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segunda-feira, 31 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 12


Nevoeiro

António Cagica Rapaz

Os primeiros ruídos chegam-me distantes, abafados pelo nevoeiro que nasce no mar e se estende pela serra acima. É uma daquelas manhãs preguiçosas, arrastadas, em que, depois do pequeno almoço, apetece voltar para a cama, deixando que lá fora o mundo prossiga a sua marcha sem se preocupar connosco, a gente já vai, é só mais um bocadinho...

Ao sair para a escola deparo com o tio Zé David ali à minha porta, na rua Monteiro, a dar instruções ao seu pessoal que vem arranjar o passeio um tanto maltratado pelas chuvadas do mês passado. As camionetas do Covas e do “Caretas” ainda não passam na minha rua, ficam-se pelo largo da igreja de cima onde a “Ginjinha Coelho” é o ponto de encontro, o porto de abrigo e a torre de controlo da operação rodoviária. O tio Chico da Cooperativa é o faroleiro que instalou o relógio de ponto para viajantes, motoristas, cobradores, revisores, moços de fretes, todo um mundo que se agita à sua volta. A minha mãe é uma especialista, chega sempre atrasada porque, depois de fechar a porta de casa à chave, ainda volta atrás uma ou duas vezes para se assegurar de que ficou bem fechada. Claro, depois chega lá a cima a deitar os bofes pela boca, com o meu pai impaciente e o carro em cima das sete, às aceleradelas, mais do que pronto para arrancar.

O tio Zé David vem das Pedreiras acompanhado pelo seu pessoal, tudo gente do campo. É um tempo vagaroso, sem pressas, com a lentidão do nevoeiro que, de mansinho, desce sobre a vila, envolvendo a fortaleza e o castelo no seu manto cinzento, macio e denso como um cobertor de papa. A Judite lá vai, com o café e a carcaça para o Jaquim Ruço que está na loja a encher bóias. Lentamente, os homens encostam os carrinhos de mão à parede e deles tiram pás, picaretas, martelos, maços, vassouras, areia, todo um arsenal de ferramentas, utensílios e apetrechos que me deixam mais desejoso de ficar ali, em vez de ir fazer ditados ou resolver problemas de áreas, esteres ou metros cúbicos, na escola. Os homens da Câmara penduram a roupa no muro da minha casa enquanto a minha mãe rega as flores e me repete que já são horas de ir andando. Lá em baixo é a cordoaria, com os eucaliptos gigantescos, pegada à fábrica do gelo que fica em frente da escola de Santa Joana onde aquela malta brava, de cabelo à escovinha, ensaboa o juízo à heróica Cecília Cruz cujo vozeirão já se ouve, apesar da distância e do nevoeiro. Os homens da Câmara ainda não cuspiram nas mãos nem sequer despejaram a areia amarela que vai aconchegar os cubozinhos de pedra do meu passeio. Ah, agora sim, um já abriu a maleta de cabedal. Vai talvez tirar alguma colher de serventia. Ah, não, é uma marmita. Olha, outra, e mais outra ainda...

O mais novito vai apanhar uns pauzitos junto ao muro da escola das raparigas e começa a preparar o recanto onde há-de pôr a caldeira ao lume. Daqui a pouco um fumo suave vai elevar-se para se juntar ao nevoeiro, e tudo isto se desenrola com a lentidão de um sonho agradável, na preguiça filosófica de um tempo que se escoa ao ritmo imperturbável dos barcos a remos, dos burros, das carroças e das velas dos moinhos de vento. Admirável época esta em que há tempo para olhar em redor, colocar cada cubo de pedra no buraco de areia, devagarinho, carinhosamente, aconchegando-o com o martelo, quase com ternura. Com a mão alisa-se, sacode-se a areia, sem pressas, pedra a pedra, gesto a gesto, há todo o tempo do mundo. Lá longe, na doca, outros homens raspam o casco dos barcos, metem a estopa, cobrem com breu, pintam, conversam pela manhã adiante até acharem que é tempo de voltar a pé dessa lonjura que é o porto de abrigo para o almoço que as mulheres já puseram ao lume.

Observo esta gente rija do campo que fala a meia voz, arrastadamente. Aquele mais alto, ali, enrola tranquilamente o tabaco na mortalha e agora vai pedir um fósforo, não, agarra um pau que arde. Acende o cigarro, aspira profundamente, fecha os olhos com prazer e expele o fumo que lá vai, também ele, com lentidão, juntar-se ao nevoeiro. Já devem ser suas onze horas, não querem lá ver. E se a gente começasse a tirar daqui estas pedritas?

A minha mãe deu um ramito de hortelã ao rapaz das marmitas, enquanto do fundo do quintal chega a música do Talismã. Olha, já há marmitas a ferver. Parece mentira como o tempo passa quando se trabalha. Logo despeja-se a areia, coloca-se mais umas pedras, fuma-se um cigarrito, dá-se um jeito com o maço e depois toca a arrumar as ferramentas que se faz tarde. Subir Santana leva o seu tempo, vamos com Deus.

Nevoeiro é tempo de mistério, de sonho, de obras sem pressa, de vida tranquila que, se calhar, só existe na nossa imaginação. Na sexta-feira, com muito esforço, lá para o fim da tarde, o passeio fica pronto, infelizmente. Os homens da Câmara acabarão por arrumar as ferramentas nos carrinhos de mão e desmancha-se o presépio. Fica o passeio e a memória de um tempo...

1994

domingo, 30 de maio de 2010

TALVEZ POESIA..., 4

Vendaval

António Cagica Rapaz

Na janela do velho sótão,
Eu ficava a olhar o mar,
Gostava do vendaval.
O vento, noite e dia, assobiava
E as nuvens negras levavam
Água salgada do mar,
P’ra longe, p’ra lá da serra.
As ondas grandes, enormes,
Sempre iguais, a rebentar…
Na taberna joga-se às cartas,
Cospe-se nos dedos grossos,
Risca-se a mesa com giz.
As malhas do burro caem
Sobre as tábuas, repetidas,
Como as ondas, atrevidas,
Que chegam às escadinhas.
Os copos de vidro espesso,
O vinho, as cartas, o giz,
As ondas, o vendaval…
O tio Lúcio bebe aguardente,
Queima as entranhas e a mente.
Eu ponho areia nas tábuas
E as malhas escorregam.
Mas as ondas nunca param.
Nas escadas, ao pé da Sopa,
Os homens olham o mar.
As rugas juntam-se todas
À volta dos olhos cansados
De olhar o mar e a espuma
Que se eleva para o céu,
Um céu negro e carregado
De tormenta e amargura.
Os homens olham as cartas,
Mas elas não dizem nada.
E à noite, noite de breu
Como o céu
Que marca o destino incerto,
Ouve-se a voz do Gilberto,
Falando baixinho ao mar,
Esse mar que ele adorava
E só a ele escutava…
Guardadas foram as cartas,
O burro, as malhas, o giz,
O vendaval acabou,
Deus ouviu, Gilberto o quis.
Os barcos voltam ao mar,
A chuva no ar secou
E a espuma já não toca
As folhas da velha Sopa…

sexta-feira, 28 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 9

as crónicas da Eventos...




Sesimbra e ventos*

António Cagica Rapaz

Julho costumava trazer alguns ventos que pacificavam a canícula, brisas desgarradas que ninguém levava a sério, filhas do Mistral que sopra na Provença e do Sirocco que nos vem do Norte de África. Vento de Verão mais parecia animação programada para quebrar a monotonia de dias de sol, céu sem nuvens e água morna. De repente, um sussurro, um estremecimento quase imperceptível, uma breve agitação, um colchão de borracha que se vira, um toldo que se solta, a jangada a baloiçar, areia em remoinho, toalhas e chapéus a esvoaçar, um simulacro de pânico divertido, interlúdio comparável a um dia de nevoeiro em Agosto, pretexto para ir à gaveta buscar uma camisola impaciente, o prazer delicioso do Outono antecipado…

Mas vento mesmo é seco e frio quando dos quadrantes Norte e Leste, húmido e tenebroso quando, vindo do Sul, carrega nuvens negras de chuva roubada ao mar. O vento do Norte empurrava os pescadores para o mar, obrigando-os a procurar a protecção do muro e a rabeça incomparável do sol de Inverno. Esse vento gelado vinha da serra e abanava os eucaliptos do campo do Desportivo onde os jogadores mal chegavam a aquecer, ronhas na ginástica, aplicados só atrás da bola.

Frias eram sempre as manhãs de cada 1.º de Dezembro, com os lingrinhas fardados da Mocidade Portuguesa a tiritar, mas empertigados, de mangas arregaçadas, a Pátria podia dormir descansada, nada atemorizava aqueles heróis do mar rasinho.

O mesmo vento de rachar pedra varria a minha rua Monteiro e arrastava consigo a Judite que ia levar o café e uma carcaça ao marido, o Jaquim Ruço, que muito cedo abalara para a loja.
Depois de passar em frente do jardim, o vento era canalizado para a rua do velho salão do João Mota, fustigando os curiosos que consultavam os cartazes das fitas que, três vezes por semana, ajudavam a esquecer o vendaval e a fome. A plateia custava vinte cinco tostões, preço da evasão e do sonho…

No seu turbilhão imparável, o mesmo vento passava pelo Central, onde o sô Zé conservava as portas bem fechadas, e mal incomodava o Ribamar, mais abrigado, de costas para terra, de frente para a fortaleza. Era aí, no café do Chagas, que o Rafael, ignorando as forças dominantes que frequentavam o Central e o Grémio, se refugiava para pensar, embrulhado no fumo do cigarro, para ler no fundo da chávena de café, para falar, para ouvir os pescadores e os seus companheiros de tertúlia contestatária.

Ventos de incompreensão o exilaram no Castelo onde foi amontoando privações e solidão, mas também saber e paixão, construindo a sua imagem de investigador, filósofo, pensador, dono de uma ciência que as ameias ajudaram a conservar. O isolamento de que sofreu, sobretudo nos últimos anos da sua vida, acrescentou-lhe aquela partícula de mistério que ainda envolve a sua figura de sábio, asceta, eremita, dono de ciências concretas e ocultas, consignadas em manuscritos raros como os que se encontravam na biblioteca proibida, ferozmente protegida pelos monges de “O nome da rosa”.

O seu valor está a ser muito justa e empenhadamente reconhecido e o seu nome já se tornou uma referência e um símbolo. Infelizmente, no caso de personalidades e personagens desta dimensão, como o Rafael ou o António Telmo, a sucessão é mais do que problemática.

Quem dará continuidade ao trabalho do Rafael? Quem, neste burgo amorfo, poderá vir a ser o guardião do conhecimento, o condutor do pensamento? Nem tudo está perdido e, se maus ventos não o desviarem, há aí um jovem jurista que me parece digno do mestre…

Ventos de incúria e ganância começaram, há quarenta anos, a cavar a sepultura das espécies costeiras, com a apanha de algas para os japoneses.

Ventos de má fortuna, de políticas e compromissos de cedências obrigaram os nossos pescadores a buscar longe o que, em parte, não puderam, mas que, por outro lado, também não souberam preservar à nossa porta.

Ventos de desgraça trouxeram marés de droga, morte, degradação física e moral.

Ventos de incompetência e águas paradas de conformismo destruíram a harmonia da nossa baía.

Ventos de modernidade duvidosa, mau gosto gritante e interesses inconfessados têm acelerado a descaracterização desta nossa terra cada vez mais afogada na cova onde vamos vivendo, com vento da terra, com vento do mar, com vento do cabo, com vento da Arrábida…

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*Publicado no n.º 11 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2001.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 12


Manhã de Primavera*

António Cagica Rapaz

São onze horas. Só tenho escola logo à tarde e a minha professora é a D. Ernestina. Como já fiz os trabalhos de casa vou brincar um bocado. Em frente da minha casa fica a escola das raparigas que estão no intervalo e fazem rodas cantando quadras populares. Umas vão ao jardim da Celeste, gira o flé, flé, flá. Outras acham que rosa branca ao peito a todas vai bem, à menina Isabel olaré melhor que a ninguém.

As batas brancas, lavadas com sabão de amêndoa e enxutas ao sol, cruzam o verde dos cedros e os gritos das crianças são cânticos de vida na primavera que desponta, nos campos e nas almas.

Manhã serena, de sol ameno em céu muito azul. As traineiras já chegaram há pedaço. De vez em quando um carro passa à minha porta e lá em baixo, em frente da cordoaria, o Zé do Olho acompanha o burro carregado com as latas p’rós porcos. As mulheres começam a chegar da praça com as alcofas carregadas e a cada porta há dois dedos de conversa. E hoje há treino do Desportivo…

Já vi passar o Isidro, em fato macaco da oficina do Brandão, com o Zacarias e o Santana. Os jogadores gostam de ir ao treino e eu gosto de ver. Os pescadores até se pelam por assistir aos treinos e enquanto uns se põem à rabeça, outros preferem a frescura dos eucaliptos. E ali ficam, na galhofa, a ver os jogadores que dão voltas ao campo, largando aqui e mais logo a sua graçola quando algum faz ronha na ginástica. Segue-se um pequeno conjunto, o mister Desidério insiste com o Zacarias para ele atirar «p’rá braca», a malta regala-se e vai abrindo o apetite para o almoço que já está ao lume. Do jantar de ontem sobrou feijão com massa, chaputa frita em cima e já está que até cheira a ratos.

O bocado de linguiça vai dentro do papo-seco para um copo na taberna do Zé Carelas enquanto o mister fica ainda a treinar o Ilídio e o Palhete que nem se pode mexer. Logo à tarde há machuchas p’ra safar e a caçada a iscar. O aviso é p’rás nove…

A escola da manhã acabou. As raparigas vão para casa e algumas encontram os pais que voltam do treino. A mãe já veio à porta duas vezes, uma para pedir um raminho de salsa à vizinha do lado e outra para espreitar o marido que não deve tardar.

O mar azul é como um lago de paz. As gaivotas bóiam em frente da pedra alta e, lá longe, passa um barco de guerra. Na taberna do tio Domingos avia-se o vinho e ouve-se o fado. Os jogadores do Desportivo, de cabelo molhado do duche frio revigorante, correm para casa cheios de fome.

E eu também vou almoçar para depois ir para a escola aprender a geografia e a história e sonhar com o barco de guerra e a bola de «catechumbo»…

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*Publicado originalmente em O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

terça-feira, 25 de maio de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 5



Era um médico muito autoritário. Quando lhe perguntei que medicamento devia tomar, gritou-me: "Cálcio". E eu calei-me...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 24 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 11




Zé Brandão

António Cagica Rapaz

O jornal que recebi exibia uma fotografia tradicional, acompanhada do habitual testemunho de gratidão. Falecera José António Preto Júnior, o nosso Zé Brandão, velho mestre de armas, coronel das Índias que conduzia as tropas pela noite fora. Companheiro bem disposto, modelo de correcção e cordialidade, deve ter-se sentido muitas vezes alvo de críticas fundadas em preconceitos postiços. Um homem daquela idade, diziam as almas piedosas e pudicas, devia era ter juízo e não andar naquelas vidas. Bem ele fez ao aproveitar os últimos anos para respirar a plenos pulmões a alegria bonacheirona da boémia singela da companha que embarcava na traineira da Marisqueira, lançava redes no Chagas e atracava no Espadarte Clube. Muitos dos que criticavam passavam as mesmas noites em convés de fumo, batendo as cartas em sintéticos de má sorte...

O Zé Brandão era o chefe de fila de uma velha guarda bem humorada e sem outra pretensão que não fosse rir e dar ao pé, sem convicções ilusórias de conquistadores de fotonovela barata.

Fica para a história local a epopeia, o mano a mano arrebatado entre o Zé Brandão e o Ernesto Corneta na rábula da peixaria e da oficina. E ficam na memória de todos nós o sorriso permanente e a figura simpática do velho mestre. O Zé Brandão continua a ser cá dos nossos...

1982

sexta-feira, 21 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 8

As crónicas da Eventos...




E co’a dor*

António Cagica Rapaz

O primeiro desafio era mais connosco próprios do que com o mar, quando tentávamos imitar os mais velhos, indo fora de pé, nadando à cão antes da braçada tímida até uma barca ancorada por perto ou na prudente proximidade da Passagem, na maré cheia.

A etapa seguinte era a ousadia da lonjura da jangada, evitando a mancha sombria dos destroços do “Numância”, para um ou outro mergulho temerário da primeira prancha ou um salto a pés da segunda.

A competição foi posterior, nos tempos da nossa Mocidade, graças à dedicação e ao entusiasmo contagiante do João Salgueiro e do Chico Batista, com os despiques coloridos entre vanguardistas A e B, a rábula inesquecível do Castanho e do Carlos Alberto, na prova de 66 metros-costas, e com a silhueta inconfundível do Fidalgo, de longe o melhor de nós, sulcando as águas, elegante no estilo, surpreendente na resistência e decisivo na rapidez.

Mas o mar era também a tentação da pesca. A minhoca comprávamo-la numa mercearia que ficava no fim da rua do Forno, de frente para o largo da Fonte Nova, e a pita era adquirida na loja do Palhinhas onde o Lucindo tinha uma paciência infinita para empatar os anzóis aos pescadores aselhas que nós éramos, mais ranhosos do que os gavozes que desdenhávamos, especializados que estávamos nos “paxões” e nas fanecas que só apareciam depois de o sol se pôr.

Era ali, algures entre a assustadora mas tentadora carcaça do “Numância” e a pedra de Zé Manel, limites para a temeridade e o espírito aventureiro da nossa guarnição constituída por corsários da Pedra Alta sem cédula nem bússola, sem sextante nem tira-linhas, apenas a paixão do mar, sem riscos nem sobressaltos, a duas braças da praia. Não longe das nossas águas, outros mais velhos já demandavam a fundura, equipados com óculos, tubo, barbatanas e espingarda com arpão mortífero.

Mais para leste, soberba e majestosa, a Fortaleza dominava a baía e mal sonhava que um dia viria a ser palco de cerimónias festivas de um Campeonato do Mundo de Caça Submarina.
Tal como nenhum de nós imaginava que aquelas pescarias rudimentares e incipientes pudessem vir a dar lugar a competições oficiais, a nível internacional, nas quais o Clube Naval de Sesimbra tão boa figura tem feito.

Com o passar dos anos, e com o mar por imutável testemunha, os vanguardistas, os pescadores à linha, os futebolistas da praia, todos envelhecemos e muitos ficaram já pelo caminho nesta competição com a morte, combate que todos perderemos, é apenas uma questão de tempo, de maré...

A morte é sempre cruel, injusta, prematura, e nunca se está preparado para ela, para a nossa ou a de alguém próximo. Todos fingimos ignorar que estamos condenados desde que nascemos, e não nos convencemos de que a nossa vez acabará por chegar. Quando atingimos uma idade mais avançada, começamos a assistir à partida de parentes e amigos, muitos dos quais tiveram um lugar importante nas nossas vidas. Juntamo-nos no funeral, trocamos meia dúzia de frases banais, por vezes até conseguimos dizer uma laracha para disfarçar e aliviar a emoção, e lá voltamos para os nossos afazeres. Porque assim tem de ser, porque a vida continua para os que ficam. Até um dia...

Quase sempre, começa por um rumor, discreto, insinuante, tímido. Há, em geral, certa forma de receio ou de relutância em referir a fonte da informação, espécie de recusa em assumir uma hipotética responsabilidade. Por isso, apenas adiantamos que ouvimos dizer já não sabemos a quem e passamos a palavra.

“Parece que quem não está nada bem é fulano”. É o rastilho, a novidade espalha-se, é tema de conversas de esquina. Depois, os dias sucedem-se, as semanas passam, a notícia perde-se ao largo, sai-nos do pensamento. Até ao capítulo seguinte. Desta vez é mais concreto, está internado, fez uma TAC, ressonância magnética ou algo com a mesma conotação inquietante. Não se conhece ainda os resultados, mas já corre com insistência a suspeita de ser coisa ruim. Segue-se novo período de silêncio...

Os amigos e conhecidos têm a sua vida para viver, não podem ficar ali no muro à espera de novas informações. Têm os seus empregos, a sua família, as suas distracções, têm pena, obviamente, mas ninguém pode viver a vida dos outros. Aliás, já lá vão dois meses e nada mais se soube. Seria realmente tão grave?

Em alguns o silêncio reacende a esperança, ao passo que para outros, morbidamente curiosos, é quase uma decepção.

Lenta e quase inconscientemente, vamos integrando a ideia, despedimo-nos um pouco em cada dia sem notícias. E mal nos apercebemos de que, enquanto o nosso amigo luta contra a morte, nós continuamos sentados na mesma esplanada onde tantas vezes conversámos, olhando o mar que ele adora. Em alguns casos, pela idade ou pela ausência de verdadeira intimidade, aceitamos quase com naturalidade, mas outros tocam-nos mais, quando são pessoas com quem partilhámos pedaços de vida, peripécias da juventude, sonhos, ideais, paixões, laços que ficaram na idade madura. Esses custa-nos mais ver partir e não os esquecemos, mesmo quando parecemos alheios, contemplando o mar, numa atitude que pode sugerir desprendimento ou indiferença. Mas não, é apenas a vida que é assim feita, que se não detém. O próprio mar, além de traiçoeiro, é infiel, serve novos senhores, barcos de recreio luxuosos, lanchas rápidas, motas-de-água vertiginosas, esquecendo as aiolas da pesca à linha, as barcas de aparelho, os nomes dos velhos pescadores. O mar é cada vez mais um condomínio aberto à exuberância de novos-ricos, a poesia já não vai ao reminho pela borda d’água. Ninguém se iluda, não restará um só nome escrito na areia, o mar apaga tudo.

Os mais chegados, os familiares directos, sofrem de outra maneira, mesmo quando procuram convencer-se de que, naquelas condições, foi melhor assim. Os outros, os que cá ficam, por enquanto, refugiam-se na contemplação do oceano antes de mergulharem na leitura de um policial da Agatha Christie ou do romance tropical do Miguel Sousa Tavares. Porque, sem esquecer, temos de continuar, temos de ir vivendo, com o mar, com o sol, com outros amigos.
Mas também com a ausência, com a saudade. E co’a dor...

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*Publicado no n.º 33 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2004.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 11




À porta do «CENTRAL»

António Cagica Rapaz

A nostalgia não é doença de velhos nem angústia de quem está longe. Apenas sucede que nós vivemos a correr sem olhar para trás. Até que um dia, cansados ou tomados de súbita consciência, paramos para reflectir. Olhamos à nossa volta e sentimo-nos estranhos, isolados, perdidos num mundo que não é o nosso, apesar de nele termos vivido dia após dia, colaborando na sua transformação.

Na nossa infância aprendemos a olhar o mundo, a descobri-lo, a penetrar nele com avidez, com a fome da descoberta, da aprendizagem. Desse universo não aprendemos senão as aparências, postais ilustrados que representam casas bonitas de cujos habitantes ignoramos tudo, as suas alegrias, as suas paixões, os seus problemas. E fica-nos uma sucessão de imagens. Umas em que há movimento, outras rígidas, impenetráveis. É assim que vemos o tempo da nossa infância, com imagens plenas, ricas, expressivas e outras sem alma, sem vida, apenas um rosto, uma paisagem…

O mundo evolui, nós acompanhamos o progresso, felizes, deslumbrados mas, cedo ou tarde, lamentamos ou evocamos com saudade o velho mundo que foi o nosso. Então sentamo-nos à beira do caminho que foi o nosso e vemos passar as pessoas que correm atrás do tempo, arrastados no turbilhão. A nostalgia não é doença de velhos…

Em todas as épocas o fenómeno se repete. Já o meu pai contava com saudade a sua meninice. De geração em geração a tecnologia progride, tudo vai mais depressa, foi o telefone, a rádio, a televisão agora a cores, a estereofonia, eu sei lá.

Longe vai o tempo em que ir ao banho à Prainha, à Água-doce era uma aventura maravilhosa, ir a pé até à longínqua doca, que delícia!

Como eram agradáveis as brincadeiras em frente ao «Central», o passarinho de alcatrão, as noites na esplanada…

A calma, a tranquilidade, a qualidade de vida perdeu-se ano após ano. Dão-nos grelhadores eléctricos, frigoríficos e congeladores, mas já não há petinga e quando o velho pescador vai para instalar o fogareiro a carvão no passeio já não pode porque está um carro estacionado, encostado ao poial. Maldito progresso!

Sem condenarmos o progresso de forma global e simplista (o que seria injusto e insensato) vamos ainda assim recordar, recriar, reviver. É minha intenção, de vez em quando, vir aqui sentar-me à porta do «Central», do velho «Central» que conheceu várias gerações, e evocar à minha maneira, pessoas e coisas de um passado que conservo presente. Para começar aqui vos deixo um apontamento com duas versões de férias que o tempo tornou diferentes. Quando eu era menino de bibe ia passar as férias grandes às Caixas, o que para mim e a minha irmã era motivo de grande alegria.

Às cinco da manhã a Rua dos Pescadores dormia a sono solto quando a minha mãe entrava no nosso quarto. Era em Junho, mês dos santos amigos, das fogueiras e dos fogareiros à porta, dos primeiros calores do Verão. Era a alvorada p’ra ir p’rás Caixas. À exclamação desta palavra mágica saltávamos da cama com um entusiasmo bem diferente do despertar arrastado dos dias de escola.

A evocação das Caixas enchia-nos o espírito de trigo, de batatas com pele, de vindima, de trigo da debulha, de moinho velho, de pão caseiro, de ribeiro dos Torrões, de sonho e alegria.

A minha mãe carregada com as malas e nós carregados de sono, atravessámos a vila que ainda se voltava para o outro lado. No largo da igreja, o Pintassilgo punha a trabalhar a velha «Panhard» e antes que o padre João desse os bons dias ao Menino Jesus já nós íamos Santana acima, Zambujal abaixo, aos solavancos na estrada poeirenta, de olhos bem abertos. O sono ficara em Sesimbra, o sonho começava com o Pintassilgo cujo trinado se acelerava na estrada do troço da Quinta. À porta do Baratinha parava a camioneta e começavam as férias…

Às 4 da manhã do dia 31 de Agosto de 1980, o Nicolas e a Samantha acordaram. Só a excitação dos meus filhos era igual à da minha meninice porque às 4,30 em ponto o táxi estava à porta e às 6 horas embarcávamos no aeroporto Charles de Gaulle num Boeing 707 rumo ao Algarve. Lá em cima, no azul do céu, o sol nascia da mesma maneira e, a certa altura, quando o comandante falou, pareceu-me que dizia: - «Senhores passageiros, o comandante Pintassilgo dá-vos as boas-vindas a bordo do «Santa Cruz». A nossa viagem para as Caixas durará 30 anos, voaremos a uma altitude igual à da torre da igreja de cima e a nossa velocidade de cruzeiro será igual à da carroça do tio Júlio a caminho dos Torrões».

O Nicolas dormia e eu sonhava…

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* Publicado originalmente na edição de Outubro de 1981 de O Sesimbrense.

terça-feira, 18 de maio de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 4



O abastado lavrador resolveu exibir os seus inúmeros tractores à população da aldeia. Fê-los desfilar sem preocupações de tamanho, cor, ou valor.
Não se ralou com isso porque, como dizia, a ordem dos tractores é arbitrária...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 17 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 10



A vindima

António Cagica Rapaz

“E no fim havia uma grande almoçarada, com bacalhau e cães de monte, debaixo do sobreiro grande, no meio da vinha.” Assim se concluía qualquer relato das vindimas na Roça, há quase meio século.

Talvez por influência das incursões africanas do meu pai, nos seus tempos da Marinha, passámos a chamar Roça àquele pedaço esguio de terra, na Aiana, onde havia pinhal, raras árvores de fruto, uma pequena vinha e alguns sobreiros. Da nossa casinha, de chão de terra batida, nas Caixas, até à Roça ia um caminho de areia, estreito e penoso, que criava uma falsa sensação de lonjura. A vindima era prenúncio do Outono, com as cepas a despirem-se das folhas que o sol fora colorindo, primeiro, e queimando, depois. Manhã cedo era o alvoroço da carroça, dos cestos de vime, das navalhas, do farnel, a expedição em marcha para aquela pequena festa com os amigos, ingénuo pretexto para se confraternizar à volta das videiras, para filosofar sobre o sabor da uva, o tamanho dos cachos, piadas e desafios, com o bacalhau à espera. Por fim, à sombra amiga do sobreiro grande, a almoçarada rematava a alegre labuta...

Aos meus olhos de criança, aquele sobreiro era gigantesco e representava protecção e força, acolhia e abençoava a vindima que era, mais que tudo, um cerimonial de fraternidade e partilha.
O ambiente era algo semelhante ao das desfolhadas descritas pelo poético Júlio Dinis, com ditos e gracejos, prova aqui, corta ali, cada cesto mais lindo do que os outros, o espírito fino do tio Nuno, a bonomia calorosa do tio Jójó, dois seres maravilhosos que tão bem cultivavam este espírito de partilha.

A vida dá as voltas que dá e o sobreiro frondoso, acusado de possuir raízes insaciáveis, acabou por ser sacrificado para não prejudicar a vinha. Afinal, com os anos, a vinha acabou ao abandono, nem sobreiro nem vinha, só mato, tojo, ervas e solidão. A vida continuou a dar as voltas que tem de dar e eu voltei à Roça, à terra, às sensações da infância. Aos poucos, fomos metendo ombros, mãos e, sobretudo, paixão, numa tarefa ciclópica, resgatando cepas ao mato, arrancando e queimando silvas e outras pragas danadas. Cavámos, cortámos, carregámos, empilhámos, sulfatámos, podámos, com ardor e entusiasmo. E assim conseguimos o ressurgimento da pequena vinha, coisa modesta mas excitante, com a perspectiva de ver de novo videiras ao sol, talvez alguma uva e, quem sabe, voltar a fazer vinho da Roça, como no tempo em que pisávamos no lagar do tio Justino. Passámos a preocupar-nos com o tempo, nuvens, nevoeiro, neve e granizo, chuva do quadrante oeste. E a ouvir quem sabe, subentenda-se o nosso vizinho, o senhor António, que nos foi aconselhando, dando ordens e pareceres, até marcar a data da vindima. O dia amanheceu suave, envolto em neblina macia. A Soraia e o Rodrigo, madrugadores como o avô, revelavam uma excitação que reconheci, com saudade. Breve comecei a carregar no carrinho de mão os baldes cheios para o lagar de onde o senhor António dirigia as operações. Depois era vazar e dar à manivela para accionar a prensa. Manhã fora, foi-se repetindo a magia, a descoberta de cachos bonitos, a prova repetida de uva periquita e moscatel, pouca coisa, é verdade, mas saborosa, a melhor do mundo, fruto do nosso trabalho, em parte, a Natureza fez o maior. No final, almoçámos bacalhau, meia desfeita, debaixo dos altos sobreiros, à porta de casa. A Soraia e o Rodrigo estão na idade das perguntas e, ao longo das nossas viagens no carrinho de mão, falei-lhes dos sacos de trigo que trocava por outros de farinha no moinho das Caixas, dos vasos de fundo dourado, amarrados às velas, por onde se enfiava o vento, num assobio lúgubre. Um dia, talvez eles contem aos filhos como eram as vindimas da sua infância, com bidões de plástico e carrinho de mão. O Rodrigo, em cada dia, vai aprendendo com o pai, ouve o avô, vai armazenando conhecimentos, vai construindo o seu mundo interior, com isto com aquilo, hoje a vindima, amanhã a matança do porco, depois o armazenar de lenha para o Inverno, sempre com a protecção dos pais e a bênção dos avós. Se calhar, a felicidade é apenas isso, meia dúzia de horas felizes, momentos espaçados e fugidios, uma sensação de paz, uma ilusão de eternidade, um riso de criança num carrinho de mão, através de uma vinha de brincar...

1998

sexta-feira, 14 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 7

as crónicas da Eventos...



A improvável partilha*

António Cagica Rapaz

Não me custa imaginar o Pedro Martins a abandonar, por momentos, a leitura de Pascoaes ou a interromper um concerto para piano e orquestra, de Tchaikovsky, para me deixar entrever a tonalidade ou o azimute que anda a rascunhar com vista à “Eventos” que se segue, qual velho professor primário à procura de tema para a redacção.

Confesso que gosto destes desafios, esperando de cada vez ser capaz de arranjar um ângulo novo, uma perspectiva original, um jeito diferente de abordar os assuntos repetitivos do calendário, tentando ajudar a que cada número possa constituir uma agradável surpresa, resistindo à queda na rotina da mera informação.

Respeitando prazos e rumos, cada um de nós, membros desta Confraria Mínima, entrega os seus trabalhos ao Paulo ou ao Pedro, todos muito contentes porque acreditamos ter encalhado de mansinho a nossa aiola, em cada maré renovada.

Depois, à boca da noite, caminhamos praia fora, remos às costas, direitos a casa, à procura do jantar, enquanto as ondas suaves apagam as nossas discretas pegadas. Amanhã ninguém se aperceberá de que por ali passámos, de volta do mar, mas nem por isso o peixe estendido na areia deixará de ser fruto da nossa arte (ainda que fraca) e da nossa vontade de comungar desta modesta aventura que é cada lanço da “Eventos”.

As coisas são como são, os procedimentos estão instituídos, cada um tem o seu papel nesta encenação virtual e as pessoas habituaram-se a receber a “Eventos” em suas casas, sem custo e sem custos. Alguns nem se deram à maçada de preencher o papelinho a solicitar a recepção, amigo solícito terá tratado disso por eles. Depois, lá fazem o favor de nos dispensarem uns minutos do seu precioso tempo, numa leitura rápida, entre o telejornal e a novela, sem se aperceberem de que um pouco de nós fica em cada escrito.

Talvez não saibam, mas cada número é feito com gosto, imaginando (ingenuamente, talvez) que estamos a partilhar alguma coisa quando revelamos a origem do nome de uma rua, quando revivemos uma tradição, quando defendemos o nosso património cultural e afectivo ou quando sublinhamos o mérito de algum sesimbrense, de raiz ou de adopção.

Simples camarada, não fui mandatado pela companha, falo apenas por mim. Achei ser bom recordar que esta faina de escrever, de pescar nos mares mais ou menos profundos da pesquisa etnológica, da realidade circundante, da fantasia ou da improvável criação literária, esse esforço só faz sentido quando quem leva o nosso peixe para casa tem a bondade de nos deixar um sorriso, um gesto de cumplicidade, um sinal de simpatia, apenas isso.

De outra forma, se calhar o melhor é entregarmos a cédula na capitania, arrumarmos os remos e vararmos a aiola. Ou dá-la para abate...

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*Publicado no n.º 39 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2005.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 10



foto tirada do blogue Sesimbra



Há mais marés…*

António Cagica Rapaz

Recentemente tive, em Paris, a agradável surpresa de alguém me telefonar falando-me de Sesimbra, caldeirada e outras coisas. Fiquei intrigado e preparava-me para desligar, face à recusa da minha interlocutora em se identificar quando ela me anunciou ser a Géninha, a filha do Zé Brás. Respirei fundo, aliviado pelo que receava ser uma brincadeira de gosto duvidoso e contente pelo reencontro. No dia seguinte tive o prazer de receber o casal Brás e a filha a jantar em minha casa e foi uma verdadeira festa da saudade, não uma saudade doentia mas uma evocação saudável dos bons tempos passados, perdidos na maré vazia dos calendários mas bem presentes na nossa memória.

E foi ele que me contou, com entusiasmo, o renascer do «Sesimbrense», fruto da carolice de meia dúzia de velhos amigos. E lançou-me o desafio para escrever. O convite foi-me repetido em Sesimbra e aqui estou, de arma em punho, respondendo presente ao apelo da velha guarda da qual começo a fazer parte. Antes de prosseguir, e porque vem a propósito, gostaria de sublinhar o entusiasmo vigoroso do Zé Brás que não envelhece, não se cansa de lutar pela nossa terra, pelo turismo, pela pesca, pelos valores que lhe são caros. O Zé Brás é o pai do turismo em Sesimbra, foi ele que descobriu o caminho marítimo para o turismo na nossa terra, foi ele que virou as Descobertas do avesso criando condições, motivações para que os estrangeiros venham até nós. Não vale grande coisa o meu elogio, mas aqui fica a minha homenagem ao Zé Brás que é um homem de fibra, um grande arrais do turismo e um sesimbrense de eleição. É verdade, fica dito.

Desde a minha infância me habituei à presença do «Sesimbrense» ao qual a cartilha (o livro de capa verde que deu o avô) passou o testemunho e tão religiosamente lido como o livro de missa que me deu o Padre João Ferreira, meu padrinho da Confirmação ou Crisma.

O Jornal da nossa terra era a fonte de informação complementar, a confirmação de factos conhecidos, a análise momentosa e circunstancial.

A vida decorria serena e morna nesta vila calma. Os sinos dobravam a finados e «O Sesimbrense» publicava nomes e fotografias. O Desportivo derrotava o Amora e o Jornal mencionava os autores dos golos e fornecia a composição da equipa, com comentários honestos e repletos de bonomia. A realidade quotidiana, que nos parecia banal, ganhava seriedade e solenidade quando retratada em letra de imprensa. O leitor da terra assistia com curiosidade à transfiguração do real circundante como alguém que compara um retrato com o seu modelo. Os assinantes afastados de Sesimbra pelas vagas da vida devoravam avidamente as notícias, descobrindo, analisando, imaginando, sentindo aqui o desaparecimento de algum amigo, apreciando ali uma iniciativa camarária, aplaudindo com um sorriso saudoso um golo do Desportivo.

«O Sesimbrense» fazia parte da nossa vida, em cada casa, na mesinha da sala ele ficava dobrado, lido, relido, guardado como relíquia. Pessoas e acontecimentos da região conquistavam nas colunas do «Sesimbrense» uma dimensão deslumbrante de celebridade local. Por isso o nosso Jornal era não só o espelho da região mas também um guia, um roteiro e um quadro de honra. E «O Sesimbrense» regressou, felizmente. Li com certa emoção os últimos números e acredito que o nosso Jornal voltará a ser o que foi, melhor até porque as boas vontades parecem redobradas, revigoradas.

Registei com grande satisfação a toada nostálgica, o olhar saudoso sobre o passado, a evocação sentida de uma Sesimbra que teimamos em conservar.

Não se trata de um passadismo derrotista nem de uma pieguice caquéctica, mas de uma tomada de consciência da efemeridade e da fragilidade da vida e das coisas materiais. É percepção do tempo que nos foge, que se nos escapa em cada esquina do entardecer. É um certo desencanto do mundo de hoje, é a saudade de um tempo que foi e, sobretudo, de pessoas que marcaram esse tempo. São esses valores que não podemos deixar apodrecer no silêncio do esquecimento.

O nosso Jornal abre a janela sobre a realidade quotidiana, informa, sugere, critica, preconiza, traça rumos para o futuro. E ao mesmo tempo mantém acesa a vela da nostalgia, aberto o álbum das recordações.

O velho galeão que é «O Sesimbrense» volta a cruzar as águas da nossa baía. Espero e desejo que os seus timoneiros segurem bem o leme, sigam na boa direcção, evitando os escolhos da agressividade e mantendo o cabo da moderação e da tolerância.

Os sinos repicam. «O Sesimbrense» renasceu. Há mais marés que marinheiros…

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*Publicado originalmente na edição de Julho de 1981 de O Sesimbrense.

terça-feira, 11 de maio de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 3



Procurou longamente o rasto dos animais. Já desesperava quando se aproximou de um riacho e deu com os burrinhos na água...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 10 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 9


O tio Escuminha

António Cagica Rapaz

Os dedos calejados por longos anos de labuta no mar têm dificuldade em segurar o fino copo de cerveja. Os lábios gretados pelo vento de leste rejeitam o sabor estranho do whisky. Os olhos, à volta dos quais o mar lançou rugas sem conta, olham o mundo à luz de uma candeia serena, ao som de um fado antigo como o gosto áspero de outrora em forma de tinto.

O tio Escuminha não é deste tempo, é o passado que penetra o presente com ingénua autenticidade. O boné de pala preta, qual comandante de veleiro de aventura, o cachimbo, a peça de fruta, o jarro de vinho, o sorriso tranquilo perfumado de ironia, é o tio Escuminha que contempla sem criticar quanto de fascinante acontece na Marisqueira.

Quando se apagar o seu cachimbo não haverá cigarro extra-longo que o substitua. O tio Escuminha, que conhece as profundezas do mar, que sabe até onde a maré pode subir, abana a cabeça, sorri e pergunta ao tio Guilherme como pode aquele estrangeiro beber tanto sem meter a borda debaixo de água, sem encalhar nos rochedos do sono. O tio Escuminha deita-se cedo porque o dia nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs…

1982

sexta-feira, 7 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 6

as crónicas da Eventos...




O Padre João, pois então!*

António Cagica Rapaz

Deus chegava até nós através de palavras austeras e imagens assustadoras, com profetas barbudos, diabos cornudos e visões tenebrosas do reino dos mortos.

As noções de virtude, pecado, culpa e castigo, tudo desfilava diante dos nossos olhos de crianças que a confissão aliviava e que, a seguir, faziam prodígios de contenção para não dizerem algum palavrão nem comerem, por distracção, um bocado de pão ou um bolo antes de comungar.

A missa era solenemente dita em latim, envolta em mistérios e rituais litúrgicos que nos faziam sentir minúsculos, contritos e infelizes.

Este intróito poderá parecer (e talvez seja) um tanto excessivo, mas é a imagem desfocada que permaneceu na memória de muitos de nós que fomos conduzidos à igreja com a mesma natural obrigação com que íamos à escola.

Felizmente, havia o padre João!

Com ele surgiu a descodificação da erudição ininteligível do latim, trocado por uma versão portuguesa que o Pedro e eu líamos na chamada missa das crianças. Era Deus a descer do Seu pedestal e a aproximar-se de nós, num discurso acessível, compreensível, ao alcance dos cordeirinhos tresmalhados que nós éramos, mais ansiosos por jogatanas de bola do que por epístolas e homilias.

À medida que os anos passam, vamos ficando mais perto de Deus ou, pelo menos, da resposta à interrogação lancinante que paira sobre o outro lado da morte. E nesta caminhada acontece-nos olhar para trás, em gestos puramente rotineiros ou em busca de estímulos, explicações ou pistas para o futuro.

E é nessas alturas que se destacam, na imensidão da memória, nos caminhos poeirentos da nossa peregrinação, figuras que marcaram a nossa vida.

Por força das efemérides, somos levados a abordar repetidamente alguns temas, mas nem por isso desvalorizamos o simbolismo maravilhoso do Natal sob pretexto de já o ter festejado e celebrado várias vezes. Assim, é sempre com renovada emoção que voltamos a reunir-nos à volta do presépio e a evocar a memória das pessoas de quem gostamos, que contam na nossa vida, presentes ou fisicamente ausentes.

Em longínquas missas do galo, a igreja de cima enchia-se com o fervor da religiosidade, da fraternidade e do espírito de paz que a todos envolvia. Enchia-se também com a voz poderosa do Dr. Costa Marques que pautava a melodia contagiante dos cânticos de Natal. E enchia-se, logo a seguir, a casa do tio Nuno que, com bondade e ternura infinitas, me ajudou a passar pedaços de Natais como eu os sonhava, como se eu fosse da família.

E o padre João juntava-se a nós, com o mesmo à vontade e a mesma cumplicidade com que entrava no café do tio Chico da Cooperativa.

Talvez por serem vizinhos, no largo da igreja, certamente por serem ambos bons, generosos e calorosos, ao evocar um logo me lembro do outro, figuras tão indissociáveis como os Reis Magos do deslumbrante presépio que o tio Nuno armava, com amor, sensibilidade e perícia.

Um dia, o padre João abalou para a Ericeira, mais tarde andou por África e, hoje, o seu corpo repousa na Golegã. Mas o seu espírito ficou um pouco por toda a parte por onde passou, espalhando a palavra de Deus, fazendo o bem, deixando amigos e saudade.

Nesta terra a que ficou tão ligado, o padre João tem o seu nome numa rua, mas todas o viram passar, a todas pertence, todas conservam a memória do seu sorriso luminoso, do calor da sua voz, do brilho insinuante do seu olhar.

No alto do púlpito, na solenidade do altar, no fervor da procissão, mas também no convívio de uma partida de dominó no café do Jeremias ou atrás de uma bola depois da catequese, o padre e o homem eram um só, o servo do Senhor e, ao mesmo tempo, o companheiro, quase a prova real de uma verdade que nos transcendia, a existência de Deus.

Não sei (nem me preocupa) se esta imagem que dele conservo não será algo idealizada. Talvez seja, talvez esta visão afinal brote do meu espírito da mesma forma que outras fantasias terão saído (segundo a tirada histórica do padre João) da cabeça do meu tio Justino. Nem a malícia lhe faltava para o sentirmos tão próximo de nós...

Pela felicidade de o termos por amigo, hoje e sempre, só podemos dar graças a Deus.

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*Publicado no n.º 28 de Sesimbra Eventos, de Dezembro de 2003/Janeiro de 2004.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 9




A face oculta do mundo*

António Cagica Rapaz

Há pouco tempo, num restaurante do Bairro Alto, um cliente encomendou uma dose de «Joaquizinhos» fritos e perguntou ao empregado por que razão os carapauzinhos têm aquele nome.

Embaraçado, o empregado não soube dar a resposta, mas logo surgiu um outro cliente explicando que se trata de uma alusão a um senhor de Sesimbra. Com efeito, prosseguiu o culto cliente, em Sesimbra havia muitos carapauzinhos pequeninos e o tio Joaquizinho era uma figura muito conhecida pela sua mini-estatura. Daí, Joaquizinho igual a pequenino, aplicado aos carapaus, petisco tão apreciado.

Toda a gente sorriu com a explicação e a refeição prosseguiu. Eu não me meti na conversa porque de pouco serviria informar a ilustre assistência que os joaquizinhos são os pelins e o tio Joaquinzinho era pai do José António da parteira. Malhas que o império tece, malhas que o pelim fura…

Tudo isto me inspirou uma reflexão sobre pessoas e factos que entram ou não entram na História, por isto ou por aquilo.

Habituamo-nos aos grandes nomes, às altas individualidades, sabemos quem inventou a penicilina, conhecemos a teoria da relatividade, a lei da atracção dos corpos, o nome do cientista que descobriu a vacina contra a raiva, nomes de reis, presidentes, músicos, escritores, políticos, mil e uma personalidades que ficaram na História. Mas a grande maioria desconhece que, em diferentes períodos dessa mesma História, algumas pessoas falharam por pouco o acesso à imortalidade.

Por razões diferentes, como vamos ver…

É a face oculta das coisas, o que a televisão não mostra, a rádio não diz e os jornais não revelam.

Em 1972, um jornalista francês, de férias na Austrália, foi assistir a um concerto de Country-music e, para grande surpresa sua, descobriu num canto um guitarrista talentoso e simpático. Conversaram, beberam e acabaram a noite em casa do guitarrista, James Lighton. A certa altura, este ilustre desconhecido interpretou de forma genial dois dos maiores sucessos dos Beatles, Yesterday e Michele. Até aí o jornalista francês, Pierre Noiret, apenas registou, admirativo, a arte do guitarrista. A surpresa veio depois quando James Lighton lhe revelou, com documentos na mão, que era ele e não os Beatles, o autor dos dois trechos de fama mundial.

Antes de serem figuras lendárias, John Lennon e Paul McCartney estiveram na Austrália e travaram conhecimento com James Lighton. Tocaram juntos, conviveram durante algum tempo e, ao partirem, levavam na bagagem as melodias que haveriam de dar a volta ao mundo, com o êxito que conhecemos.

O escândalo só não surgiu porque Pierre Noiret recebeu uma forte soma de libras, discretamente, de um dos advogados dos Beatles. E nunca revelou o segredo.

James Lighton morreu num desastre de viação em 1984 sem ter conhecido a fama nem recebido a recompensa por um talento autêntico…

Depois do 25 de Abril, muito boa gente se interrogava sobre os segredos que os ficheiros da Pide deveriam encerrar.

A publicação de todos ou parte desses documentos constituiria uma verdadeira bomba e o receio era bem compreensível e previsível em múltiplos sectores políticos.

Ora até hoje, em Portugal, apareceram muitos livros sobre o que se passou antes e depois do 25 de Abril, mas nada sobre os ficheiros da Pide. Porquê?

A verdade é simples, mas ninguém a diz. Em Março de 74 não era segredo para muitas pessoas que o golpe de Estado era inevitável e um funcionário da Pide, hábil e previdente, apoderou-se da maior parte dos documentos ultra-secretos.

O escriba, Joaquim Albertino da Costa, permaneceu na sombra anónima em que sempre vivera. Porém, de estúpido nada ele tinha e entregou o assunto a um advogado célebre que entrou em contacto com certas personalidades influentes e negociou o silêncio do homem da sombra.

O livro não foi publicado e o habilidoso funcionário recebeu dois milhões de contos. Retirou-se para o Brasil onde faleceu em 1988, de morte natural…

Outro caso insólito é o do templo de Augusto, verdadeira obra-prima de arquitectura romana descoberta em Palmela numa quinta que pertence ao Sr. Luís Ferragudo.

Aconteceu, por acaso, durante a construção de uma adega e o bom Ferragudo falou a um amigo que se interessava pela arqueologia. Foi em 1957 e o caso ocultado porque um célebre arqueólogo italiano pagou uma pequena fortuna ao nosso Luís Ferragudo para não revelar a existência de uma obra que a academia de Arqueologia de Florença afirma nunca ter sido executada.

Para não serem desacreditados, os italianos preferiram pagar e, algures numa quinta de Palmela, dorme, meio desenterrado, o templo de Augusto…

E quem sabe onde fica o beco Alfredo Vinhas? E quem foi Alfredo Vinhas?

O beco fica situado não muito longe do estádio do Bonfim em Setúbal e Alfredo Vinhas é autor de vários sucessos populares, cantigas que o povo canta, ao ponto de se ignorar o nome do autor, atribuindo-se ao colectivo popular a sua criação. Tal é o caso de «Ó Rosa arredonda a saia» e do «Jardim da Celeste».

Alfredo Vinhas morreu pobre e praticamente ignorado, no Pinhal Novo, em 1962.

Em todos os domínios, em todos os sectores de actividade há pessoas que fizeram coisas extraordinárias e nunca foram recompensadas nem conheceram a notoriedade merecida.

Em 1824, na pequena cidade de Berkeley, o médico John Silver descobriu e deu a conhecer uma banalidade: o banho Maria, assim conhecido porque a mãe do simpático doutor se chamava Mary.

Nenhum jornal relatou a descoberta estrondosa de um jornalista francês, Jean Marie Laumonier, que possui a prova de que toda a obra do filósofo Jean-Paul Sartre é, afinal , da autoria do seu cunhado André Sebas que viveu toda a vida na sombra de Sartre por ser coxo e gaguejar de forma pronunciada. Porque estas enfermidades não lhe permitiam uma vida pública, o pobre André aceitou escrever o que Sartre assinava e comercializava.

Obviamente, a revelação desta mistificação seria uma vergonha e um descrédito para a França intelectual e orgulhosa dos seus grandes pensadores…

E André Sebas morreu no anonimato em Nantes, em 1976…

O último exemplo toca-nos de perto porque diz respeito a um nosso conterrâneo, o Júlio Silva, o John Português, que foi levado a tribunal por ter reclamado direitos de autor que na realidade pertencem a a um inglês, Peter Shilton. A canção intitula-se «The Gispy And His Horse» que Júlio Silva traduziu e adaptou, transformando-a no grandioso sucesso do fado do cigano que matou o cavalo na feira da Agualva…

E esta citação pitoresca serve apenas para preparar a explicação final. Tudo quanto atrás fica dito é totalmente falso, ou melhor, é pura imaginação, conversa fiada, aldrabice pegada, lampana da boa, cujo hipotético e único mérito é ter constituído tema de agradável leitura, passatempo sem outra pretensão que não seja assassinar o tempo, dar um pontapé na letargia deste fim de Verão.

A única coisa verdadeira será, porventura, a origem dos joaquinzinhos, tese que fui buscar (com a devida vénia e apreço) a esse homem culto e inteligente que se chama Rafael Monteiro.

Isto é verdade, o resto é fumo de Verão.

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*Publicado originalmente na edição de Outubro de 1990 de O Sesimbrense.

terça-feira, 4 de maio de 2010

TALVEZ POESIA..., 3


P'la rua que ao mar conduz*
(Súplica ao Senhor das Chagas)

António Cagica Rapaz

O Senhor já foi pra cima,
Saiu há pouco da capela.
É Sesimbra que se anima,
Com as colchas à janela.

Estamos na Primavera,
Já vai longe o vendaval,
Bom seria, quem nos dera
Que houvesse sempre arraial.

Mas os barcos já não vão
Pescar longe da fortaleza.
Falta o peixe, falta o pão
Prós nossos filhos na mesa.

Acabou a nossa lida,
São ventos ruins sem norte.
O mar que nos dava a vida
Quer agora a nossa morte.

Vai sair a procissão
P'la rua que ao mar conduz.
Oremos com devoção,
Salva-nos, Senhor Jesus.

Cansados de tanto chorar,
Sofridos de tantas pragas,
Aqui estamos pra rezar
Ao Senhor Jesus das Chagas.

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* Publicado originalmente em Os Chamadores - Cancioneiro de Sesimbra, Volume I, Sesimbra, Câmara Municipal de Sesimbra, 2002.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 8


Joaquim Sobral

António Cagica Rapaz

O avental sobre os joelhos, os óculos na ponta do nariz, enquanto me ouvia, ia colocando umas biqueiras nos meus velhos sapatos estafados por correrias infindáveis atrás da bola. Sem se distrair, sem errar o furo nem o prego, escutava com aparente interesse, as minhas aventuras nos verões apaixonantes que passava nas Caixas. Muitas vezes, antes das seis da manhã, passámos à porta dele, no silêncio da alvorada, carregados com as malas, felizes e eufóricos, sem sono nem fadiga, a caminho do largo da igreja de onde saía a camioneta que, com o Pintassilgo ao volante, nos levaria até à paragem do Baratinha. Era justo que, já que não o acordava ao abalar, lhe contasse, depois, como tinha sido a rega nos Torrões ou a debulha do trigo, a fuga da Mulata, a linda e selvagem mula do tio Júlio, ou a vindima na Roça…

Era na lojinha do tio Joaquim, com os banquinhos de madeira, os pássaros na gaiola, o cheiro a cabedal e a frescura da rua à espera de sol.

Durante muitos anos, desde pequenino, me habituei a passar horas a conversar com ele, a vê-lo manobrar a sovela, a dar pontos, a cortar, a coser, a pregar, o jeito de consertar, o gosto de ajudar, aproveitando até à exaustão, sapatos, botas e sandálias. Aquela pequena oficina era quase de brincar, minúscula e acolhedora. Na véspera de Natal havia quem esperasse até muito tarde para ter sapatos para a Missa do Galo ou para pôr na chaminé.

Com a sua bondade e a sua paciência, o tio Joaquim acabava sempre por remendar todas as carências, com a mesma ternura com que me contava, pausadamente, pescarias mágicas das segundas-feiras em que, saltando de rocha em penedo, ele se perdia na lonjura do Caneiro.

Era o empatar minucioso dos anzóis, o segredo do engodo, a escolha criteriosa do local, o tempo certo da maré, o fascínio da água lusa, o apelo da madrugada que o levava a esquecer, por um dia, o avental, a sovela e o martelo, para abalar, ao raiar da aurora, de balde na mão, homem de uma cana que prolonga o braço, a caminho das rochas, ver nascer o sol, abraçar o mar, deixar-se levar pelo fio de nylon até à linha do horizonte, saborear a vida, sentir-se livre, sonhar.

E pescar…

1995