maravilhoso…

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*Publicado originalmente em O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

terça-feira, 6 de julho de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 11



Quando fazem vendas a bordo, as hospedeiras avíão os passageiros...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 5 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 18

foto tirada daqui



Maré de alcunhas

António Cagica Rapaz

No número de Fevereiro de “O Sesimbrense” apareceu uma notícia relativa a um lanço realizado por uma barca cujo arrais se chama Januário Florido Sebastião. Como o nome não identificasse devidamente o pescador, logo foi sentida a necessidade de acrescentar a sua alcunha, Dezanove. Eu já conhecia o Doze e a taberna do Treze, mas nunca ouvira falar do Dezanove...

As alcunhas na nossa terra são quase tantas como os nomes, as pessoas têm alcunhas, até as ruas têm alcunhas, a rua Direita, a rua do Saco, a rua do Norte, a rua de Alfenim, o largo do Canino, etc.

As alcunhas têm, em geral, uma conotação pejorativa, raramente são elogiosas. Aprendi a ler com a mestra do meu pai, a Rosa Manão e, mais tarde, tive por companheiro de escola um Papa-Rebuçados. Pelo lado materno, a minha família é Come-Figos e, neste mesmo registo, há uma Papa-Notas, já para não falar do Quilo e Meio de Papas. No fundo, cada um papa ou come o que pode, embora me intrigue, no caso das notas, como sairão os trocos...

Neste capítulo das alcunhas gastronómicas, tínhamos ainda Caldeirada, Cebola, Manel da Carne, Fartura, Marmita.

Outras não são propriamente alcunhas mas partículas identificativas, ligadas à profissão, como Costa da Bomba, Pinga Azeite, Domingos Barbeiro, Hernâni Sapateiro, Antero do Pão, Chico da Cooperativa, António do Carvão, Justino das Mobílias. Nestes casos não há qualquer segunda intenção, o menor intuito aviltoso, são simples particularidades.

Temos referências a aves, Zé Pardal, Pintassilgo, Canário, Pato Marreco, e muitas a peixes, Borrelho, Cavalinha, Faneca, Chaputa, Tarraco, Lareta, Badejo, Aguafaz, etc.

Há as que evocam regiões, António do Porto, Bragança, Braga, Adelino Beira Alta, e até a religião, Pai do Céu, Menino Jesus.

Algumas são colectivas, Cornetas, Palinhos, Palhinhas, Bebecas, Cagalhoças, Roupeiras, Charnequeiras. Outras insólitas, Pala-Pala, Chochinha, Guarda-Jóias, Má Figura, Má Ladrão, Zé Bébéu, Traçante, Rabo de Mula, Nhéu, Burrinhanha, Adeus ó Menina, Má Olho, Tiroliro, Zé Ptolas, Padre Batata, Casa Pia, Manilhas, Venta Roída, Pernas Gordas, Cu Arrastes, Còfinhas.

Esta evocação não tem qualquer intenção insultuosa e constitui apenas uma piscadela de olho, não um trabalho de pesquisa nem estudo aprofundado. Confesso que não me dei a esse esforço, foi um rudimentar exercício de memória, recordando o que ouvi à minha mãe. A verdade é que as alcunhas existem, muitas vezes são engraçadas e algumas ficam coladas às pessoas, substituindo os próprios nomes.

Interessante seria ir mais longe nesta abordagem e descobrir a origem de certas alcunhas, o porquê de Fogo à Peça ou Calhau da Mijona...

1981

sexta-feira, 2 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 14

as crónicas da Eventos...




Maigret e a Patricius*

António Cagica Rapaz

As minhas primeiras leituras foram os livros da escola primária, os jornais desportivos e as histórias aos quadradinhos. Até que a D. Stella me ofereceu um livro sem imagens, mas com as aventuras do Corsário Negro, narradas por Emílio Salgari. Arrumei-o numa estante, remetendo para as calendas gregas a abordagem de tantas páginas assustadoramente desertas de desenhos. Um dia, porém, uma inofensiva gripe reteve-me na cama e, à falta de um Condor Popular ou Colecção Tigre, resolvi atirar-me ao Corsário Negro. Foi uma experiência surpreendente e apaixonante, devorei-o de uma ponta à outra, de um fôlego, com a rapidez do “Relâmpago” ao cruzar os mares das Caraíbas...

Teria uns onze ou doze anos quando conheci António Telmo que teve, então, a paciência e a bondade de me ensinar a jogar bilhar a sério, a premonição das trajectórias, o planeamento das sequências, a ciência dos efeitos, o realismo no juntar das bolas, mas também o gosto diletante pelo recorte artístico na ousadia de certas tacadas. Poderia o mestre ter-me iniciado noutras rates, noutros campos do conhecimento, mas era cedo de mais, para mim. Depois, na altura apropriada, outras bolas me levaram para longe, com o futebol a ajudar-me a entrar na Universidade, mas a roubar-me o tempo para convívios, pesquisas, reflexões mais profundas do que as obras de leitura obrigatória. Por estas razões, também por algumas limitações, provavelmente, e por certo comodismo, fiquei-me pelo instinto e pela rama de temas considerados basilares no panorama da intelectualidade.

Talvez por ter lido muitos livros por imposição, por exigências naturais num curso de Letras, cedo deixei de fazer esforço para ler, ou seja, só leio o que me dá prazer. Da mesma maneira (são faces da mesma moeda) só escrevo por gosto, quando a companha do barco é boa, com mar chão Eventos de feição. Confesso que mal comecei o “Ulisses”, de James Joyce. Será sacrílego um tal abandono e imperdoável desfaçatez esta revelação, mas é a verdade. Em contrapartida, há livros que já li quatro ou cinco vezes, e vou continuar a ler porque cada leitura é um prazer renovado. Não sei se estas coisas têm explicação nem se será útil (ou possível sequer) procurar razões para preferências. Eça de Queiroz é um deslumbramento e uma delícia, o seu conto “O Suave Milagre” é dos trechos mais belos que alguma vez li e o seu romance maior, “Os Maias”, é uma obra prima, em absoluto. Felizmente, a escolha é livre e abundante, não temos de obedecer a critérios exclusivistas de aferição, e ninguém nos obriga a optar entre Eça e Somerset Maugham ou Stefan Zweig. Nem entre “O livro de Saint Michel” e o “Quarteto de Alexandria” (Justine, Clea, Baltasar e Mountolive).

Importante é ler, com curiosidade, interesse e, se possível, paixão. No fundo, é uma questão de gosto, de sensibilidade, de afinidades. Por vezes encontramos o estilo que nos agrada, certa qualidade na narração, estrutura na intriga, consistência nas personagens, autenticidade e coerência na construção de um universo, de uma época, algumas das mil coisas capazes de nos seduzir e prender.

Curiosamente, os livros que mais prazer me proporcionaram são de autores franceses, tendo mantido com eles uma relação verdadeiramente afectiva. Primeiro foi Alphonse Daudet, com as “Cartas do meu moinho”, um hino à Natureza, à sua Provença. Guiado pela sensibilidade da D. Auzenda, foi-me mais fácil apreciar o bucolismo, a poesia, a caracterização de personagens e sentimentos fortes, à imagem da tragédia de Arles, com um suicídio por um amor maldito.

Mais tarde, vim a mergulhar de novo na atmosfera da Provença, pela mão genial, a arte de Marcel Pagnol que escreveu peças de teatro, vários romances e realizou filmes inesquecíveis. O colorido da linguagem, realçada por um sotaque delicioso, a panóplia de personagens, a prodigiosa imaginação, o palpitar de paixões e intrigas, a emoção autêntica que coloca em narrativas poeticamente autobiográficas e muito ligadas á infância, tudo torna gloriosa e fascinante a obra de Marcel Pagnol.

Por fim, Georges Simenon, o “pai” do Comissário Maigret. Em tempos, e em português, li “O homem que via passar os comboios”, não tendo ligado ao nome do autor. Anos volvidos, já em francês, descobri Maigret, reconheci o estilo e rendi-me ao talento de Simenon. Comprei todos os livros com o selo Maigret e atribuí-lhe a fisionomia e, sobretudo, a voz de Jean Gabin que vira num filme, no salão do João Mota. Nessa altura, eu não sabia quem era Jean Gabin e, muito menos, Maigret. Mas ficou-me na memória a silhueta maciça, a presença imponente, o peso daquela voz grave, pausada, impressionante.

Pouco a pouco, seduzido pela magia da escrita corrida de Simenon, familiarizei-me com o universo do Comissário Jules Maigret, aprendi a conhecê-lo, os seus gostos culinários, a sua filosofia de vida, os seus projectos para a reforma, os seus tiques, certas particularidades da sua vida conjugal, os nomes dos seus colaboradores e, até, de muitas personagens dos romances que já li cinco ou seis vezes. E que vou continuar a ler, tão grande é o prazer…

Não me custa imaginar o Comissário, na Cotovia, em mangas de camisa, o chapéu atirado para a nuca, à sombra do enorme pinheiro, fumando o seu eterno cachimbo, de olhos maliciosos semicerrados, tentando descobrir o cristalino mistério da maravilhosa cumplicidade entre o tio Jó e o Jorge. Nem duvido que se deixasse tentar por carapaus secos em dia de nevoeiro, no Outono, saboreando, para arrebater, um copinho de Patricius, sob o olhar divertido do nosso Jorge.

O milagre da leitura dá-se quando a escrita nos toca, nos envolve, nos arrebata, nos arrasta, quando sentimos que as pessoas ou as personagens fazem parte da nossa vida. Quer seja num livro, num jornal ou num opúsculo como este que tendes entre mãos e que aspira a ser um livrinho que vos fala da nossa terra, da nossa gente, das belezas naturais, do património cultural. E que aborda temas vários, ao sabor das vagas da inspiração desta companha que rema com gosto e alegria a favor da corrente, mas com igual vigor e convicção contra marés Eventos

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* Publicado no n.º 21 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2002.